Beber ElisaMendes jun17

 

"Sair para caminhar, voltar dois anos depois".

É com esta imagem que a poeta fluminense Bruna Beber (1984) fala sobre os processos que atravessam seu livro mais recente, Ladainha (Record). Mas parece cedo para falar disso: Bruna lança a obra hoje (20), na livraria Taperá Taperá (Av. São Luís, 187 - loja 29 - São Paulo), a partir das 18h. No dia 27 de junho, o lançamento ocorre no Rio de Janeiro, na Livraria da Travessa de Botafogo (Rua Voluntários da Pátria, 97), também às 19h.

Mesmo cedo, conversamos com a autora sobre Ladainha e, no diálogo abaixo, ela deixa claro como a obra tem marcas diferentes se comparada com seus outros quatro livros de poesia. Se seus primeiros livros falavam muito sobre o tempo presente e o penúltimo, sobre o passado, em Ladainha ela diz deixar o futuro de lado e investir em "tempos novos, alheios, subtempos, contratempos, uma presença espessa de definição ressignificada".

Nesta conversa com o Pernambuco, Bruna Beber também explora sua relação com a palavra, com o áudio dos poemas (disponíveis em seu site), com sua produção em outras formas artísticas (escultura, sons, fotografia). 

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Ladainha é seu quinto livro de poesia. Nele, parece haver um estranhamento da palavra, que vai desde os títulos das seções, nos quais brinca-se o negrito: vidádiva, canseios, meu deos; passa pelo fato de o grande e o trivial dividirem o mesmo poema; e segue pela exploração da diagramação dos versos. Você cria palavras e expande sentidos. Qual o lugar de Ladainha na sua obra?

Ainda não sei dizer, ao certo, e gosto dessa falta de certeza, mas vejo no Ladainha uma espécie de antinomia. Eu quis pôr em conflito meus próprios modos de fazer poesia, quis esmiuçar a vontade do imaginado e me aventurar profundamente no mistério que é escrever, reescrever, fazer escolhas, mudar de ideia e negar tudo em seguida. Foi muito mais que um risco, pois desde sempre me propus desarmada, com poucos negativos e mapas. Gosto de pensar na seguinte imagem “Sair para caminhar, voltar dois anos depois”. Eu quis me submeter e me submeti a todo momento. Por isso, vejo o Ladainha como um livro sem filiação, cheio de desabamentos, afogamentos, superoxigenação e recomeços.

Eu quis criar novos assuntos e me afundar em suas camadas, nas que criei porque quis criar e nas que se criaram por cima, sozinhas, contrapostas, ufa. Tem muita névoa. Gosto que ele é uma matéria estranha a mim, e para mim, gosto de não termos ainda muita intimidade e sinto que cresço com ele a cada nova leitura. É bom assim, tocar o barro que eu mesma misturei e ver que ainda não está totalmente seco. Comparando com os meus outros livros, vejo também, para além de um não lugar, que o Ladainha é um livro sem tempo. Noto n’a fila sem fim dos demônios descontentes [7Letras, 2006], no balés [Língua Geral, 2009] e no rapapés & apupos [7Letras, 2012] uma forte presença do presente. Livros de juventude cheios de referências ao meu universo de então, minha formação, meus gostos e paixões. Em seguida, noto no Rua da Padaria [Record, 2013]um resgate precoce, uma vontade de cantar a infância, a aldeia, uma obsessão temática trabalhosíssima. Ou seja, um livro para o Passado. No Ladainha eu não quis o Futuro, quis tempos novos, alheios, subtempos, contratempos, uma presença espessa de definição ressignificada.

 

Todo poema carrega um rosto / e nele um susto que nunca passou. (poema 83.). O poema é um lugar de tensão?

Susto, para mim, é a palavra que melhor combina com rosto. Em quase todos os rostos tendo a procurar sustos. Sustinhos, sustões, falências, sustenidos, desmaios. É um hábito antigo, um exercício de imaginação. E é fácil de haver e de achar. O contato com o outro, nas situações mais cotidianas, pode resultar, ao fim do dia ou da vida, numa coleção de sustos de intensidades e tamanhos dos mais variados. Olhando meu rosto no espelho, por exemplo, consigo enxergar um mapa de sustos, o plano de viagem de um bicho geográfico. E, nessa caça aos sustos, percebo hoje que nos últimos anos, em virtude de tudo que tem nos acontecido política e eticamente, esses sustos tomaram a proporção de quebradeira coletiva. A tensão está em todo lugar, conjugada com intervalos sem tensão, e cada poema é um lugar onde se chega, onde se está, praonde se vai, de onde se sai ou não se sai e à vezes, por um breve tempo, onde escolhemos viver.

