Entrevista nov17

 

Criada em 2012 com o objetivo de ser um espaço de formação de leitores e de novos autores, a Festa Literária das Periferias (Flup) desse ano propõe um diálogo com a ideia de Revoluções, numa homenagem ao centenário da Revolução Russa e ao cinquentenário de Maio de 1968.

Visitei a sede da Flup na tarde do dia 07 de outubro. Era um sábado ensolarado, e eu estava ali naquele simpático e agradável prédio, no Centro do Rio de Janeiro, para conversar com os dois idealizadores do projeto, Écio Salles (à direita na imagem acima) e Julio Ludemir. O momento da minha chegada não poderia ter sido mais apropriado: era hora do lanche e o espaço estava lotado de jovens.

Enquanto comíamos, soube, através de uma das amigas que encontrei, que todos que ali estavam eram participantes do Laboratório de Narrativas Negras para Audiovisual. Esse laboratório, um dos processos de formação da Flup deste ano, teve como público-alvo pessoas negras das mais diversas regiões do Rio, Baixada Fluminense e São Gonçalo. O projeto contou com palestras, pitchings, imersões e encontros com uma banca de avaliação. Naquele dia, os participantes – entre eles os amigos que encontrei, numa grata surpresa! – recebiam a presença da roteirista Maria Camargo.

Acabado o intervalo, os alunos retornaram ao auditório. Foi quando Écio e eu conversamos sobre a Flup, e também sobre o momento de caos na cidade. Julio avisou que precisaria retornar ao laboratório, desculpando-se por não dividir a entrevista com o amigo naquele primeiro momento. Alguns dos jovens apresentariam suas ideias de roteiro para Maria, algo que ele não queria perder de jeito nenhum.

Ao final da entrevista, consegui assistir aos minutos finais do laboratório, presenciando duas das apresentações – o que me fez perceber que Julio tinha razão em não deixar o local. Antes de irmos embora, conseguimos trocar algumas impressões finais.

 

Eu queria saber um pouco sobre as motivações que deram origem à Flup.

Écio: A ideia que deu origem a FLUP por um lado é muito interessante, e por outro é de uma simplicidade incrível. Em 2008, eu e o Julio fomos convidados para participar da Secretaria de Cultura do Marcus Faustini, em Nova Iguaçu, na gestão do Lindbergh Farias. Quando o Faustini saiu, eu fui indicado como substituto para a pasta e o Julio ficou como Secretário-adjunto. Nós mantivemos a política da gestão anterior, apenas dando ênfase à literatura, porque a gente entendeu que existia ali um contexto muito diferente do que afirmavam as pesquisas e o senso comum sobre a população brasileira no quesito leitura. Ao contrário, a gente percebeu que os jovens eram leitores vorazes e escreviam muito bem. Em julho de 2010, Julio voltava da Flip e plantou a ideia: vamos fazer uma Flip na periferia!? Esse foi o mote inicial. A partir daí a gente passou a refletir sobre algumas questões. A primeira era que esse tipo de proposta não poderia se restringir a um evento único, mas precisaria formar novos escritores. Um outro impulso foi a convicção de que a circulação é decisiva para que o jovem apreenda a cidade em que vive, para que ele se sinta capaz de narrar – ou poetizar – com competência sobre ela, com capacidade de produzir diálogos maduros. Foi partindo dessas ideias iniciais que a gente montou um primeiro formato, dividindo o projeto em três partes – que seriam aproveitadas mais tarde na Flup.

Como foi a transição desse projeto embrionário, em Nova Iguaçu, para a Flup que a cidade conhece hoje?

Écio: A primeira atitude foi procurar aliados. A gente convidou a Heloísa Buarque de Hollanda e o Luís Eduardo Soares. Depois, começamos a pensar de que maneira poderíamos convencer as pessoas sobre a importância do projeto. Ligamos para o Leonardo Lichote, do jornal O Globo, e contamos a ideia da Flup, tentando uma nota no caderno Prosa & Verso. Só que ele publicou uma matéria de capa no Segundo Caderno, em um domingo. A gente não tinha dinheiro nenhum, só a ideia, e isso transformou as nossas vidas. Na semana seguinte, a gente já tinha outro tamanho na cidade. Num dado momento, o BNDES topou entrar, e depois foi ficando mais fácil conseguir outros patrocinadores. Na nossa primeira edição, ganhamos outro imenso presente: o Ariano Suassuna estava vindo para cidade e conseguimos que ele participasse, foi o nosso primeiro autor. Foi mágico!

