Diamela credito.BorzelliPhotography

 

Diamela Eltit nasceu em 1949, em Santiago, Chile. Dois de seus livros – parte de uma obra importante e necessária para a literatura latino-americana, na qual os processos ditatoriais, políticos, culturais, socioeconômicos são temáticas constantes – recebem, enfim, tradução no Brasil. São eles: A máquina de Pinochet e outros ensaios (e-gálaxia) e Jamais o fogo nunca (Relicário Edições).

Ambos apresentam não apenas os sobreviventes da ditadura como guias principais da escrita, mas, sobretudo, reexaminam o arquétipo político de um país e, ato contínuo, de um continente. Eltit tem voz lúcida, poética, atenta para este presente que se desenha desigual e confuso.

Nesta entrevista, concedida ao Pernambuco, a escritora fala sobre a presença do corpo e da memória em seus textos, do que chama de articulação psíquica da militância, da discussão de gênero na literatura e de como o modelo capitalista influencia no mercado editorial. A chilena vem ao Brasil pela primeira vez como convidada da décima quinta edição da Festa Literária Internacional de Paraty e participará da programação principal na mesa intitulada A contrapelo, que acontece na sexta-feira (28), às 19h15 – Auditório da Matriz.

 

Em Writing Story, writing trauma, Dominick LaCapra fala de uma dificuldade em contar os sobreviventes, em assimilar, de fato, a memória como estatística do horror. Acredito que os textos de A máquina Pinochet falam um pouco sobre um lugar definitivo da memória no processo histórico e político. Gostaria que você comentasse como funciona, no seu processo de escrita, o diálogo entre a memória e a linguagem.

Como você aponta, torna-se muito complexo entrar, a partir das letras, no espaço da ditadura chilena. Sempre está latente o temor de trivializar ou reduzir esse tempo cheio de signos negativos, anos atravessados por crimes e quebras de direitos. Mas, por outro lado, eu vivi esse tempo e, a partir de uma perspectiva ética, sou uma testemunha, eu diria, ativa, porque existe um presente na memória (segue ocorrendo, ocorrendo). Me dou conta que habito uma multiplicidade de tempos que atuam e se precipitam e operam de uma maneira constante na linguagem psíquica, intervindo na escrita. ​


Outra questão que atravessa os ensaios é a representação do corpo tanto como combatente quanto como receptor da violência. O corpo torna-se político a partir do momento em que as outras saídas deixam de existir. Gostaria que você comentasse essa transformação do sujeito em corpo de luta na sua escrita.

Tenho buscado, ao longo dos anos (e, seguramente, tenho empreendido uma série de fracassos), des-elitizar. Detenho-me nos corpo-vítimas que não pertenciam às cúpulas, nem sociais, nem políticas; colocar nomes e vidas concretas nas simples estatísticas. Nesse contexto, o livro da chilena Cherie Zalaquett, Sobrevivir a um fusilamiento (2005), é um modelo para pensar as vidas comuns que enfrentaram o horror e não possuem biografia à altura dos eventos extremos a que foram submetidas. Sei que existe um grau de utopia e impossibilidade em meu projeto, eu o experimento a cada instante. Mas não quero renunciar a mim mesa. Hoje, eu acho doloroso, frustrante a desigualdade de milhões de chilenos que operam como consumidores pobres e simples partes da infraestrutura. Sigo fielmente a rota dos espaços menos observados e, em certo modo, ainda mal-entendidos pelos setores que parecem progressistas.

 

Em Jamais o fogo nunca, tem-se um recorte cronológico pós-ditadura no qual a memória e o corpo aparecem novamente. Mas, na sua ficção, a memória está conectada a um certo entorpecimento e, o corpo, surge com pouca mobilidade, preso no pós-horror de angústia. Gostaria que você falasse sobre como esses dois aspectos desenvolvem-se no romance.

