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A entrevista com Christian Dunker, publicada na edição de março/2018 do Pernambuco, aqui segue na íntegra. No impresso, foi reduzida por questões de espaço.

 

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Em Reinvenção da intimidade – políticas do sofrimento cotidiano (Editora Ubu), o psicanalista e professor-titular do Departamento de Psicologia Clínica da USP, Christian Dunker, nos propõe uma investigação a respeito das formas de amor e sobre suas interveniências políticas. No título, o psicanalista leva mais a diante a questão proposta em Mal-estar, sofrimento e sintoma (Boitempo, 2015) questionando como sintomas relacionam-se com processos de individuação, em especial com as experiências de sofrimento no Brasil das duas últimas décadas. Com mais de 30 anos de clínica, Dunker possui um estilo ágil e claro, incomum entre psicanalistas lacanianos. Mantém um canal sobre psicanálise no Youtube com mais de 30 mil inscritos e firmou-se nos últimos anos como um dos principais divulgadores do legado de Lacan no Brasil.

Em Reinvenção da intimidade, o autor explora temas muito diversos, mas determinados pelas “conhecidas maneiras trágicas de defender-se do amor”, isto é, “a neurose, a psicose e a perversão”. O psicanalista se volta para fenômenos como a solidão e a ruptura das relações, passando pela experiência da morte, pelo ciúme, assim como pelo ódio, pela traição, pela loucura materna em tempos de controle virtual, pela intoxicação digital infantil. Também são objetos da investigação do psicanalista aquilo que conceitua como lógica do condomínio, a exclusão da psicanálise da prática diagnóstica contemporânea, a depressão, a perversão nos nossos dias, além do narcisismo à brasileira e da pós-verdade.

Nesta conversa com o Pernambuco, Dunker fala sobre alguns desses pontos explorados no livro.


No texto Solidão e Solitude: a dimensão trágica do sofrimento [primeira parte do 1º capítulo do livro], o senhor realiza uma distinção entre “a solidão patológica” e a “solidão benéfica” (p. 31). A primeira, “sentida como humilhação social”, e a segunda, vivida como “solidão reconhecida”. Trata-se, no primeiro caso, do “fracasso de ficar sozinho”, como o senhor coloca.

Parece-me que as “patologias da solidão” desvelam o caráter autista do gozo. Quer dizer, elas colocam uma questão sobre como fazer laço em meio à superoferta de objetos. Assim, a “verdadeira solidão” implicaria o sujeito no próprio desejo, na “ética do bem dizer”... Enquanto as próteses que tentam simular estados de compartilhamento ou as tentativas de controlar a presença do outro (p. 31) não cessariam de dificultar esse acesso à solidão.

Pergunto: a clínica, a escuta analítica, seria então um espaço de “verdadeira solidão”? Como operaria o analista na convocação desse sujeito sem mensagens cifradas (se for possível dizer assim)?

Grande parte do trabalho clínico do psicanalista orienta-se para tornar possível o que Lacan chamou de "separação". A separação pode ser pensada em vários níveis, em relação à demanda do Outro, em relação aos ideais, em relação a nossa própria fantasia. Ela pode aparecer também em muitas experiências como o luto, o trauma e o desamparo. Poderíamos dizer que a solidão alienada é aquela por meio da qual eu substituo a diferença radical de meu desejo pela identificação com a demanda de algum outro. Desta maneira, crio laços sociais baseados na identificação, com seus inevitáveis efeitos de segregação, agressividade e idealização. 

É muito frequente que experimentemos a solidão patológica como a solidão de nosso fantasma, ou seja, sem separação, com a presença e intrusão constante de um objeto perturbador, de uma voz superegoica que nos assedia, com o pensamento sobre o outro, com a observação de si a partir do olhar do outro. O que se pode chamar de "travessia do fantasma" é a passagem deste tipo de solidão alienada, na qual mesmo que ausente, o outro não cessa de nos habitar, para a solitude. "Solitude" é um termo pouco usado em português, mas que representaria com pertinência esta posição na qual, por exemplo, a agressividade do outro deixa de ser “contagiosa”, a oferta de gozo do outro deixa de ser a orientação de nossas vidas ou que permite certa distância a si e do outro.

No divã, há muitos momentos de solidão angustiada e obsedante, mas quando as coisas caminham bem podemos experimentar solitude.

 

Em Sobre a morte e o morrer [quinta parte do 1º capítulo do livro], o senhor escreve que “aquele que confia na ciência ou que acha sua própria forma de vida sem falhas de sentido estará mais exposto à dificuldade de lidar com as crises de pânico” (p. 51). A sua colocação me remeteu à centralidade do significante “neuro” (neurociência, neuroeducação, neuromarketing...) em nossas vidas. Essa ênfase no “funcionamento cerebral” pode se atrelar ou alimentar as novas formas de sofrimento que o senhor aborda no seu livro?

