Um dos romances mais críticos da Revolução Russa, e também um dos mais importantes do século XX, O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov (1891-1940), ganha nova edição pela Editora 34 este mês. O projeto ficou nas mãos do tradutor Irineu Franco Perpétuo. Conversamos com ele sobre a simbologia desse texto tão perseguido sair no Brasil de 2017, marcado por tantas notícias de censura, e sobre as características da famigerada figura demoníaca criada pelo autor russo.
É inegável a simbologia de novas edição e tradução de O mestre e Margarida justamente nesse momento do Brasil. Um livro que foi marcado pela censura e pela perseguição, tal e qual o seu autor. Você poderia comentar um pouco esse percurso atribulado que tanto a obra quanto seu autor viveram?
Bulgákov lutou na Guerra Civil ao lado dos Brancos, e sua relação com o regime soviético sempre foi conflituosa. Por um lado, ele não foi parar no Gulag; jamais foi preso, nem sofreu violência física. Por outro, chegou a ter apreendidos seus diários, bem como os manuscritos da novela Um coração de cachorro, e encontrou dificuldades constantes de encontrar trabalho e ser publicado. O mestre e Margarida é a obra de sua vida: trabalhou no livro durante 12 anos, de 1928 até falecer, em 1940. Boris Schnaiderman, em Os escombros e o mito (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), retrata o escritor nos últimos dias, diagnosticado com neuroesclerose hipertônica: “com os movimentos dificultados e quase cego, ficou ditando a sua mulher, até os últimos dias, alterações a introduzir no texto. Quando morreu, ele estava praticamente concluído, embora, se pudesse, Bulgákov com certeza completaria as correções que ditava”. E conclui: “fica-nos, porém, a imagem deste escritor, em seu leito de morte, ditando emendas a uma obra que ele sabia ser impossível publicar na época. Segundo a viúva, disse quando estava morrendo: 'talvez isso esteja certo. O que poderia eu escrever depois de O mestre?'” Na URSS daquela época, uma obra dessas, evidentemente, não poderia sair. A primeira publicação, com cerca de 14 mil palavras censuradas, aconteceu na revista Moscou, em 1966-67; em livro, foi publicado na URSS em 1973. A aterradora degringolada da situação brasileira que você mencionou na sua pergunta ainda não é páreo para a URSS de Bulgákov, porém infelizmente confere à obra uma atualidade inesperada.
A expressão Revolução Russa tem sido debatida ad infinitum no Brasil este ano, e muitas vezes com resultados desastrosos. No Recife, por exemplo, o MBL tentou censurar a realização de um seminário sobre a Revolução numa universidade particular. Como um livro como O mestre e Margarida pode nos ajudar a entender a Revolução?
O fato de um estabelecimento de ensino ter problemas em debater um dos eventos históricos mais marcantes do século XX só faz ilustrar o clima intelectual (ou melhor, anti-intelectual) cavernoso que reina no Brasil atual, em que a inteligência e a cultura foram transformadas em inimigas a serem derrotadas pelo tsunami neoconservador que se eleva. Quanto ao livro, a coincidência entre seu lançamento e a efeméride da Revolução Russa aconteceu por acaso, já que entreguei minha tradução em 2015, e sua publicação estava inicialmente planejada para 2016. De qualquer maneira, o livro é uma reflexão vigorosa sobre o produto da Revolução, ou seja, a URSS, bem como sobre as relações entre arte e Estado. Observador atento e satirista implacável, Bulgákov oferece uma das melhores crônicas de sua época conturbada.
Existe outra tradução de O mestre e Margarida no mercado pela Companhia das Letras/Alfaguara a cargo da tradutora Zoia Prestes. Quais as principais mudanças que encontramos nessa sua tradução?
Cada um traduz de um jeito, e as edições já seriam diferentes. O diferencial desta que estamos publicando agora consiste em se basear em uma nova edição crítica russa. Como disse na pergunta 1, o livro teve uma história conturbada, e só foi publicado após o falecimento do escritor. O manuscrito ficou com Ielena Serguêievna, a viúva do escritor, responsável pela versão final do texto. Posteriormente, foi submetido ao trabalho de diferentes especialistas: A. A. Saakiants, na década de 1970, e L. M. Ianóvskaia, nos anos 1980. Conviveram, assim, duas variantes distintas do texto de Bulgákov. Em nosso século, a pesquisadora Ielena Iúrievna Kolycheva trabalhou nos rascunhos e versões datilografadas do romance para publicar, em 2014, pela editora Pachkov Dom, uma alentada edição em dois volumes. Kolycheva identifica cada uma das redações do romance – primeira (1928-1930); rascunhos (1931); segunda (1932-1936); terceira (1936); quarta – príncipe das Trevas (1937); quinta – O mestre e Margarida (1937-38); e sexta – O mestre e Margarida (1938-1940) – e propõe, com base nesses estudos, uma nova versão do texto que, em seu entendimento, estaria mais de acordo com a vontade do autor. Essa versão foi a base da presente tradução.
O mestre e Margarida é também um livro que tem uma relação com a cultura pop, para além da questão histórica da obra, pela forma como ele trata a imagem do demônio. É o caso da música dos Rolling Stones Sympathy for the devil, que teria sido inspirada no romance e que fala de uma figura demoníaca ironizando os tropeços da história. Você poderia comentar um pouco sobre a forma como o autor constrói desse personagem demoníaco na obra, suas principais características?
Bulgákov toma como fonte o Fausto, de Goethe, e também sua adaptação operística, feita por Gounod. Seu Woland se apresenta como “mestre em magia negra”, e é acompanhado por um séquito de ajudantes que inclui um carismático gato, Behemoth, que chega a Moscou para organizar um baile de Satã - o equivalente bulgakoviano da Noite dos Valpúrgis, do Fausto. Diferentemente do Mefistófeles do mito original, contudo, o Woland de Bulgákov não faz pacto pela alma de ninguém, nem tampouco é servo de Fausto. Pelo contrário, em vez de servo, ele é servido. As peripécias de Woland e sua trupe, colocando de pernas para o ar o mundo da burocracia soviética, são responsáveis por boa parte das risadas que o livro provoca, porém, no final, é o poder desse diabo que irá garantir o triunfo da arte e do amor.