O poema é um lugar de tensão como são todos os lugares e estares do mundo, mas nem sempre. Não vejo regra.

 

No livro, o poema 73. diz: Eu os estranho como um velho conhecido / que não chegou a ser amigo, silêncio cheio / de ilusão e mandioca madura // Poemas de corte, de raspagem, de forma / e de detalhamento: ladainha, / o ritmo é raríssimo de se mamar na musa. Na sua visão, é possível entender esse poema como uma poética de toda sua obra ou para este livro, apenas?

Sim e não. Acho que a poética que venho construindo desde que comecei a escrever e publicar culminou no Ladainha, como geralmente se espera, mas vejo outros resultados e caminhos. Ele não é uma consequência dos outros, embora dê sequência a algumas continuidades, mas ele não resume nada. Acho, inclusive, pra mim, como autora, que ele não se resume nem se encerra nele mesmo. Mas são os sentimentos de quem faz, que é uma pessoa só, em contraposição aos sentimentos de quem lê, de quem lê atentamente, que são no mínimo três, no máximo trezentos. Sinto que terminei esse livro deixando muitas portas abertas para mim e, assim, me abrindo novas. É um todo que junta diferentes partes, isto é, uma composição, é um começo. Então, estilisticamente, ele é bem mais variado e o sentimento que me mais me paira é esse mesmo, o de começo. Publiquei cinco livros de poesia, é tão tão tão pouco. Tenho 33 anos, tenho tão tão tão poucos anos. Sinto que estou engatinhando ainda e fico encantada com o que ainda tenho de possibilidades, de variação, de elaboração dos rumos da minha poética. Sinto hoje ainda mais que a minha poesia tem caminhado com a minha própria vida, elas se aproximam e se repelem, e eu não sei mais fazer distinções. Eu sei só que se continuar escrevendo, coisa que pretendo fazer mas não há garantias afinal não há garantias para nada, vou continuar fazendo da minha poesia o que faço da minha própria vida, uma busca, uma tentativa. Em cada palavra eu vejo cem mil caminhos, em cada verso eu vejo trezentos mil finais, ausências de finais, novas paisagens, e ao final de cada poema que escrevo eu só espero não saber onde vou chegar, mesmo que queira saber e às vezes ache que sei. Ao final de cada livro, então, posso afirmar muito pouco. Escrever, amar, viajar, essas coisas dão mais vontade de viver. Por ora, me contento com isso.

 

Em seu site, há áudios nos quais você declama alguns dos poemas do Ladainha. À primeira vista, parece ser um recurso que aproxima você dos leitores e também agencia uma forma de leitura dos poemas – por exemplo, li o seu poema 47. de uma determinada forma (enfatizei uma ideia de tédio que senti nos versos, à primeira vista). Ao te ouvir, o poema ganhou outros sentidos. Quais as possibilidades, para você, abertas pelos áudios?

Desde o meu primeiro livro – a fila sem fim dos demônios descontentes – gravar os poemas sempre foi uma ferramenta de edição e composição. Eu sempre gravei todos os poemas que escrevi, inclusive cada poema várias vezes, mas nunca havia mostrado para ninguém. Ao longo do tempo, fui aprendendo a me ouvir, a me acostumar com a minha própria voz. De lá pra cá já são 11 anos publicando, gravando poemas sem mostrar pra ninguém e, cada vez mais, apresentando meus poemas (e, com certa regularidade, de outros que amo, como a “poeta” Stela do Patrocínio) publicamente.

No Ladainha, a relação da voz com a minha poesia se intensificou, do ritmo com a forma, e eu resolvi tornar esta etapa pública, pois ela é sobretudo processo, mas agora também fim, e comecei uma nova fase que, tomando da resposta anterior, é composição. Sou uma grande fã da poesia falada, mas não sou desses poetas habilidosos com público, com palco, não tenho muitos recursos cênicos, mal sei movimentar meu corpo num palco, mas a voz é minha, posso fazer com ela o que eu quiser, e assim fui buscando meu tom, meu jeito de andar dentro do poema. Esse áudios podem ser vistos como assovios? Talvez. Não imaginei que isso me aproximaria dos leitores, tampouco quis tutoriar o ouvido do leitor para a minha própria leitura, mas sei que esses áudios me ajudaram, mais do que nunca, a me aproximar da poesia que faço hoje. E, também não é todo mundo que vai ler o livro que vai ouvir os áudios, embora haja uma placa sobre isso ao final dele. É uma pena, ou talvez não, vendo pelo seu lado. Segue o link rs: http://brunabeber.com.br/portfolio/ladainha/

