Isto só podia vir de alguém cujos avós nasceram em Shanghai
não os cidadãos mais excepcionais da cidade, mas certamente dentre os mais sóbrios
a fazerem uma pequena e hoje corroída marca
Só podia vir de um descendente de distante ou dissoluto (sim, moi)
capaz de fazer elogios indignos até mesmo de uma faísca de sua atenção
[...]
Só podia vir de alguém que não existia
antes desse poema
começar a se escrever
Nosso livro do mês de março é Sotto voce, do poeta americano John Yau, do qual extraímos o poema acima. Desconhecido do leitor brasileiro, Yau é também crítico de arte e realiza, na obra, uma interface entre pintura e poesia por meio dos poemas. Também vemos em Sotto voce um artista cravado por um deslocamento: filho de chineses, nascido em um país que se apresenta como Meca da liberdade, mas que expõe preconceitos diários com estrangeiros e seus descendentes. O livro nos expõe uma sociedade que caminha para a degradação humana e política.
Nele, a ideia de herança ultrapassa a questão ancestral e passa para o domínio da influência artística quando Yau cita Emily Dickinson, Carlos Drummond de Andrade, o pintor Frederick Pollock e fala como se fosse ("habita a voz") o pintor e fotógrafo Yves Klein.
Sotto voce, na verdade, não é uma obra integral de Yau; é o poema do autor que dá nome à seleção poética que Marcelo Lotufo, tradutor e pesquisador, elaborou para a Editora Jabuticaba. O que temos, por tanto, é uma pequena seleção da poesia desse autor que trabalha com sentidos possíveis da poesia, da pintura, do humano de forma inteligente e sensível.
Nessa entrevista, Marcelo Lotufo fala um pouco sobre John Yau, a experiência de traduzi-lo, o que revela a seleção de poemas e sobre os futuros lançamentos da Jabuticaba - da qual também é editor.
Como conheceu o trabalho de John Yau?
Nessas coisas há sempre algo de contingente. O contemporâneo, afinal, é bastante fluído. Eu já havia cruzado com os escritos do John Yau na revista que ele edita junto com outras pessoas nos EUA – Hyperallergic – mas não tinha lido sua poesia com atenção. Minha parceira na Edições Jabuticaba – Adi Gold – comentou que havia assistido a uma performance dele com o artista plástico Archie Rand, em Nova York, e que tinha gostado do resultado. A parceria/performance do John Yau e do Archie Rand foi publicada em livro sob o título 100 more jokes from the book of the Dead. A ideia de parcerias interdisciplinares me encanta. E o nome dele também era curioso, John Yau... já parecia incorporar estes deslocamentos do mundo contemporâneo. Então fui na biblioteca e retirei todos os livros do Yau que encontrei, que não eram poucos. O melhor jeito de conhecer novos poetas são as recomendações de amigos, não tenho dúvidas disso.
“A imigração é um privilégio, não um direito”, disse recentemente Donald Trump. Yau traz em seus poemas um eu poético que mantém uma relação conflituosa com sua ascendência oriental e de como ela faz parte de sua identidade. Um eu poético que vê a dinâmica do mundo de forma melancólica e nos expõe, por meio de imagens, a brutalidade desse mundo. Como, na sua opinião, a leitura de Yau pode ressoar em tempos de xenofobia?
Talvez isso soe como uma platitude, mas de uma forma geral a boa literatura tende a se interessar por questões de alteridade e identidade e, por isso, tem um lugar especial em um mundo cada vez mais xenofóbico e egocêntrico. De uma forma banal, quem diz que imigração é um privilégio, não um direito, claramente não está se colocando no lugar de quem emigra...
No caso do John Yau, por ele estar marcado por tantos deslocamentos, talvez estas questões de alteridade e identidade acabem sendo ainda mais explícitas, mas sem chegarem a ser didáticas, o que é um dos trunfos da sua poesia. Ironia e distanciamento, as vezes, salvam o poema. Estes mesmos deslocamentos, como você bem apontou, também trazem à tona uma certa melancolia. Para mim, entretanto, esta melancolia advém mais de uma alienação em relação ao mundo contemporâneo do que a uma questão particular à ascendência do poeta. Logicamente, dada a história dele, esta questão acaba ganhando uma forma própria. Em que língua eu devo habitar: chinês ou inglês? E, mesmo formalmente, ele brinca com estas ambiguidades: meu poema é uma colagem à la Duchamp ou uma reprodução de escrita ideográfica? Talvez os dois. Ademais, essa melancolia está tanto em poemas como “Introdução” e “In gu rês” que incorporam este eu poético sino-americano e suas dúvidas, quanto em poemas como No reino da poesia e Outras aventuras em monocromo, que falam de poesia e artes plásticas sem se referir à origem do poeta. Quer dizer, para responder a pergunta de forma mais direta, me parece que a leitura de Yau ressoa em um mundo xenofóbico primeiramente porque é boa poesia, é um exercício formal e de sentimento; e não porque o autor é sino-americano. Agora, é um combo... está tudo ali. Outros leituras, com outras ênfases, são sempre possíveis.