As neurociências são um acontecimento científico interessantíssimo. Novos métodos e novos achados tem mostrado que muitas teses veiculadas pela psicologia e pela psicanálise encontram uma espécie de subsídio empírico. Outras tantas não encontram o mesmo caminho. Como toda descoberta científica ela gera “traduções imediatas”, ou seja, uma dispersão discursiva que tende a hierarquizar saberes e práticas. Ora, esta segunda parte dos avanços neurocientíficos, ou seja, a passagem da ciência para a técnica, caminhou muito mais lentamente do que o esperado. Excetuando-se as intervenções mecânicas, baseadas em neuroimplantes e próteses – como as que tornaram possível os primeiros passos de um paraplégico, como vemos na pesquisa de Miguel Nicolellis – as outras aplicações das neurociências são meramente reforços e confirmações de técnicas educativas ou de modificação de comportamento, várias delas conhecidas há muito tempo.

Aqui temos o efeito coletivo de um tipo de identificação que promete uma desimplicação subjetiva e um conceito de humano que nenhum neurocientista sério está disposto a defender. Mais uma vez reencontramos aqui a velha retórica, tantas vezes estimulada pelos que instrumentalizam crenças religiosas ou políticas, que estão interessados em propagar a ideia de que seu sofrimento e suas dificuldades não tem a ver com você, tem a ver com forças ocultas, com poderes aos quais você só pode se relacionar por meio de submissão passiva. Mesmo que este poder oculto esteja dentro de você, em seu próprio cérebro, ele pode ser usado para te destituir da sua responsabilidade sobre seus efeitos, sobre sua manutenção e sobre seu sofrimento.

Considero, nesse sentido, criminosa a retórica que afirma que transtornos como depressão ou pânico são apenas distúrbios do seu cérebro, uma espécie de diabete nervosa, na qual em vez de insulina, precisamos repor o ingrediente cerebral que falta com anti-depressivos. E assim, como na diabetes, acostume-se a tomar, e a comprar antidepressivos para o resto da sua vida. Sim, há muitos casos onde a medicação é permanente, mas sem dúvida a medicalização em escala de massa, incluindo crianças e terceira idade, está apoiada neste mito da neurodeterminação.

 

Ainda sobre a ciência, gostaria de perguntar sobre o lugar da psicanálise na universidade, em especial a universidade (pública) brasileira. Aqui, no estado de Pernambuco, um dos estados pioneiros na recepção de Lacan no Brasil, temos um departamento de psicologia, na UFPE, quase que exclusivamente voltado para as terapias cognitivo comportamentais. Pergunto: as universidades se tornaram embaixadoras do DSM [referência internacional para as nomenclaturas dos transtornos mentais]? De que maneira a ênfase no cérebro se atrela e reforça a “lógica do condomínio”?

O caso da UFPE é um tanto estranho mesmo, pela notória rarefação do ensino da psicanálise em um estado com uma pujança histórica e consagrada nesta disciplina, aliás como se nota pelo reconhecimento nacional do trabalho da Universidade Católica de Pernambuco, na pesquisa em psicanálise. Talvez estejamos diante de um fenômeno mundial, presente em várias áreas da pesquisa. Diferentes universidades especializam-se em diferentes abordagens, restando o ensino generalista para aquelas universidades que não se dedicam a pesquisa ou que não tem pós-graduação. Na França é assim, em Paris VII você encontrará uma massiva presença de pesquisadores em psicanálise, enquanto em Lyon você terá uma preponderância de cognitivistas. É certo também que no mundo, considerada apenas a psicologia, a presença da psicanálise não é hegemônica, apesar dos centros de reputação consagrada como Birckbeck, em Londres.

A lógica do condomínio atravessa este processo com certeza. Tipicamente, isso se expressa em declarações segregatórias, como as de que a psicanálise seria uma pseudociência sem direito a figurar entre as disciplinas universitárias ou que ela teria sido ultrapassada pelas neuromedicações. Aqui há também um problema sistêmico que começa a afligir a psicologia em todo o mundo: não há mais vagas para pesquisadores universitários. O projeto da psicologia como uma área que forma cientistas em psicologia, não clínicos ou pessoas que tem que lidar criticamente com o sofrimento cotidiano real das pessoas, está chegando a um colapso. Na maior parte dos países do mundo o curso de psicologia não é habilitante, ou seja, ele não permite que alguém pratique psicoterapia ou faça intervenções como psicólogo antes de realizar uma especialização ou um “training”, que em geral toma mais dois ou três anos de estudo. No Brasil, excepcionalmente não é assim, isso ajuda a entender porque a psicanálise é ainda uma força expressiva em termos universitários.