De todo modo, isso que você me diz de “agenciamento da leitura”, eu já ouvi outras pessoas dizerem, e, embora, ache “agenciamento” um pouco pesado, ouvi essas mesmas pessoas dizerem que não conseguem mais ler o poema ao modo delas sem ouvirem a forma como o li e gravei. Algo como ler uma letra de música. Isso não foi intencional, mas talvez aconteça. O que acontece também é que no último ano, eu me apresentei lendo poesia pelo menos umas cinquenta vezes, e tudo o que li foi do Ladainha, ninguém nem sabia. As pessoas que ouviram e leram o livro agora dizem já ler os poemas ouvindo a minha voz. Mas as pessoas que leram e só agora estão ouvindo, vão para outros lugares. A meu ver, o tanto de possibilidade que tem nisso é bom. Quais são todas elas eu não sei, mas gostei de mostrar. Eu adoro ler poesia em voz alta, adoram que leiam para mim. Não acho que ajuda nem atrapalha a leitura, é só mais uma nota.

 

Você passou dois anos trabalhando nos poemas de Ladainha. Seu último livro de poemas é de 2013. O anterior a este, de 2012. Quanto tempo dura um poema, um livro?

Meu último livro de poemas – Rua da Padaria – saiu em 2013, mas eu terminei de escrevê-lo em 2011. O anterior a este – rapapés & apupos – saiu em 2012, mas ele é uma coletânea dos poemas que ficaram de fora do meu primeiro livro – a fila sem fim dos demônios descontentes – que é de 2006. Não sei quanto tempo dura um poema ou um livro, ainda bem. Alguns poemas que amei/amo seguem eternos, os livros tendem a morrer com mais velocidade. Mas, no meu julgamento, os livros que amei sempre terão uma sela especial. 

Agora, o que “sobrevive” dos meus livros raramente são as coisas que mais gosto neles. Por exemplo, há um caso particular que sempre gosto de contar. No Rua da Padaria, há um poema chamado “romance em doze linhas”. Eu o chamo de minha Anna Júlia [em referência à música do grupo Los Hermanos, muito tocada na virada dos anos 1990 para os 2000 e que marcou a trajetória da banda], pois não passo uma semana sem que ele não reapareça para mim, não há um lugar que vou que as pessoas não me peçam para lê-lo. Só no Facebook, ele já foi compartilhado mais de cem mil vezes. Ele já foi parar em páginas de quote na internet. Ele já circulou por aí assinado pela Clarice Lispector (rs), pela Clarice Falcão (rs) e por “autor anônimo”, o que de fato sou. Já aconteceu de estar em lugares e alguém citar esse poema, sem saber que eu era autora e estava ali. Outras pessoas já utilizaram ele como About do Tinder rs, eu tenho alguns prints que me mandaram, outras já fizeram camisetas com ele. Ou seja, esse poema não é mais meu, e ele tem durado. 

Queria continuar tentando responder, mas não consigo afirmar nada, poesia pra mim vem muito do instante, que parece clichê mas é mais.

 

Você também trabalha com outras linguagens artísticas (esculturas, sons, fotos etc). O processo de criação da poesia escrita se mistura com o de outras linguagens ou cada forma tem um momento próprio?

Tudo que já desenvolvi em artes visuais passa pela palavra – escrita, lida, falada, desenhada. O que não passa? Como toda criança que está aprendendo a escrever, eu gosto de rabiscar todas as coisas. Como toda criança que está aprendendo a falar, eu acho graça em todas as palavras. Como toda criança que está acabando de nascer, tudo para mim é descoberta. E a palavra é isso, começo, o momento próprio de tudo que faço. Então, hoje eu te diria que sim, que a poesia escrita se mistura com tudo. Mas, no Ladainha, por exemplo, eu fiz exercícios inversos a partir de outros impulsos: tenho um grande amigo e parceiro de criação – João Gonçalves, artista plástico que assina a ilustração de capa do Ladainha – que um belo dia me deu um livro que ele mesmo tinha feito, intitulado Vilipendibook. Ele ilustrou o livro inteiro, encadernou, fez uma capa de resina com fósforos queimados, botou mais de cem páginas e disse “faz o que quiser”. Ele nunca teve esse livro de volta, está comigo até hoje, mas ali eu iniciei muitos poemas do Ladainha pois foi bem no meio do processo de escrita, e dali saiu inclusive o título do livro. Um dia quero aprender a desenhar.

 

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