A seleção dos poemas é de sua autoria. Quais os critérios que elencou para fazer essa reunião?
Em uma coleção pequena como a nossa, não há pretensão de contemplar todas as vertentes da obra do poeta que, afinal, tem inúmeros livros publicados ao longo de quarenta e poucos anos de carreira; e livros bastante diversos entre si. Sem este peso, você acaba naturalmente gravitando para os poemas de que mais gosta. Isto não é exatamente um critério, mas faz parte. Dito isso, lendo a poesia do Yau, eu quis contemplar os três tipos de poemas que mais me moviam: poemas, digamos, confessionais (ou identitários), poemas que dialogam com as artes plásticas, e poemas que exploram certas técnicas modernistas como a colagem e o ready made. Estas vertentes, claro, às vezes vêm combinadas e misturadas no mesmo poema. Ficaram faltando, talvez, algumas experiências do John Yau com formas fixas e também com “language poetry.” Mas com a internet, alguém que leia o livro pode facilmente encontrar diversos outros poemas do Yau, alguns até traduzidos. O Douglas Pompeu, um amigo que está traduzindo um livro para a Jabuticaba, traduziu alguns poemas em seu blog e escolheu poemas bem diferentes dos que eu escolhi, o que acho bastante curioso. Mostra como em grande parte os critérios acabam sendo subjetivos mesmo. Mas nossa intenção maior é apresentar novos poetas, então fico muito feliz em ver esses ecos acontecendo assim já com nossos primeiros livros.
É possível falar que temos uma pequena antologia do autor?
Acho que sim. Literalmente é uma pequena (pequeníssima) antologia; ou melhor, um modesto florilégio. É um livro bilíngue de 60 páginas, não caberia muito mais do que colocamos ali: oito poemas (alguns curtos, outros longos). Mas onde dois ou mais poemas estiverem reunidos, alguém dirá que é uma antologia e outro alguém criticará suas escolhas. E eu aceito isso de bom grado.
Yau é um poeta experimental que usa verso livre e trechos em prosa para atingir seus objetivos. Há um poema, em Sotto voce, chamado “Soneto quebrado” – no qual fala, de forma melancólica, como o mundo está em processo de degradação política, humana. Na sua opinião, é possível fazer algum tipo de inferência a partir do uso da estética experimental e da visão do mundo como um broken sonet?
Vou esticar a ideia. Mas falo, claro, da minha leitura, não sei se o Yau concordaria. Pode haver uma ligação. O deserto do real é algo muito complicado; gera uma certa angústia na gente, não? Às vezes o mais fácil é ignorar. Essa busca por formas novas (ou por ressignificar formas velhas) é, em parte, uma tentativa de entender a bagunça que fizemos (quem, eu? você. eu não. então quem foi?); e também o nosso papel em tudo isso. São clichês, mas são verdade, o mundo é fragmentário, somos inundados por informação e estímulos, não damos mais conta de entender nossa realidade como um todo etc. Acho que o poema Soneto Quebrado fala sobre isso. Há, portanto, um inferência, que foi sua pergunta. Se o mundo – e a gente – não estivéssemos de alguma maneira quebrados (não fôssemos um broken sonet) escrever seria uma atividade meio chata... vazia de busca. Valeria a pena ler? “De quem é esta história e porque ele a lê?” Será que ela é minha? E que tempo é este em que vivemos, “de fogo e imagens de fogo subindo para o sol”? Se o Yau não achasse em alguma medida que o mundo fosse um broken sonet certamente não escreveria estes poemas “experimentais”, como você disse, porque não precisaria buscar uma forma nova para expressar o que está pensando, sentindo, vendo etc.
Em Yau, a herança talvez possa ser entendida em sentido mais amplo, como influência; como algo que abrange não apenas a ancestralidade, mas referências de natureza não familiar (a arte, por exemplo). Existe uma preocupação clara em tomar essas influências familiares e artísticas da pintura (Pollock, Yves Klein) e da literatura (Baudelaire, Emily Dickinson, Drummond) e transformá-las em algo particular. Como enxerga esse processo?
