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Que a programação da Flip 2017 está diferente em relação a dos anos anteriores, não é novidade. Bem recebido pela crítica, o trabalho da curadora Joselia Aguiar primou pela paridade entre os gêneros, pelo aumento da presença da autoria negra, inseriu a poesia por toda programação. Apesar de trazer com mais força a pluralidade do mercado editorial, ela afirma que “o programa não espelha o mercado, é uma nova proposta de representação, um recorte construído pela curadoria”.

Esse recorte não é, para Joselia, reflexo de uma postura ativista – mas, sim, da promoção de choques entre diferentes lugares de fala e obras para realização de um debate criativo.

Entretanto, ela reconhece que ainda há muito chão pela frente para poder conseguir acolher bem essa pluralidade. Nesta conversa com o Pernambuco, a curadora fala tanto dos desafios quanto de algumas ideias por trás das mudanças que implementou na programação.

Jornalista e doutoranda em História (USP), Joselia acompanha o mercado editorial há anos. Para ela, um ponto relevante e pouco notado da programação é o de que “a literatura volta a ocupar o centro das mesas”, em contraste com eventos que renunciam ao literário como forma de atrair público. Tratar o autor homenageado – Lima Barreto – como um escritor, e não como vetor para discussões de cunho mais sociológico, é algo que ela busca reforçar.

 

A programação da Flip recebeu diversas críticas positivas e o claro reconhecimento de que está mais aberta à diversidade. Há sentimento de dever cumprido?

Saber que há entusiasmo me deixa contente, sim. Às vezes noto que, para alguns, diversidade e qualidade seriam retas paralelas que não se cruzam. É por isso que, nas entrevistas após a coletiva, tenho insistido em dizer que nesse horizonte ampliado há talentos igualmente grandes, apenas não estão facilmente ao alcance da vista. Foi o caso de Lima Barreto em sua época, não? Em universidades estrangeiras, a diversidade é vista como potencializadora da qualidade, o raciocínio é que as diferenças ampliam os choques criativos. Também noto que, para alguns, o programa com mais diversidade seria resultado de uma postura ativista da curadoria, quando o mais óbvio seria esperar que houvesse mesmo diversidade em todos os campos do país, e não o contrário. Existe paridade – 22 homens e 24 mulheres – e um percentual de 30% de autores negros que de fato não é grande. Sei que o programa não espelha o mercado, é uma nova proposta de representação, um recorte construído pela curadoria. Digo que a ideia foi selecionar livros que estavam nas prateleiras de baixo ou de cima das livrarias, talvez um pouco mais escondidas, não aqueles que estão necessariamente na entrada. No final das contas, a Flip contribui para colocar a literatura em pauta e também para trazer autores ainda pouco conhecidos para a frente da loja.

Em novembro, completam-se 95 anos da morte de Lima Barreto. Sua vida e obra encarnam uma série de questões úteis para discutirmos a literatura e o país. Como o esforço para discutir esse autor dialoga com outras nuances da programação, a exemplo dos diálogos da literatura com outras artes?

Cada detalhe está pensado, e devo ter feito escolhas inconscientes que me levaram aonde queria chegar, diria até que os imprevistos também ajudaram a deixar o programa como ficou. Primeiro, foi muito importante desde o começo definir que Lima Barreto seria visto como escritor, não apenas um vetor para tratar da questão racial. A questão racial apareceria no programa, de modo algum seria escamoteada, até porque ele a colocou em primeiro plano. Mas tanto Lima Barreto quanto todos os autores e autoras negros convidados seriam vistos em sua individualidade de artistas, cada um com sua trajetória, visão, linguagem, muitas vezes com influências e perspectivas diferentes, em certos casos há mesmo os que não desejam tratar particularmente da questão racial. Ou seja, não podemos aprisionar autores dentro de um papel ou expectativa; devem estar livres para fazer a obra que querem realizar. A literatura volta, portanto, a ocupar o centro das mesas, com autores que exercem o ofício em todas as formas praticadas por ele. No programa, estão muitas das questões literárias e sociais que atravessam a obra de Lima Barreto, como os limites da ficção e da não ficção, o papel do escritor, a etnografia da cidade, a diferença de cor e classe, os desastres daquela República recém-instalada. Conto que segui na direção dos subúrbios, não apenas o registrado por seu olhar, como no entorno do mundo, e foi assim que encontrei línguas, mitos e culturas no Piauí, na Jamaica, em Ruanda e na Islândia, obras que cruzam fronteiras étnico-raciais, geopolíticas e de linguagem. Trazer a literatura de volta, quando tantos eventos parecem renunciar a ela para ter mais audiência, é um ponto que não foi muito notado no programa deste ano e que me parece igualmente forte.

Você também se refere às edições anteriores da Flip? O que pensa dessa aparente renúncia à literatura por parte dos eventos?

Vou começar contando um episódio que vivi quando fui editora de uma revista mensal de livros que circulou até 2008, a EntreLivros. O sucesso de um projeto editorial não necessariamente se deve ao assunto tratado; há fatores como distribuição, marketing, atendimento a assinante, gestão administrativa e financeira, parcerias, preço de capa compatível etc. A certa altura, a direção entendeu que, para alcançar mais leitores, não devíamos ter literatura como eixo principal, deveríamos contemplar outros campos. Foi quando começamos a perder leitores. Desde o fim da EntreLivros tenho assistido a muitos casos, de publicações e mesmo eventos que, a certa altura, investem em atualidades. E conseguem, sem dúvida, gerar mais noticiário “quente” para a cobertura jornalística. Se reparar, há uma quantidade de suplementos que deixaram de existir, e não apenas no Brasil, em todo o mundo. Esse raciocínio, o de que para aumentar audiência não se pode ter apenas literatura, é permanente, é triste e nem sempre é tão claro e consciente. Então, se uma festa tem força para pautar a literatura, isso é importante e precisa ser cuidado. No caso específico do Brasil, é algo de ainda maior necessidade, porque ainda é preciso formar leitores.

