A entrevista com Carla Diacov, reduzida no impresso por questões de espaço, aqui segue na íntegra.
***
Quando entrevistei Júlia de Carvalho Hansen, ela me falou de Reuben da Rocha. Quando entrevistei Reuben da Rocha, ele me falou de Carla Diacov (São Bernardo do Campo, 1975). Eu conhecia alguns de seus poemas, uma vez que a rede mundial de computadores te conduz a tantos lugares; mas numa trilha é sempre bom que alguém te leve pela mão, e que sejam mãos com dois dedos de confiança. Sabe o que é doido? Comecei a escrever este texto de abertura sem sequer ter proposto esta pauta ao editor, sem ter perguntado a Carla se ela aceitaria conversar comigo e sem ter lido ainda A menstruação de Valter Hugo Mãe: a isso damos o nome de confiar.
Com obras publicadas por pequenas e primorosas editoras, tal qual a Douda Correria e a Macondo Edições, Carla Diacov escreveu seu último trabalho, citado anteriormente, após um convite do escritor português que dá título ao livro. Já A munição compro depois, que será lançado neste mês de abril, foi uma proposta do selo Cozinha Experimental. “Todas as minhas publicações foram caminhos bonitos, afetuosos e muito profissionais”, avalia a poeta. Formada em Teatro e com grande intimidade com as artes plásticas, suas produções, incluindo as escritas, são fortemente marcadas pela serialidade.
Nesta conversa, ela comenta seu processo criativo, suas fobias, reclusão e a disposição para a arte.
Como se deu a escrita do livro A menstruação de Valter Hugo Mãe?
Sou apaixonada pela narrativa do Valter e vivo relendo O filho de mil homens (negrito nisso, porque agora vem a vergonha). Valter me procurou pelo Messenger...
VHM - comprei seus livros com o Nuno Moura (Douda Correria) e gosto muito do que estou conhecendo!
Carla - oh, que carinho! a douda correria me traz tanta alegria, tantos amigos! você também escreve, querido?
Ele foi gentil, como sempre, um doce; respondeu que escreve e mandou um beijo. Levei umas 12 horas para ligar o nome ao nome que eu tanto admiro! Depois disso, seguimos nos falando, trocamos desenhos e um dia ele me fez a proposta. Disse que, junto a um amigo, criariam uma coleção de livros não comercial: poesia, ensaios, entrevistas, etc. Sugeriu o título e pediu que eu ficasse à vontade, podendo inclusive usar o título apenas como provocação: “uma coisa livre, claramente feminista, em que você explorasse a questão da fisicalidade contingente dos homens e das mulheres, podendo citar algo meu ou não”. Como ele havia falado em ilustrações de sangue, segui o mesmo caminho que seguia quando compunha um poema para um desenho de sangue, nessa ordem, e bastante influenciada por dois livros do Valter que eu tornei a ler (O filho de mil homens e Homens imprudentemente poéticos).
Em que contexto você começou a realizar pinturas usando o sangue menstrual como matéria-prima?
Quando passei a “ser” meu claustro (fobias! fobias mil!), tive que me virar com o mundo reduzido. Então eu passei a ser toda a fonte que tenho para escrever, desenhar. Comecei furando o dedo, porque minha menstruação era cheia de coágulos. E esses primeiros desenhos me serviam como partida para que os poemas existissem. Com a menstruação regulada, a coisa ganhou outras dimensões físicas, os desenhos com sangue do dedo eram pequeníssimos. Alguém me disse “isso é outra arte”, e eu acreditei. Vez ou outra faço um poema para um desenho sangrento.
Essa questão das fobias parece definir muitos aspectos, temas, procedimentos da artista Carla Diacov. Como começou?