A boa literatura se move entre o particular e o geral das nossas experiências e influências, e com o Yau não é diferente. Os poemas, afinal, são deles, são fruto de suas leituras e perguntas. Mas se por um lado podemos dizer que ele ressignifica através da própria história e interpretações influências como Pollock, Klein e Drummond, também é possível dizer o contrário, que ele transforma influências e questões específicas em algo geral e acessível ao leitor. Por isso vale a pena lê-lo. No poema Outras aventuras em monocromo IV, por exemplo, que é parte de um catálogo criativo que Yau criou para uma exposição de Yves Klein, ela habita a voz do próprio pintor e tenta explicar as suas obsessões, buscas e angústias. Quer dizer, ele propõem um exercício interpretativo. Ao fazer isto, ele nos convida a dar o mesmo passo, e assim buscar o que há de geral nestas experiências e influências específicas. Talvez você nunca tenha sentido obsessão por um pigmento azul e saído pintando tudo desta cor, mas você certamente já sentiu obsessão por algo, já quis dizer algo e não encontrou palavras, e assim por diante.
No poema O reino da poesia, dedicado a Carlos Drummond de Andrade, Yau explora o fazer poético pela negativa: ele diz o que não é a poesia. Isso nos alude à pintura – lembro de Magritte em Isto não é um cachimbo. No livro, me parece central o desejo em lançar ideias sobre a influência (herança), sobre o que é a arte a partir da pintura e da poesia, e também de pensar as formas (linguagens) da arte. Parto da ideia de que é um livro metalinguístico em um nível mais profundo: não é a poesia, mas a arte o seu objetivo final. Pode comentar essas afirmações?
Gosto da comparação com Magritte. O engraçado é que não é, mas é um cachimbo. É a imagem de um cachimbo, que é o que podemos esperar de um quadro... Há uma ironia em tudo isso e o Yau explora bem esta questão. Afinal, ele não segue ao pé da letra as recomendações que dá em O reino da poesia. Que poeta nunca desvia da sua poética ideal? A lição, entretanto, é valiosa: “enterrem seus espelhos”. Se for por vaidade, melhor nem começar. A busca precisa ser mais profunda. E isto vale para a arte em geral, não só para a poesia. Vale para a vida. O Yau gosta de falar que não é um crítico de arte de formação, mas escreve sobre arte assim mesmo, para horror de alguns acadêmicos, e em grande medida a partir da sua experiência poética. Acho que isto está presente no livro, uma reflexão sobre linguagem que transcende a poesia e a arte, e adentra na vida. Sem busca e questionamentos tudo fica muito chato. Vira repetição. O livro se propõe a olhar para coisas diversas que compõem a vida do poeta e tentar dar um sentido a elas, poesia, artes plásticas, e a história de vida do Yau se misturam neste processo. O livro é sobre tudo isso.
Ao fim do livro, você agradece algumas sugestões dadas para traduzir um poema. Gostaria que falasse dos desafios em traduzir um autor que, em alguns poemas, brinca com sotaques.
O mais importante é ver o poema traduzido funcionando por conta própria e isto às vezes implica trair um pouco o sentido original, e mesmo criar outros sentidos, dentro da lógica do próprio poeta. Se você perde algo irônico ali, crie algo irônico acolá. Se ele propõe um jogo de sons que não funciona em português, proponha um que funcione. Acho que o leitor aceita isto bem, quando é feito de forma consciente. E, particularmente, em um poeta como Yau, que está sempre explorando novos sentidos, sons, grafias etc. esta abordagem um pouco criativa parece particularmente bem-vinda.
De forma mais concreta, um poema como In gu rês [referência à forma como estrangeiros com sotaque asíatico falam a palavra "inglês"] impõe como você apontou alguns desafios particulares, porque joga com sons e sotaques do inglês americano que nem sempre transferem bem para a língua de chegada. Como estes sotaques não existem em português, mas sim em inglês, eu tentei procurar outros que passassem ideias semelhantes. Vou dar um exemplo: no fim do livro eu agradeço o pessoal que participou de uma oficina de tradução na Casa Guilherme de Almeida onde eu li “In gu rês”, ainda numa tradução literal, e compartilhei algumas dúvidas que já tinham surgido. Lá apontaram, por exemplo, que se eu traduzisse “Ing Grish”, por “In grês” a impressão que passaria não seria de um sotaque “chinês”, mas de um marcador de classe... afinal, estamos no Brasil. Então na conversa alguém sugeriu tentar com um sotaque asiático-brasileiro, talvez mais ligado a sons do japonês ao invés do chinês, então acrescentamos o “u” na palavra: “in gu rês”. Chinês é tonal, não tem vogais, mas no japonês as vogais são marcadores fortes. O resultado ficou interessante e, como eu não encontrei outra alternativa que me parecesse melhor, fiquei com esta. O tradutor precisa ir brincando com os sotaques, com as rimas, com os sons etc. até achar uma versão de que goste. O que não quer dizer que não existam outras opções melhores. Agora, a tradução de um poema difícil de traduzir como esse, certamente ganha muito com o diálogo... É impressionante como as vezes outra pessoa resolve num piscar de olhos um problema que está te assombrando há semanas e você não parece encontrar uma solução. No meu caso, tanto a Vilma Arêas e o Eric M. Sabinson, que traduziram os outros dois livros que publicamos agora, como a Adi Gold e o Rodrigo Nascimento, parceiros na editora, leram e deram inúmeras sugestões à tradução. O resultado, quando se tem interlocutores como esses, fica sempre melhor.