 

Em A função transformativa do ódio [terceira parte do 2º capítulo] o senhor escreve: “em muitos casos o ódio não está a serviço da separação e de um processo transformativo, mas da manutenção de uma unidade ainda mais poderosa, ainda mais odiosa. Um ódio que não se vive sozinho, mas que covardemente cria grupos imaginários contra inimigos imaginários é tipicamente dirigido ao poder que se tem a mais ou a menos que o outro” (p. 75).

Pergunto: é possível fazer frente ao avanço de grupos conservadores (ou fundamentalistas) sem cair imediatamente nas armadilhas imaginárias potencializadas pela vida virtual, sem ser arrastado pela animosidade que tomou conta de todo espectro político? A “psicologia das massas”, tal qual concebe Freud, é suficiente para entender esses agrupamentos políticos? O narcisismo à brasileira reforçaria os aspectos mais violentos desse ódio não transformativo?

Não apenas considero isso possível como também tento fazer minha parte neste processo de pós-educação e descoberta diante destas novas formas de tecnologia. Elas não são apenas ampliações de funções já sabidas e disponíveis, mas introduziram um salto qualitativo em nosso laço social. Tecnicamente, a primeira geração de nativos digitais nasceu depois de 1995, portanto você e eu somos meros “adaptados” a esta nova forma de vida. E, como sempre se viu, ao longo da História, as primeiras gerações que viveram, por exemplo, a revolução industrial no século XIX, ou a expansão do modo de vida nas cidades, durante o século XII, criaram “patologias sociais” que são reativas a esta lógica de transformação.

Muito do ódio instrumentalizado politicamente por coisas como pós-verdade e fake news está baseado em certa ingenuidade do usuário, no caso do Brasil, a chegada de milhões de pessoas a uma conversa da qual elas estavam excluídas. Quando você faz isso sem a mínima formação para o debate público o que acontece é que a conversa de cozinha, com seus preconceitos e virulências, se torna uma “opinião como qualquer outra”, e os afetos segregatórios se tornam legítimos “como quaisquer outros”.

Freud falava em dois tipos de massa, as massas artificiais como o exército e a religião, e as massas primordiais, como a horda primitiva. O segundo tipo, como uma espécie de retorno regressivo ao funcionamento primitivo no qual a força e o poder patriarcal se impõe em situação de anomia, é uma espécie de sintoma do mal funcionamento do primeiro tipo de massa. O narcisismo à brasileira – que leva em conta características muito específicas da forma como lidamos historicamente com a desigualdade social, acrescentando a ela requintes de crueldade exibicionista, de ódio ao gozo do outro, seja ela encarnado pela raça, pelo gênero ou pela classe – é o que reapareceu vexatoriamente assim que nossas massas organizadas sofreram uma tremulação.

 

O senhor utiliza o sintagma “bipolaridade ordinária” (p. 81) assim como explora suas possíveis conexões com o modo de vida neoliberal. Se trata de uma noção operativa na clínica? Gostaria de explorar o sentido que o “ordinária” adicionaria ao diagnóstico do “transtorno afetivo bipolar”?

Trata-se, na verdade, de uma derivação da noção de psicose ordinária, em relação à qual tenho algumas reservas, mas que, neste contexto, serve para indicar de forma lúdica a onda de publicações sobre como a bipolaridade é, no fundo, uma disposição que pode ser aproveitada pela nossa ideologia da produtividade. Alguém em estado maníaco “ordinário”, ou seja, não extraordinariamente grave, apresenta um humor sempre para “cima”, uma disposição ao trabalho invejável, uma capacidade de propor novidades e uma redução de inibições que se encaixam quase perfeitamente nas nossas expectativas do que seria um trabalhador ideal ou um aluno ideal. Com isso, há uma constatação e uma crítica. Nossos padrões de normalidade moral e laboral tendem a ocultar formas de sofrimento, transformando várias delas em uma normalopatia.

Por outro lado, a epidemia de diagnósticos de bipolaridade parece confluir com uma dicotomia exagerada que nos é exigida na vida cotidiana: pressão e depressão, trabalho excessivo e férias “gozosas”, intensidade máxima e distensão total. Ora, o fato de que muitas formas de vida se apresentem organizadas e auto-interpretadas por uma gramática deste tipo, nos ajuda a entender por que surge uma “bipolaridade me too” (bipolaridade "eu também"). Isso é ruim tanto porque sobrecarrega a categoria e normaliza a experiência.