Começou bem cedo, mas me dei conta e fui diagnosticada um pouco depois da adolescência. Eu e meus pais ignoramos o diagnóstico – depressão e só, pois acho que ainda não havia nome para a síndrome do pânico, ou o profissional não detectou – e segui minha vidinha hipertímida. Fiz teatro e passei a notar um tanto de incômodo antes das apresentações. “Ah, mas esse frio na barriga é pra existir!” Não era isso. Era medo e era também medo de gente, de lidar com gente, de estar com pessoas, ainda que fossem afetos. Hoje sei que tive pequenos surtos no teatro, em namoros, amizades, em família. Depois de um grande surto em São Paulo, voltei ao Paraná, onde fui criada, e dei início aos tratamentos: depressão, fobias, pânico, TOC. Essa soma me faz captar e avaliar (ou descrever) melhor as coisas que eu normalmente não veria, não ouviria. Também me ajudou a fazer uso da sinestesia, pois até então isso só me chateava.
E essa reclusão, de alguma forma, reverbera na tua trajetória artística e no teu processo criativo.
Não foi longo o período até eu entender que no claustro cabe tudo o que preciso, mas nesse curto tempo – fui “forçada a reentrar” na fobia social, involuir no tratamento, por conta de uma agressão que sofri no final de 2014 – sinto que me moldei ao que viria, por exemplo, a entender como o feminismo em corpo e mundo isolados do contato físico justamente por causa da misoginia.
E para quê poesia em tempos de feminicídio?
Entendo meus mecanismos – de defesa, de revolta, de desejo – através da solidão. Mesmo quando eu conseguia sair de casa, a solidão sempre foi minha melhor ferramenta de compreensão e de autocompreensão. Sei que isso é da maioria dos seres humanos, mas em mim é o único caminho. O que não significa que um papo amigo não possa fazer o mesmo. Faz, mas passa para o orgânico na solidão. Penso que transfiro um tanto disso para a escrita. Então o feminicídio é a pergunta e a resposta. O feminicídio está movendo tudo aqui por dentro e traz “para fora” tudo que meu corpo lança ao tema.
Embora a gente esteja falando muito de fragilidades, a tua poesia não se intimida: ela é vigorosa, afetiva e, de certo modo, carrega uma esperança na alteridade. É possível reinventar o mundo pela poesia?
Há sempre uma escada de incêndio quando há o desejo pela arte, quando se pensa a arte, quando há a disposição para a arte. Sobretudo, a arte questiona. As perguntas sempre me salvaram dos meus abismos. É absolutamente possível que a arte seja (ou proponha ao corpo) um grito transformador. Questões violentas, misoginia, sexismo só não vão surgir para quem não mora neste planeta (muitos homens não são daqui!). E aí, na poesia, é usar essas questões como adubo.
Independentemente de temática, a potência sintática da tua escrita é algo desconcertante. Há muitos usos imprevistos, construções "esquisitas". Não ser compreendida está longe de ser um de teus medos. O que você tem buscado na linguagem poética?
Não! Não há medo da não compreensão. O retorno de pessoas que não compreendem, mas gostam (claro, quando consigo tocar o não-compreendido) fazem aberturas bonitas para justamente o que penso ser o melhor da arte: o diálogo. Busco, além do diálogo do não-compreendido, movimentos que tomem distância das minhas características últimas, recentes. Muitas vezes construo o poema com base num desejo de que o leitor se coloque em observação ou numa troca de lugar: que saiba (ou duvide!) o que me levou a derramar água ali ou que derrame a água comigo ou que derrame a água de sua própria maneira… Que a água o surpreenda, ignore a lei da gravidade, ou que a água seja nuvem. Busco o caminho – e isso quem me fez enxergar foi o Valter, no papo que a gente leva no fim do livro – quando escrevo e quando está escrito o poema. Me interessa muito me saber a caminho e me mostrar a caminho, e o caminho há de ser estranho, esquisito, imprevisto (é novo!). O TOC pode me paralisar e matar o poema ou pode me ajudar com o estranhamento, com o ritmo, com a repetição que, talvez sem o TOC, não estaria naquele trecho e então não teria “aquele som”. Gosto de colocar o poema para ser lido pela voz do google tradutor em um, dois, três idiomas. Muitos poemas passam por essa máquina e voltam crescidos, encolhidos, mais ou menos açucarados. Todo o bater bater no yuri [livro que saiu em 2017 pela Enfermaria 6] passou pela máquina.
A serialidade, a repetição, as anáforas e afins são recursos muito frequentes não só na tua escrita, mas na poesia contemporânea de uma forma mais ampla, com efeitos múltiplos. O que esse gesto pode produzir?
