O selo Penguin-Companhia lança agora uma nova edição daquele que talvez seja o livro mais polêmico da história do Ocidente: Os 120 dias de Sodoma (1785), do divino Marquês de Sade (1740-1814). No posfácio, um ensaio inédito da professora da USP Eliane Robert Moraes coloca o texto do libertino como contemporâneo das vanguardas do século XX.
Eliane, uma das grandes especialistas de literatura erótica no Brasil, fala na seguinte entrevista dos perigos que a leitura de Sade nos coloca e comenta sobre a antologia de contos eróticos brasileiros que prepara para o selo do Suplemento Pernambuco.
No seu texto para a nova edição de Os 120 dias de Sodoma você coloca a obra como uma precursora e/ou contemporânea de grande acontecimentos do século XX. Tanto em relação às descobertas de Freud quanto em termos das vanguardas literárias. É interessante pensar no Sade não apenas como um grande transgressor, como um contestador da estrutura da sociedade, também como um grande escritor revolucionário. Já chegamos ao momento de aceitar que Sade foi, também, um grande escritor?
Sem dúvida. De um ponto de vista literário, a atualidade está realmente mais preparada para enfrentar o texto do que se estava em outros momentos. Como digo no posfácio da nova edição de Os 120 dias de Sodoma, o século XX parece ter nos treinado o suficiente para aceitarmos, sem maiores sobressaltos, produções estéticas de aspecto tão estranho quanto este livro. Afinal, a arte e a literatura modernas nos acostumaram às formas fraturadas, às estruturas disparatadas, às justaposições inesperadas, às rupturas de gêneros e a outros tantos procedimentos outrora impensáveis e, quase sempre, expurgados dos cânones.
É bem verdade que Sade parece ter ido ainda mais longe em sua enciclopédia da desmedida e não deixa de surpreender que o tenha feito por sua conta e risco, muito antes dos experimentalismos de um Beckett ou de um Joyce. Mas as ousadias de Beckett, de Joyce e de tantos outros escritores do século XX nos ajudaram a ler Sade e a apreciar o extraordinário vigor de sua escrita.
Estamos vivendo um momento de nova ascensão de regimes fascistas e, por isso mesmo, de discussão sobre narrativas utópicas/distópicas. Seria esse um momento ideal para a leitura de Sade?
Não sei... A obra de Sade exige uma leitura lenta, paciente e sobretudo difícil. A perplexidade provocada por seus textos, não raro beirando o medo, tende inclusive a criar no leitor uma forte resistência. Creio que, diante disso, colocam-se para nós pelo menos três alternativas: a recusa sumária, o convite à reflexão ou ainda a adesão fácil e leviana. Considero a primeira um direito, a segunda uma opção, e a terceira, um perigo.
Não são poucos os estudiosos do assunto que, como eu, concordam com Simone de Beauvoir, quando ela afirma que “não se deve devotar a Sade uma simpatia muito fácil pois é a minha desgraça que ele quer, a minha sujeição e a minha morte”. Aliás, entre eles, está o próprio Bataille que, ao ser indagado sobre a ameaça de livros como Justine ou Os infortúnios da virtude (1791), respondeu com termos semelhantes. Assim ponderou o escritor francês, na qualidade de bibliotecário:
“Com Sade nós descemos a uma espécie de abismo do horror, abismo do horror que devemos conhecer, que é, além disso, um dever particular da filosofia – pelo menos da filosofia que eu represento – colocar em questão, esclarecer e tornar conhecido, mas não, eu diria, de uma maneira geral. Parece-me certo que a leitura de Sade deva ser reservada. Eu sou bibliotecário; é claro que não colocaria os livros de Sade à disposição de meus leitores sem determinadas formalidades. Mas uma vez cumpridas tais formalidades – a autorização do encarregado e as demais precauções – acredito que, para qualquer um que queira ir ao fundo do que significa o homem, a leitura de Sade não é apenas recomendável, mas também indispensável.”
Não deixa de surpreender que essas considerações tenham sido feitas justamente por um autor de livros também proscritos, cuja divulgação exigiria, por certo, precauções semelhantes. Mas é preciso atentar para o fato de que a declaração de Bataille supõe uma ideia de perigo que, distinta daquela enunciada pelos guardiões oficiais da moral e dos bons costumes, constrói-se a partir de um conhecimento profundo dessa literatura e das motivações que a produzem.
Eliane Robert Moraes, especialista em literatura erótica (Walter Craveiro/Divulgação Flip)
Você é uma das grandes divulgadoras da obra do Marquês de Sade no Brasil. Como começou o seu interesse na obra desse autor?
Comecei ler Sade no final dos anos 1980, movida por um profundo interesse pelas literaturas que traduzem formas extremas de consciência, expressando estados de sentimento e de moralidade muito alheios à nossa ideia de humanidade. Os personagens sadianos são exemplares nesse sentido: figuras como o Duque de Blangis (Os 120 dias de Sodoma, 1795), Dolmancé (A filosofia na alcova) ou a notável protagonista da História de Juliette (1797), para citar só alguns, são tipos absolutamente estranhos, inclassificáveis, que transcendem os contornos da personalidade social e da individualidade psicológica. Não é por outra razão que Susan Sontag vai associar esse tipo de leitura a “uma aventura por regiões longínquas da consciência”, onde se tem acesso a “formas de conhecimento que exploram as fronteiras do cogito”. Essas fronteiras perigosas sempre me fascinaram, e continuam me fascinando.
Você está organizando um livro para o selo do Suplemento Pernambuco sobre o erotismo em narrativas brasileiras do romantismo aos primeiros anos do modernismo. O que você descobriu no processo de pesquisa para esse livro?
É uma espécie de antologia do conto erótico brasileiro, sem pretensões de esgotar o assunto. Trata-se de um período importante na história literária do país, pois muita coisa se modifica em termos da percepção do corpo, afetando diretamente os diversos domínios de Eros. Do romantismo ao modernismo, passando pelo naturalismo, testemunha-se no Brasil uma passagem significativa: o corpo absolutamente velado que caracteriza as representações do início do período, vai pouco a pouco sendo desvelado, numa operação plural que passa tanto pela violência macabra quanto pelo humor satírico, sem falar dos inesgotáveis expedientes da alusão. O livro reserva muitas boas surpresas...