Com Yau, são três títulos até o momento da Jabuticaba: a ele se juntam um livro de Anne Carson e outro de Walt Whitman. Por que a escolha pela poesia estrangeira - e, até agora, da América do Norte: Canadá/EUA?
Poesia em tradução não é algo que grandes editoras tendem a se interessar muito, principalmente a contemporânea e experimental. Então achamos que era um espaço que poderíamos preencher. Lógico que parte disso é que também traduzimos... E quem traduz tem esta coisa esquisita: as vezes lê algo e pensa, uau, e se eu jogar isso no liquidificador do Brasil? Será que vitamina fica boa? Como será que leriam? Será que traduziria bem? Com a editora a gente pega e joga, sem ter de ficar levando os projetos para outras editoras e recebendo um não atrás do outro por motivos mais diversos, desde “sai para lá que eu não te conheço”, até “estamos com o planejamento fechado para os próximos dois anos”. Por outro lado, a gente também tem o desprazer de falar isso para os outros... me fez uma pessoa mais compreensível. Mas como somos pequenos e fazemos tudo entre nós mesmos, acabamos conseguindo fazer somente nossos próprios projetos, o que explica esta ênfase, por enquanto, na América do Norte. Como eu morei lá um bom tempo, e a Adi também, foi natural querermos capitalizar em nossa vida por lá, nossos amigos, nas leituras que frequentávamos etc. O Whitman, na verdade, era um projeto antigo do Eric, que ele topou publicar conosco. E a Vilma tinha vontade de traduzir a Anne Carson antes mesmo de a procurarmos para isso. Então tudo calhou para os livros serem estes.
Vale dizer que quando o Rodrigo se juntou a nós na editora, já tínhamos começado estes primeiros projetos, que ele ajudou a terminar. Nós nos entendemos muito bem, claro, mas também temos gostos e interesses diferentes, então agora há um processo de diálogo e debate que vai enriquecer e amadurecer a editora para os próximos projetos. Enquanto era só eu e a Adi tendíamos a concordar em tudo, o que acaba sendo menos interessante. Conforme nosso catálogo for crescendo, vamos também ficando mais heterogêneos e, dentro das nossas possibilidades, vamos abrindo as portas para outros projetos, outras línguas, outros tradutores etc.
Pode falar sobre os próximos lançamentos da editora?
Estamos agora em fase de traduzir nossos próximos projetos, que queremos lançar lá para Julho/Agosto. A editora é pequena e nosso planejamento, por enquanto, é este: 3 ou 4 livros por semestre. Os próximos três livros serão uma tradução da Segunda Epístola de Horácio, traduzida jazzisticamente pelo Douglas Pompeu. É um texto-poema curto, mas muito interessante e traduzido do latim, que versa exatamente sobre o lugar da poesia no cotidiano... um tema caro para a gente e sempre em voga.
Estamos também começando uma pequena série onde convidamos um poeta estrangeiro a organizar uma pequena seleção bilíngue de cinco poetas de seu país de origem, para apresentá-los no Brasil. Vamos começar com Cuba, e o poeta José Ramon Sanchez está a encargo da seleção e apresentação. Devemos anunciar em nosso em breve os cinco jovens poetas da coleção. E, por fim, eu estou traduzindo uma poeta americana que acho brilhante: Rosmarie Waldrop. Vamos fazer uma seleção de algumas sequências de um livro dela chamado Driven to Abstraction. Estamos muito felizes em traduzi-la. Ela, nos EUA, comanda junto com o também poeta Keith Waldrop uma pequena editora chamada Burning Deck Press, que apresentou nos últimos cinquenta anos diversos poetas de vanguarda franceses e alemães aos EUA, em traduções feita principalmente pelos dois. Um trabalho sensacional que, de certa forma, nos serve de inspiração. A poesia dela retoma de uma maneira própria alguns temas e formas tanto do John Yau como da Anne Carson, afinal, eles são todos da mesma geração, e fala de cosias tão diversas como a música de John Cage e a guerra no Iraque. Achamos que será uma continuação ótima para os livros que já publicamos.