Em 2007, quando Raimundo Carrero completou 60 anos, passamos a trabalhar diariamente numa mesma redação. Juntos, criamos o Suplemento Pernambuco num momento bem especial da sua carreira: o escritor vivia um período de ascensão e de reconhecimento nacional de um legado literário sui generis, iniciado na década de 1970. Foi curioso acompanhar de perto o fascínio que ele tinha pelos seus personagens recém-criados, como era o caso de Matheus, protagonista do romance O amor não tem bons sentimentos. De tão obcecado por sua criação, em alguns momentos parecia que Carrero virava um pouco Matheus. O mesmo ocorreu com Minha alma é irmã de Deus, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura. Tinha vezes que ele quase chorava ao lembrar a vida trágica da personagem Camila.
Dez anos depois, Carrero mantém a obsessão por sua obra intacta. Nem mesmo o AVC que sofreu há alguns anos, que o levou a um doloroso processo de recuperação, estremeceu a relação canina que mantém com sua literatura. Escreve todos os dias. Sob quaisquer condições. Não acredita em inspiração, apenas em trabalho árduo e num Deus que o faz se benzer cada vez que entra numa sala. Para marcar os seus 70 anos,decidi lhe enviar por e-mail uma série de perguntas. Tentei fazer Carrero falar sobre o Brasil tumultuado de hoje, sobre sua relação com a militância, sobre suas obras esquecidas e, vejam só!, consegui arrancar uma derradeira confissão sua: qual mesmo é o grande tema do homem que nos ensinou que o amor nem sempre tem bons sentimentos?
Quando se fala da sua produção, inclusive na academia, temas como sexo, religião e loucura sempre são lembrados. São a partir deles que sua obra costuma ser estudada. Mas talvez seja preciso ter um olhar político para sua produção. Você começou a escrever no auge da ditadura e obras como Maçã agreste trazem esse tema, ainda que não frontalmente, mesmo que o romance não costume ser lembrado como um romance político. Você se considera um autor atravessado pela política de forma deliberada? Se sim, em que termos isso acontece?
Você tem razão, acontece que a crítica literária brasileira só conhece minha obra pela metade, porque só me tornei um autor reconhecido nacionalmente a partir de Somos pedras que se consomem, que em 1995 chegou à finalíssima do Prêmio Jabuti e ganhou os prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte e Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. Por isso o livro foi muito resenhado, criticado, analisado, e meu nome começou a ter destaque. Quando isso aconteceu, já escrevia há duas décadas. O romance Maçã agreste faz uma longa reflexão sobre o sexo no Brasil. Mas tem, também, uma grave preocupação com o social e com os fatores políticos que estavam se desencadeando. A temática sexual sempre chama mais a atenção pelo que tem de belo e de sedutor, mas é inacreditável como os estudiosos não costumam questionar o sexo a partir de uma manifestação política, embora isso tenha acontecido frequentemente nos textos que escrevo. Se o sexo for analisado, por exemplo, como uma manifestação de quebra da moralidade cretina e social e dos padrões de domínio sociopolítico, é perfeitamente possível questionar minha obra nessa direção. Muda-se o enfoque e, portanto, muda-se a reflexão. Basta isso.
Quando de uma homenagem para seus 70 anos, neste ano, na programação do Sesc durante a última Flip, notei em vários momentos da sua fala uma questão bem interessante. Percebi que você tentava explicar um pouco a relação das suas personagens, por exemplo, as prostitutas, diante das questões da militância atual. Como o Raimundo Carrero, que sempre falou de mulheres, muitas delas com vidas à margem, olha para o feminismo atual?
Tenho um grande afeto pelas mulheres, sobretudo porque fui criado por cinco mulheres, além de minha mãe, é claro. Apoio completamente o feminismo porque destaca e engrandece o mundo das mulheres. O feminismo confere força e sentido ao imaginário feminino. A mulher não pode ser vista como um elemento de fraqueza. Precisa ser vista como a compreensão do humano. Por isso mesmo, minhas mulheres são fortes e decididas, ainda que apareçam à margem. Entristece-me o fato de que esse tema é pouco destacado nas leituras de minha obra.
Num dos seus próximos livros, você fala da sexualidade na infância. Como é esse texto e como espera ser recebido um tema assim diante da censura às artes que está acontecendo no Brasil atual?
O meu próximo livro – que tem como título Delírios de amor e loucura – marcará um momento decisivo no meu trabalho intelectual. Porque é uma revisão da minha obra e enfocará temas delicados. Há uma censura no ar e, mais do que isso, uma brutal intolerância. Algo que, na verdade, me surpreende, mas não me assusta. Vou pra luta e pronto. Basta de patrulhamento. É o meu trabalho literário e tenho que lutar.
Os últimos 15 anos foram fundamentais para a divulgação do seu trabalho. Você ganhou prêmios literários importantes e seu nome atraiu um público mais jovem. Além disso, começaram a aparecer as leituras acadêmicas sobre sua obra. E foi um período também de renovação grande no cenário literário brasileiro. A que atribui essa mudança na recepção da sua obra e como você se sente inserido – ou não – no cenário literário brasileiro?