 

No texto Paradoxo moral do batalhador brasileiro [2ª parte do sétimo capítulo], o senhor nos fala de um “novo tipo de trabalhador” que “se adaptou às exigências de desenraizamento, ausência de identidade de classe e vínculos de pertencimento trabalhista, que nosso capitalismo flexível e expressivo tornou compulsórios” (p. 249). Pelo que entendi, são sujeitos que mantém certa conexão com a comunidade, assim como certa austeridade nos seus modos de vida (senso de disciplina, autocontrole, adiamento do consumo...). Estes sujeitos chegam à clínica? Com que tipo de queixa? Podemos dizer que a religião, para esses sujeitos, está em plena conformidade como os princípios do neoliberalismo?

Trata-se de uma nova forma de sofrimento contemporânea das redes sociais e do breve aumento da mobilidade social no Brasil. “Subir na vida”, prosperar, alcançar algum sucesso na carreira ou no reconhecimento social pode representar um grande desafio subjetivo. É preciso “explicar” subjetivamente porque você “deu certo” e seu irmão primo ou amigo de escola não. É preciso criar uma narrativa de si e um semblante que justifique para si e para os outros este processo.
Frequentemente, há uma espécie de dívida simbólica envolvida aqui. Muitas famílias não têm como mandar todos os filhos para a escola ou elo menos para a escola de qualidade. Elas têm que fazer escolhas, que são infelizmente pautadas por critérios como o gênero ou a posição de mais velho ou de mais novo em uma família. Isso gera ressentimento. Pagar esta dívida simbólica pode ser uma tarefa capaz de arruinar uma vida. Lembro de pacientes que dizem “toda vez que vou comprar um vestido lembro do pessoal do meu quintal, sinto que faço uma crueldade com eles”. Este é uma situação relativamente benigna comparada com aqueles que recalcam e esquecem a ajuda recebida, engajando-se em narrativas, muitas vezes reforçadas por retóricas religiosas, que afirmam a exclusividade dos méritos e dos dotes do “vencedor”. Muitas vezes estes são os casos nos quais o inconsciente prega uma peça, fazendo o sujeito tomar riscos exagerados ou “esquecer” certos detalhes que “devolvem” para a vida, como forma de fracasso, aquilo que ela lhes trouxe tão “gratuitamente”.

A expansão a teologia da prosperidade, que afirma que o sucesso é por si sancionado pelo Espírito Santo, concorre para sufocar este conflito e conflitos sufocados geralmente voltam na forma de sintomas. O neoliberalismo, com seu produtivismo e com sua mania de sucesso por semestre, sem memória e sem dívida, também ajuda muito a criar novos arruinados pelo sucesso. A retórica da flexibilidade da identidade feita para a ocasião é outra forma emergente deste moralismo à brasileira – que é, no fundo, sintoma da dificuldade que a todos se coloca de simbolizar a transformação e de fazer frente ao real da contingência.

 

Pode comentar como o senhor observa um movimento como o “Time's Up” (assim como respostas a ele, como a que realizou a atriz Catherine Deneuve)? Esse é um debate que podemos aprofundar nas redes sociais?

É um grande debate, atrasado e inadiável, como diz Oprah Winfrey. Quando há um descompasso que nos ajuda a entender porque certas pautas demoram muito para ocupar o debate público, a conversa vem sempre com a retomada do atraso da conversa. Como briga de casal, na qual aquele incidente atual se torna indissociável da história de repetições e recorrências do problema. Mas, de fato, é difícil fazer as duas coisas ao mesmo tempo, ou seja, organizar os termos do debate e fazê-lo avançar em alguma direção. Por isso a retórica que flutua do “ajuste de contas” ao “mas sem exageros” predomina. Os homens brancos e heterossexuais estão agora em atraso e descompasso na conversa, o que não poderia ser diferente.

Penso que a tarefa mais difícil seja reverter o machismo sem invertê-lo em uma nova forma de moralismo, que parece ter sido o apontamento do grupo francês. De fato, o feminismo americano, com sua ênfase no contrato e da equidade legal, sempre teve uma divergência com o feminismo francês, com sua ênfase no desejo e na luta por reconhecimento. São vários feminismos e isso é muito importante para enriquecer a conversa.

Quando a oposição se dá entre a crítica da cultura do estupro e do assédio, de um lado, e a abertura para a emancipação desejante dos gêneros minoritários, fica evidente a carência de mediações. Isso de fato está em curso. A produção e mediações discursivas, práticas e teóricas é fundamental neste momento. Acho que a psicanálise tem algo a contribuir para isso, particularmente a teoria lacaniana da sexuação, assim como também os estudos de gênero, as teorias pós-coloniais, as epistemologias do sul, os estudos culturais, as teorias críticas e assim por diante. O monopólio discursivo ou conceitual deve ser evitado nesta matéria.

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