Ruth de Souza e Carolina Maria de Jesus na Favela do Canindé. São Paulo 1961

Na imagem, Carolina Maria de Jesus ajuda a atriz Ruth de Souza na pesquisa para compor a protagonista (chamada Carolina de Jesus) da peça Quarto de Despejo, em 1961

 

A produção literária de matriz periférica vem conquistando visibilidade a golpes de facão. A expressão não é gratuita: trata-se de um esforço contínuo na publicação de obras, promoção de eventos, articulação de diálogos, realização de pesquisas acadêmicas – enfim, todo um circuito que vem agenciando de forma contínua as produções não hegemônicas que trabalham, entre outras coisas, as complexidades históricas do que é viver e continuar vivendo na periferia.

Desconhecemos a existência de números sobre essas publicações, mas é notória a produção periférica de matriz feminina. O resgate de Carolina de Jesus – dona de uma literatura reconhecida por parte significativa da crítica, mas ainda alvo de preconceitos, tomada como uma espécie de ícone maior desse movimento – é um indicador visível do protagonismo das autoras. Uma série delas segue seus rastros: Conceição Evaristo, Elizandra Souza, Luz Ribeiro, Tula Pilar Ferreira, Esmeralda Ribeiro e muitas outras.

O curso Pelas Margens: vozes femininas na literatura periférica pode ser entendido como reflexo desse movimento, mas também um estimulador. Ministrado pela jornalista e pesquisadora Jéssica Balbino, o curso pretende dar um panorama da produção de matriz feminina e marginal/periférica desde Carolina de Jesus (anos 1960) até os slams ("batalhas" entre poetas, na qual recitam versos autorais). Em conversa com o Pernambuco, ela fala que essa produção é muito singular quando comparada à de outros países.

As aulas são online, ficam hospedadas em uma plataforma digital para quando as/os alunas/os puderem assisti-las. O curso têm duração aproximada de um mês e meio (19 de junho a 3 de agosto) e vêm atraindo pessoas de todo país e do exterior. As inscrições seguem até esta quinta-feira (15), custam R$ 60 e podem ser feitas clicando aqui

A grade foi montada a partir da pesquisa de mestrado de Jessica na Unicamp, uma investigação sobre quem são as autoras à margem – o que elas fazem, como vivem, como começaram a escrever, que saraus e espaços frequentam e sobre o que escrevem.

Para entender um pouco mais as propostas do curso e a pesquisa de Jéssica, conversamos com ela por email. Abaixo, a íntegra do diálogo.

 


O curso dialoga com sua pesquisa de mestrado sobre a literatura de matriz feminina e periférica no Brasil. E ele começa já no formato online, disponível para interessadas e interessados de todo o país. Como sente a demanda das/dos leitoras/leitores por esse tipo de conhecimento?

O curso é uma demanda que já vem de algum tempo. Muita gente me procurava pedindo acesso ao material, aulas etc. Fazê-lo online foi uma forma de democratizar, uma vez que muita gente acompanha tudo que ocorre no cenário da literatura marginal/periférica pela internet. Eu montei o curso e pensava em atender às pessoas que já tinham me procurado, mas a resposta foi muito positiva. Logo no primeiro dia, pessoas de estados como Pernambuco e Pará se inscreveram e me agradeceram pelo acesso, porque onde vivem é mais raro chegar cursos presenciais assim. Então, podemos dizer que a demanda é positiva e crescente. Há bastante gente fora do eixo Rio-São Paulo interessada neste tipo de produção. Já tenho, inclusive, alguns inscritos que vivem fora do país, como Estados Unidos, Itália e Grécia.

 

Pode falar sobre as noções de marginalidade e periferia com as quais trabalha?

É um conceito amplo, né. Na minha pesquisa eu trouxe tudo que está Pelas Margens, como o nome sugere, então trabalho com o que está à margem editorial, mercadológica, de gênero, de tema, de tudo e de periferia a mesma coisa. Eu trago a produção que teve início no começo do século [XXI], com a publicação da revista Literatura Marginal (atos I, II e III) pela [revista] Caros Amigos e trato aquele momento como o ‘início’ da literatura tal qual a consumimos atualmente. Meu levantamento de mulheres se dá, principalmente, a partir daí, mas é claro que aparecem outras autoras – e até autores – neste percurso e que são mencionados.