Na realidade, eu quis trabalhar o território da militância na sua articulação psíquica (por assim dizer) – essa específica militância dos anos 1970 que se entregou apaixonadamente à utopia. Os personagens não se adaptaram (à hegemonia neoliberal, por exemplo) aos tempos do pós-ditadura e permaneceram como células, encapsulados em suas células biológicas. Essa foi a minha intenção, mas, claro, falo isso no nível de meus desejos não da realidade do que está na novela. Também pensei (enquanto na escrita) que podiam ser personagens detidos-desparecidos, enfim, quis explorar diversos sentidos, vias. Foi complexo trabalhar o espaço asfixiante da cama. Mas assim é o literário, um conjunto de desafios.

 

Jamais o fogo nunca é narrado em primeira pessoa, pelo ponto de vista de uma mulher. A presença de narrativas escritas, narradas e protagonizadas por mulheres está em pauta na academia, na imprensa, nas publicações literárias, em clubes de leitura (como o projeto Leia Mulheres, por exemplo). Mais espaços são conquistados e a misoginia tem obtido, de alguma forma, respostas sociais imediatas. De que maneira você avalia esse espaço da mulher na literatura de seu país e da América Latina? 

Sim, de fato, existem esses espaços, mas a “necessidade” que existam dá conta de uma assimetria de proporções. Se foi indispensável atender à demanda da literatura escrita por mulheres para produzir uma certa democratização, a verdade é que a literatura continua sendo patrimônio do masculino como dominação. Em outro ponto, fora dessa esfera poderosamente literária, está o que chamam de “literatura de mulheres”, uma produção subsidiária, quase “doméstica”. Dessa maneira, reproduz-se a marginalização. O que eu acho mais interessante de observar é como os espaços artísticos, em princípio, propícios a estabelecer revoluções culturais, operam com os mesmos mecanismos que são visíveis em todo o aparato social. Penso que o Chile está capturado pela hegemonia masculina e que existe uma falha política de proporções.

 

O continente latino-americano, nos últimos cinco anos, guinou-se, mais uma vez, à direita, ao liberalismo e à religião como recurso político e social. Essa “onda” também pode ser observada em vários países europeus. De que maneira você analisa tal ponto de curva no âmbito da produção artística latino-americana e, em especial, na literatura?

Sim, você tem razão. Mas eu me pergunto se a direita, as igrejas (especialmente as que possuem grandes estruturas) somadas à aliança histórica com o capital e com os poderes militares não tem sido, sempre, o centro e o limiar de cada um dos projetos políticos – existem exceções, mas não desestabilizam a regra. Agora, com o capitalismo selvagem e sua globalização investidora é possível “ler” essas alianças e quais são os paradigmas que as sustentam. Penso que a explosão da selfie, de um eu (sempre angustiado e desejoso) dotado dos mesmos elementos ilusórios do Facebook (fundado no artifício do eu e atrelado à bolsa de valores) tocou – como não acontecia antes – nos sistemas artísticos. Esse programa do eu está, certamente, em um conflito com um nós, devido ao individualismo que impregna o modelo. No caso da literatura, um formato comercial impulsiona as grandes editoras, que têm a capacidade de instalar seus próprios requisitos muito acordados entre a sensatez e o entretenimento, e contemplam, também, a espetacularização de seus autores. Em resumo, penso que uma parte da literatura é escrita, na realidade, pelas grandes editoras, através de um processo de alta eficiência reprodutiva.

 

Nesta edição, a curadoria da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) preocupou-se em mapear escritoras e escritores fora do circuito dominante. Por exemplo, a participação de mulheres e de negros aumentou, entre outras ações que denotam um posicionamento político fortalecido e distante dos termos do mercado editorial. Qual a sua expectativa para o evento?

Do ponto de vista literário e político, acho muito estimulante o que você aponta. Eu espero sempre que os encontros literários propiciem a democratização das produções e da circulação de autores, e como poderiam acontecer sem mulheres ou considerar a fantasia branca em nosso continente explicitamente negro? Eu viajarei muito contente para Paraty e, como sempre, espero aprender com as energias e os corpos que habitam esse espaço.

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