Você poderia me contar um pouco sobre cada uma das partes da Flup?

Écio: A primeira é dedicada ao público infanto-juvenil, a Flup Parque, e é um processo que acontece nas escolas no entorno da Flup. A segunda etapa é um processo de formação, que a gente batizou de Flup Pensa, que começa no início do ano e se estende por cerca de oito meses, promovendo encontros entre os participantes e escritores. No final desses encontros, publicamos um livro com o resultado dos que mais se destacaram. Esse ano não publicaremos no formato livro, mas pode ser que alguns sejam “publicados” como filme, já que estamos trabalhando em 35 argumentos audiovisuais. A última etapa da Flup é um grande evento internacional, que ocorre sempre no final do ano.

Como funciona a escolha do tema e das mesas a cada edição?

Écio: No primeiro ano foi engraçado, porque a gente se questionou se teríamos um autor homenageado. Decidimos ter. E aí o primeiro homenageado só poderia ser o Lima Barreto, né? Seis anos depois a Flip homenageá-lo foi muito significativo, porque se a gente começou um pouco com a cara deles, esse ano eles tiveram um pouco da nossa cara também. A cada ano a gente busca uma bossa diferente, tentando entrar nos grandes temas em discussão no país: questão queer, questão de gênero, questão racial, violência policial, mortandade de jovens negros no país... a gente tenta estar antenado com os temas da contemporaneidade, buscando sempre uma dicção próxima ao contexto de cada território. É o nosso sexto ano, a gente já passou por mais de 70 favelas. Essa Flup final, que vai acontecer no Vidigal esse ano (entre os dias 10 e 15 de novembro), e que a gente chama de Flupona na intimidade, vai ser um acúmulo de um processo que já passou por outras comunidades: Morro dos Prazeres, Vigário Geral, Mangueira, Chapéu Mangueira e Cidade de Deus.

A crise que o Rio de Janeiro atravessa tem impacto direto na Flup?

Écio: A gente atua num contexto muito complexo, e um pouco da Flup é estar nesse contexto e imaginar um outro mundo possível para ele, fabular um mundo em que a poesia, a literatura, tenha mais força do que a violência. Mas, quando a gente começou, parecia o início de uma era de felicidade, porque tinha muito investimento. Mas a fonte secou e hoje a gente tem essa barreira, ainda mais para um evento do tamanho da Flup. Mas nós vivemos um outro problema que me parece ainda mais drástico. O momento em que começamos era uma época de abertura, de liberdade de criação. É óbvio que existiam contradições, mas existia o que o Gilberto Gil chamou de “vetor ascensional”. Hoje, o vetor é descendente. De um lado pela falta de recursos, de outro porque as forças conservadoras – que sempre estiveram aí – perceberam que poderiam disputar o imaginário também. Não estou nem falando de economia. Estou falando de arte, de cultura, de direitos humanos, que são os nossos impulsionadores de ação. A gente acredita nos direitos humanos e nas liberdades individuais. Mas o que a gente já fazia naturalmente virou uma ação política. Trazer um autor ou uma autora trans, por exemplo, virou uma ação marcadamente política. Trazer um escritor que é gay é como trazer apenas um gay, dane-se se ele é escritor. Ou seja: um momento que a gente já devia ter superado. Então, precisamos fazer uso do que a Gayatri Spivak chamou de “essencialismo estratégico”. Mas é óbvio que identidades fixas são sempre ruins, porque ninguém é só uma identidade. Por outro lado, tem essa geração que está vindo aí, ou ao menos uma parte dela... hoje, quando eu vou em uma escola de ensino médio, eu vejo outra coisa. Para você ter uma ideia, a gente foi convidado para um evento em uma escola de Jacarepaguá, uma escola com cerca de 3000 alunos numa região pobre da cidade, e um estudante de 16 anos, fez um número artístico com uma afirmação gay muito forte e toda a escola aplaudiu. Na minha época, eu imagino que aquele garoto seria espancado.

Você falou sobre contradições. Queria entender como é produzir um evento como a Flup, que ao mesmo tempo em que produz narrativas contra o Estado, depende dele em alguma medida para acontecer.