 

O programa de aulas parte de uma indagação sobre quem são as vozes femininas na literatura marginal/periférica. Você escolheu começar com Carolina de Jesus. O que a fez escolher esse recorte, visto que temos produção de autoria feminina e periférica desde meados do século XIX (desde Maria Firmina dos Reis)?

Eu escolhi a Carolina Maria de Jesus pela importância histórica que ela tem e por ser uma referência muito citada pelas mulheres com quem conversei. Não que a Maria Firmina dos Reis não seja. Ela é. Mas a Carolina marca um período e também ela tem um tipo de literatura documental, que fala de um período, que é quase uma reportagem sobre aquele local e tempo e optei, pelo meu tema, começar com ela.

 

Uma das observações que é feita na divulgação do curso é a de que o movimento da literatura tal qual será abordado só existe da maneira como aqui é apresentado no Brasil. Você chegou a observar a produção feminina e periférica de países vizinhos?

A forma como a literatura marginal/periférica se dá no Brasil, sendo construída há mais de uma década, de maneira coletiva, como um ‘movimento’ que começa nos saraus, na publicação das antologias vai para os slams, conecta pessoas, cria editoras independentes e um mercado paralelo a partir de sujeitos que vivem nas periferias é algo que só acontece no Brasil. Há, por exemplo, similaridades no slam, que ocorre em todo mundo, mas, a forma de organização, de trabalho, de criação, é única aqui. Temos alguns autores pela América Latina, na Argentina, no México, onde, inclusive, uma antologia com poetas brasileiros foi publicada, mas, da forma como ocorre aqui, eu ainda não vi algo parecido ou tão numeroso. Em Cuba, há uma movimentação também, mas não como aqui. É uma singularidade.

 

Será trabalhada a produção de autoria transfeminina?

Vou dar uma pincelada no tema. Há algumas autoras, como a Amara Moira, que são expoentes no tema e é importante pensarmos nisso, tocarmos no ponto, apresentarmos. O momento chama por isso. Não é o foco da minha pesquisa, mas quero falar e também ouvir/ler sobre.

 

No site margens.com.br, você disponibiliza um formulário de inscrição para escritoras o preencham e entrem no mapa das autoras periféricas que você está criando. Como funciona esse contato? Você acompanha a produção literária delas?

A ideia do mapa surgiu quando eu fazia o mestrado e encontrei muitas mulheres escrevendo, um número superior ao que eu tinha imaginado. Então, eu resolvi criar o formulário online por dois motivos: para facilitar a catalogação e para impulsionar o protagonismo destas mulheres. Elas mesmas escolheram se queriam se “automapear” e puderam responder o questionário. Eu divulguei o questionário e as mulheres foram aparecendo, divulgando entre si. Para a pesquisa, ficou aberto 6 meses. Agora, continua. Eu atualizo os dados e jogo no mapa do blog. A ideia é que as pessoas saibam, conheçam a literatura feita por mulheres no país. Eu acompanho, ou tento acompanhar, porque é vasta a produção, o que me deixa muito feliz, porque é mais amplo do que eu imaginava.

 

A pesquisa que fez para seu trabalho de mestrado resultou, também, em um documentário e em um livro. Pode falar sobre o livro? Já tem previsão de lançamento?

Quando eu fui fazer as entrevistas, pensei: por que não gravar em vídeo e fazer uma reportagem depois? Essa era a ideia inicial, uma vez que o programa [de pós-graduação] a que eu estava matriculada era de Divulgação Científica e Cultural. Aí, quando fui editar, percebi que tinha mais do uma reportagem, tinha um documentário. Então, editei e se transformou em um material de 66 minutos. Já o livro é o resultado da dissertação, que eu optei por usar uma linguagem de jornalismo literário. Ainda não tenho previsão de lançamento. Eu ia publicar de forma independente, mas recebi a proposta de uma editora e estou avaliando. Gostaria de concluir ainda este ano, mas não sei se consigo.

 

A quem interessar, como ter acesso ao documentário?

O documentário ainda não está disponível na internet porque eu tenho feito exibições em alguns espaços fechados, escolas, ONGs etc, além de festivais. A ideia é desmembrá-lo por temas e colocar na rede, mas ainda não tenho uma data para isso. A boa notícia é que quem fizer o curso receberá um link exclusivo para assisti-lo.

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