Com uma programação diversa e paritária, qual a expectativa da Flip em relação ao perfil do público?

A minha expectativa é que haverá mais gente ligada a literatura, não apenas estudante ou profissional da área. Digo, leitores mesmo, desses que nunca deixam de comprar livros mesmo quando a situação econômica não é favorável. Também gostaria muito de ver mais diversidade nesse público, embora isso não esteja exatamente ao alcance da Flip. Depende de muitos outros fatores e de mais tempo.

Como trabalhar um evento deste porte com uma redução de orçamento?

Não houve limitações significativas na curadoria, o redesenho da Flip foi maior no que se refere à ocupação do território. A nova concepção do evento reorganiza a festa em torno da praça, um projeto mais sustentável no longo prazo e que também é mais inclusivo. O espaço para não pagantes aumentou, isso sem falar da opção de assistir de qualquer ponto da praça. Então, de certo modo, a Flip de Lima Barreto também será mais popular.

Agora, gostaria de discutir algumas nuances mais localizadas da programação. Durante a coletiva de imprensa (30 de maio), houve uma cobrança da repórter do site Blogueiras Negras a respeito da presença de pessoas negras na coletiva e na programação (“onde vocês veem 30% de negros, vejo 70% de brancos”). Para você, como soa essa crítica?

Não vi como uma crítica pessoal, vi como uma ponderação importante da parte de uma ativista, é esse seu papel. Ampliamos o número de veículos que receberam o aviso da coletiva, então o site Blogueiras Negras foi avisado e era super bem-vindo lá, assim como o será também na Flip. Sabia que tínhamos alcançado uma mudança sensível, e ao mesmo tempo há muito chão pela frente. Por exemplo: seria excelente ter sites ligados à intelectualidade negra fazendo a cobertura da Flip, e isso não depende da Flip. Também seria excelente que os autores e autoras negras tivessem cobertura especializada e leitura atenta, que seu número de leitores também aumentasse. Precisamos de mais críticos voltados para essas obras, e mesmo de mais críticos negros. Como disse, há muito chão pela frente. Vou dizer algo que para alguns parecerá óbvio, mas que para outros leitores não é: esse movimento todo é para ampliar a convivência, e não a distância.

Como vê, no evento, o impacto da presença mais tímida de editoras maiores?

A presença das [editoras] independentes vem crescendo ano a ano. O que aconteceu desta vez é que, além do fato de estarem ainda mais atuantes, também houve procura da curadoria por autores e autoras que se localizavam fora do centro, em geral mais publicados por elas. Mesmo os estrangeiros que ainda não tinham sido traduzidos no Brasil. O que ocorreu foi o seguinte: confirmada a presença do autor ou autora, seus editores do exterior procuraram quem pudesse publicá-los no Brasil. Uma editora de maior porte não tem às vezes como parar tudo para traduzir e mandar para gráfica um livro que apareça de repente, têm planejamento de dois, três anos. Mais uma vez, as independentes, de menor porte, conseguiram absorver esses nomes ainda pouco trabalhados no Brasil.

Existe um debate constante sobre a existência de muitos ou poucos leitores de poesia no país, que dialoga com a conhecida expressão “poesia não vende” - também controversa. Você espalhou poetas por toda a programação, em diferentes propostas.

Isso de que poesia não vende vem sendo dito pelo menos desde os anos 1930, quando de fato começou a indústria do livro no Brasil. Ocorre que temos um grande problema estrutural, além do próprio racismo, e aliás o primeiro muito relacionado ao segundo, que é o da formação de leitores. A curadoria de uma festa literária com a identidade da Flip não deve necessariamente se basear no que vende ou não, creio que pelo contrário. O mesmo raciocínio vale, por exemplo, para música de concerto ou instrumental. Uma festa de excelência pode iluminar campos e autores que não têm resultado comercial imediato. Este ano há poesia e poetas distribuídos por todo o programa, e não isolados numa mesa só. Há poetas que falam de poesia, que apresentam sua própria poesia e traduções de poesia; poetas em debates sobre escrita poética, cânone, sobre poesia e ativismo, letras de música e literatura infantil. São mesas em que se fala de poesia a partir de experiências as mais diversas, as de poetas-tradutores, poetas-performers, poetas-romancistas, romancistas-poetas, letristas-romancistas, letristas-ativistas, poetas ensaístas. Da poesia clássica ao verbivocovisual, do haikai ao slam, de letras para trilhas de filme aos documentários sobre poetas, de Safo a Waly [Salomão].

Você escreveu uma biografia de Jorge Amado, que deve sair ainda neste ano. Pode adiantar algo dela?

Jorge Amado foi – e continua a ser – um projeto transoceânico, não apenas porque ele teve uma vida com tantas reviravoltas e construiu uma obra que ainda viaja tanto pelo mundo. Precisei, em meio à pesquisa e escrita, estudar história literária, história política, particularmente a história do partido comunista; conhecer autores latino-americanos, lusófonos e africanos. Também descobri muito sobre a Bahia, veja só. Posso dizer que a ordem cronológica foi necessária para esta biografia, porque só assim o leitor poderia compreender as mudanças e também constâncias em sua trajetória e pensamento. Entendi também que o tempo inteiro trabalharia na perspectiva vida-obra, não seria apenas um livro sobre a vida de Jorge Amado, e sim sobre sua vida como escritor.

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