Sou serial desde o teatro, acho. Me interessa muito tomar um tema por norte, na escrita ou num exercício que extraia desse tema os melhores e os piores caldos. Gosto de ritmar (ou pensar que o faço) trechos do poema com a repetição de uma palavra ou sentença e penso que o efeito seja algo como o que acontece com músicas ritualísticas. Talvez seja o momento em que o poema desaparece e volta a aparecer diante dos olhos do leitor. Talvez uma pausa para saber onde do de dentro foi tocado ou onde nada aconteceu. Nada também me interessa muito. O “nada” místico, íntimo, ou o nada NADA mesmo. Nada aconteceu? Ok. Fica então a oportunidade para que algo aconteça ali, onde nada aconteceu. Você não perguntou, mas vou responder: sim, eu medito!
Anteriormente, você falou de outro elemento forte dos teus poemas: a sinestesia. Lembrei agora daqueles versos: "o rosto pintado de fim de guerra talvez fosse/ a lucidez na brancura no tato olfativo". Um exemplo no mar de sensações. Por que a sinestesia te chateava? Quando e como você passou a fazer dela uma aliada?
É um troço extremamente irritante se deparar com a letra “i” em outra cor que não a vermelha. É uma irritação do tipo quadro torto, chuveiro gotejante. Há quem não se importe. Para uma sinesteta com TOC e sol e lua em áries é como uma pessoa que te cutuca o tempo inteiro enquanto fala. Passei a fazer bem isso da sinestesia quando transferi os efeitos para o lado experimental artístico: O que posso mais fazer com essas sensações? Eu tenho fome quando vejo uma parede em determinado tom de amarelo. Então vou comer ou vou comer e, de alguma maneira, descrever esse caminho nervoso num poema? Ou posso construir um poema e, através de elementos que toquem minha sinestesia, tomar rumos desconcertantes. Ou posso tentar descrever um momento sinesteta. Posso demonstrar o tempo e os desenhos do tempo, de que forma sou tocada durante um arranjo sinesteta.
Com quais outros poetas e projetos tu sentes que tua poesia se comunica?
Essa é uma pergunta muito complicada. Fiz um poema que achei que dialogava com o “dentadura perfeita” da Angélica Freitas. Admiro descomedidamente a Angélica e também suas experimentações, seu caminho maravilhoso. Não sei se meu poema realmente dialoga com o dela. Talvez com a ossatura. Minha produção após o impacto de Um útero é do tamanho de um punho é absolutamente a resposta do meu corpo, são minhas mulheres… Mulheres que foram cutucadas, desafiadas a voltar a respirar. Isso é alta influência e foi tão exultante trabalhar esses... qual o nome do momento em que a baleia vem à tona para respirar? Tenho lido Fabrício Corsaletti, Marília Garcia, Assionara Souza, Mariana Botelho, Yasmin Nigri, Norma de Souza, Júlia de Carvalho Hansen, Raquel Nobre Guerra, VHM, Nuno Moura, Tazio Zambi, Reuben da Rocha… Não sei se minha poesia se comunica com a poesia de cada um desses afetos e afetos literários. O certo é que não se sai, por exemplo, de um texto do Corsaletti sem que aquela atmosfera fique um tempo (ou um tanto) em você.
Finalmente, o que pode nos adiantar sobre o novo livro, que será editado pelo selo Cozinha Experimental?
Ah, todas as minhas publicações foram caminhos bonitos, afetuosos e muito profissionais: Douda Correria, Macondo, Enfermaria 6, Casa Mãe e agora a Cozinha Experimental. O convite de fazer um livro com eles pintou duma conversa entre a querida Yasmin Nigri e o Marcelo Reis de Mello. A Yasmin apresentou alguns dos meus poemas para o Marcelo e ele me convidou a montar uma seleção para que pudéssemos começar um livro. A munição compro depois sai neste mês. O livro é uma seleta de alguns dos poemas escritos entre 2016 e 2017, com alguma coisa de serial (claro!).
*Gianni Paula de Melo é jornalista e mestranda em Teoria Literária (Unicamp).