Imagino que a conquista dos prêmios deram maior notoriedade à minha obra [Carrero ganhou, entre outros, o Prêmio São Paulo de Literatura pelo romance Minha alma é irmã de Deus] e, portanto, despertou maior atenção acadêmica. Agora, são dois doutorados e 3 mestrados, além de várias monografias de pós. Neste momento, a professora potiguar Eliene Costa está defendendo mais um doutorado sobre o meu trabalho, o que me anima muito. A minha atividade jornalística – durante anos editamos juntos o Pernambuco, contando com a coluna muito lida, mais a coluna do jornal Rascunho - atraiu a atenção de leitores. Sempre estou pronto para atender a estudantes e professores. Mantenho um diálogo permanente com a sociedade. Tudo isso divulga muito a minha obra. Não me coloco em nenhum momento distante ou afastado do mundo.
Mesmo com toda a repercussão que tem recebido, alguns dos seus livros ficaram esquecidos ou receberam pouca atenção. E estou falando aqui de obras com estruturas radicais. É o caso de Ao redor do escorpião… uma tarântula, que considero um dos seus romances mais brilhantes e que, ao mesmo tempo, frustra quem espera o Carrero de As sombrias ruínas da alma (coletânea de textos curtos que ganhou o Prêmio Jabuti), por exemplo. Você pode falar um pouco do processo de composição de Ao redor do escorpião?
Ao redor do escorpião....uma tarântula é a obra de um músico fracassado. Durante muito tempo, toquei saxofone tenor, mas sempre tive muitas limitações, sobretudo no campo da criação. Ao redor... é um grande improviso de sax, desde a primeira página. Enfrentou problemas com a crítica, mas ainda acredito que foi a melhor coisa que escrevi. Espero ainda dar continuidade à experiência...
Seria uma sombria noite secreta também é um livro seu que mereceria mais atenção da crítica e dos leitores, pelos radicalismos que você propõe nesse texto. É um dos seus livros mais cruéis e também um dos mais poéticos. Você poderia falar um pouco sobre essa obra em particular?
Você tem razão: a poesia deste romance vem da beleza e da crueldade e dos personagens – um camelô e uma puta, uma puta doente, mas filha de uma família importante – Raquel e Alvarenga, que escrevi com muita técnica. Tenho percebido que se criou uma força contra minha obra por causa do cuidado com o requinte literário, até por causa da tensão política que se instalou no país. Não sou, em absoluto, um artista burguês, mas um escritor que se debateu contra as injustiças, combatendo os regimes totalitários. Sou, pela minha formação e pela minha gênese, um guerrilheiro da palavra. E sempre fiz isso com muita garra. Veja os meus personagens – um camelô e uma puta, dois representantes das minorias. Assim é meu trabalho intelectual...
O senhor vai mudar de corpo foi um livro muito curioso na sua carreira – ele trata de uma questão autobiográfica de forma direta (o AVC que sofreu). Você nunca foi um autor “confessional”, ao menos em termos esperados, convencionais. Como foi o processo de aceitar que precisava falar de um fato concreto da sua vida? Por sinal, você se sente mais livre, depois desse livro, a falar da sua vida de forma direta?
O senhor vai mudar de corpo exigiu muita confissão porque eu queria ver até que ponto contribuí para o AVC e para a destruição do meu corpo. Investi muito, mas muita coisa ficou de fora porque não era conveniente. Espantei-me muito e talvez escreva ainda algo novo. Preciso conhecer minha vida. Chego aos 70 anos tentando me conhecer. E faço isso todos os dias.
Você começou sua carreira nos anos 1970 ao lado do Movimento Armorial, com o romance A história de Bernarda Soledade. Em seguida, voltou-se a perseguir estruturas bem radicais, sobretudo nos últimos livros. Como você classificaria hoje sua literatura, tendo em vista o atual cenário da literatura brasileira?
Faço uma literatura política sem, no entanto, ser engajado conforme a terminologia de Sartre. Uma literatura que se coloca ao lado dos humilhados, da diversidade e daqueles que se sentem mais aflitos. Não conheço melhor maneira de ser escritor, sobretudo no nosso mundo e no nosso Brasil. É assim que sou. E nunca identifiquei no Movimento Armorial uma linhagem burguesa. Ariano Suassuna sempre estava ao lado dos pobres e dos injustiçados. É preciso ver isso com muita atenção, para que não sejam cometidas injustiças históricas.
Ao chegar os 70 anos, como você faria uma síntese de tudo o que você criou ao longo dessas décadas todas de produção? Qual seria o seu grande tema?
Neste caso, teríamos que fazer uma breve revisão na minha obra. O amor não tem bons sentimentos, Minha alma é irmã de Deus, O senhor dos sonhos, As sombrias ruínas da alma e A dupla face do baralho: confissões do Comissário Félix Gurgel...toda minha obra é um mergulho no abismo da condição humana.