Écio: A primeira coisa que se aprende é que não há peças monolíticas. É preciso entender isso se você quer estar no jogo. O Stuart Hall trabalha isso muito bem quando fala do jogo de posições. Às vezes você está numa posição desfavorável e consegue mudar algumas poucas peças, então você está mais próximo do objetivo do que estava antes. No governo do Sérgio Cabral a polícia matava muito na favela, fazia chacina, mas, ao mesmo tempo, a secretaria de Cultura contava com políticas muito interessantes para periferia. As pessoas que eu conheço que querem ser muito puras estão pelos cantos ressentidas falando mal de todo mundo, mas não fazem nada. Então, ok, né? Nós temos contradições, mas vemos o resultado positivo, por exemplo, na vida das pessoas que passaram pelos processos de formação e hoje publicam seus livros autorais.

Como foi o processo de trocar o nome da Festa? Existe um arrependimento ou autocrítica pelo nome anterior ter ligação com o projeto das UPPs (Unidade de Polícias Pacificadoras)?

Écio: Nós sabíamos dos ricos e embarcamos. Mas o próprio Estado nunca teve uma dimensão do quanto isso poderia ser importante para o projeto deles (segundo o discurso oficial que tinham sobre o projeto). Nós nunca nos beneficiamos financeira ou estrategicamente por conta do nome Flupp, com o “p” a mais. O que nos fez mudar foi o episódio do Amarildo, porque entendemos que era algo incomensurável. Mas nós não temos nenhum arrependimento de ter começado como Festa das UPPs, porque sabemos que em momento algum defendíamos um Estado policial. Ao contrário, era justamente para que não fosse apenas isso. Mas também não temos nenhuma angústia por ter alterado o nome.

Julio, você fez bem de ter ficado no laboratório. Achei muito bom o pouco que consegui ver. Como funcionam os processos de formação da FLUP?

Julio: A Flup é uma agenda, ela não é um festival. Ela tem um festival como culminância de uma agenda. A Flup só poderia ter começado no ano em que ela começou. Ela teve um tempo absolutamente propício, porque ela é filha da primeira geração escolarizada de muitas famílias. Essa turma já tem intimidade com a palavra, o que faz com que tanto a leitura quanto a produção de texto seja diferente daquilo que aconteceu em qualquer outro momento da história do país. Essa primeira geração produziu leitores, mas produziu também uma intelectualidade da periferia. O que gera também um outro diferencial: temos uma intelectualidade negra com números cada vez mais expressivos. A epifania da Flup surge quando eu estou na Flip e vejo uma turma da periferia fazendo um esforço brutal para estar ali. Sempre se pensou a literatura como um monopólio das elites desse país, e a gente percebeu que existia um novo tipo de leitor, e também um novo tipo de autor. No início, nós fomos tratados como loucos. Primeiro, acharam que a gente não iria fazer. Depois, que não haveria continuidade. Por último, acharam que não teríamos relevância. A Flup só não acabou ainda porque a gente conseguiu conquistar essa relevância, não pela gente, mas porque esses novos autores da periferia existem e estão aí. Só que nesse momento de queda das políticas públicas, seria praticamente impossível começar um projeto como esse. Um dos motivos de a gente agora investir no roteiro audiovisual é porque a gente precisa pensar também na empregabilidade desses jovens, e o audiovisual é um dos poucos campos da cultura que ainda vai bem. A gente está o tempo inteiro falando de periferia. Mas quando eu falo de periferia, eu falo de periferia narrativa também, inclusive das periferias existenciais. Só que é uma periferia que está procurando centralidade, não é uma periferia que se satisfaça só com o gueto. A Flup existe para que a turma que ela revela possa nos superar. Essa turma está vindo com toda sua potência. Mas não adianta eu dar um curso de literatura e não publicar o livro. Por isso a gente não acredita em concurso literário. A gente não está procurando gênios prontos, o que a gente quer é participar de processos. Eu ando muito atento ao que acontece no mundo. Nesse momento, eu estou muito atento, por exemplo, à questão trans. Eu acho que a questão sexual é a grande questão que está explodindo no mundo inteiro. Não à toa os debates se voltaram para a coisa mais fundamental da vida: o corpo. E é claro que eu estou atento a isso. É por isso que eu te pedi desculpas de ter ficado no laboratório enquanto você conversava com o Écio, mas a Flup é isso que estava acontecendo ali naquele momento. E eu não podia perder aquilo de jeito nenhum!

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