Bia Lessa mai.18

 

Após recriar (em 2006) o Sertão de João Guimarães Rosa na exposição que inaugurou o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, Bia Lessa retornou ao “monstro de Rosa” – para usar a expressão de Silviano Santiago –, em uma aclamada montagem teatral, sucesso de público e crítica. Depois de apresentar a saga do jagunço Riobaldo (interpretado por Caio Blat) em temporadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, a diretora agora se prepara para rodar o país com o espetáculo. Como defende Silviano em Genealogia da Ferocidade. Ensaio sobre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (primeiro lançamento do selo literário do Suplemento Pernambuco, em processo de reedição), a obra rosiana não aceita domesticações. Longe disso, o que vemos no trabalho de Bia Lessa é a evocação da “beleza selvagem” desse visceral romance, possivelmente, a obra máxima da literatura brasileira. 

 

O jornal O Globo convidou algumas pessoas para entrevistarem o Zé Celso. Como você foi uma delas, eu vou começar te devolvendo a pergunta que você fez para ele: que momentos fizeram de você o que você é?

Difícil, né? Porque é tanta coisa! Eu acho que tem algo da minha infância, de ter tido uma infância muito livre. Eu morei numa cidade do interior em que eu era muito solta. E isso misturado com o fato de eu ter nascido uma menina muito feinha, muito magrinha, muito fraquinha... então, eu fui sempre um pouco bicho do mato. Meu pai falava assim: “Bia, você é muito encardida”. E eu acho que esse termo, “encardida”, era um pouco do que eu era mesmo. Eu tive uma mãe extraordinária, mas eu sofri muito por me sentir diferente, fora do mundo. Quando eu tinha 10 anos – e isso foi uma coisa marcante pra mim – estava passando aquele filme, Romeu e Julieta, do [Franco] Zeffirelli. Um sucesso avassalador na época, todas as pessoas foram. Eu tinha 9 anos e não conseguia ir, porque a sessão era pra 10 anos. Finalmente, um dia eu consegui entrar e vi o filme. E eu voltei pra casa aos prantos, porque eu não tinha gostado. O mundo inteiro gostava. Minhas amigas todas gostavam. Eu comecei a chorar como uma louca e falei: “mãe, o que que eu faço? Por que é que eu não gosto?” Daí minha mãe foi muito linda; ela me pegou bem bruscamente e falou: “Bia, isso da sua diferença é o que interessa. Ser igual não soma nada”. Então, ela deu pra mim ali um negócio de não ter medo da diferença, de não ter medo da contramão. Minha mãe era muito estudiosa, mas eu larguei a escola no ginásio. E eu acho que isso me deu certa ignorância de uma cultura mais geral, que hoje me faz falta. Eu sinto que eu sou um pouco ignorante. Um pouco não, bastante. Ao mesmo tempo, eu acho que isso me deu uma liberdade; me deu uma burrice que em algum canto me ajuda e uma liberdade. Às vezes, eu fico pensando que se eu tivesse toda consciência do que seria fazer um Grande Sertão, talvez eu não tivesse feito. Se eu tivesse mesmo toda uma consciência do que seria fazer O homem sem qualidades, do [Robert] Musil, talvez eu não tivesse feito. Então, eu acho que o resultado dessa ignorância junto com o prazer pela liberdade me guiou de alguma forma. E, obviamente, todas as dificuldades da vida, né? Porque o que encaminha a gente são as dificuldades, e não as facilidades; os baques profundos, os momentos em que você vai perdendo a ingenuidade, entendendo o que é o mundo, enxergando. Eu peguei o rabo daquela geração que achava que ia mudar o mundo, que o mundo ia ser muito melhor por causa da gente. E tem também as pessoas que você vai encontrando na vida: minha mãe, o Sérgio Sant’Anna, o Antunes [Filho], a Violeta Arraes, o Haroldo de Campos... tantas pessoas que você vai encontrando! Isso, de alguma forma, vai te moldando. A Anna Mariani, que é uma fotógrafa extraordinária, uma pessoa fundamental na minha vida. O crítico Yan Michalski. O Paulo Mendes da Rocha. A Flora Süssekind e o Silviano Santiago.

Você trabalha com diversas linguagens, dirige teatro, cinema, shows e instalações, trabalha como curadora e criadora de exposições e museus. Essa multiplicidade é uma influência desses diferentes encontros? E o teatro, como ele surge na sua vida?

Eu acho que a gente vira o que a gente é desde a educação até as imensas dificuldades que a vida vai apresentando, a queda dos sonhos, a construção de outros sonhos e, claro, os encontros. O primeiro Godard que eu assisti na vida foi o Sérgio Sant’Anna que falou: “vai assistir”. O Eleito [do Thomas Mann] quem me deu foi o Haroldo. Eu acho que a vida é feita de companhias. São as pessoas que vão te dando novos caminhos. O teatro surgiu quando eu ainda era muito menina. Eu tinha 14 anos e estava nesse momento de querer abandonar a escola. Eu tenho um tio que é um diretor de teatro muito importante, o Celso Nunes, e eu assisti a uma peça dele. Quando a minha mãe se mudou pro Rio eu encontrei com o Celso e falei que eu queria fazer teatro. Daí ele me sugeriu O Tablado. Eu entrei e logo no primeiro mês eu entendi que em geral o que as atrizes faziam – naquele momento eu ainda queria ser atriz – era esperar que alguém as chamasse pra fazer algum trabalho. Eu lembro que eu era amiga da Maria Padilha e falei pra ela: “Maria, não vamos esperar, não. Vamos fazer”. A gente montou nosso primeiro espetáculo de teatro, foi uma peça infantil que fez muito sucesso na época. Então eu logo entendi essa coisa absolutamente genial do teatro: se você quiser, você faz. Teatro pode acontecer aqui, agora. Eu acho que esse entendimento, de certa forma, está ligado à minha infância também, ao desejo pela liberdade. Daí eu fiz teatro por algum tempo e fiz uma substituição que foi importantíssima pra mim, no Asdrúbal Trouxe o Trombone, um grupo de teatro muito importante na época. Mas depois eu saí do teatro e fui domar cavalos nos Estados Unidos, o que foi uma virada imensa na minha vida. Mas acho que não vale muito a pena contar a minha vida toda, né?

Fiquei bastante intrigado com essa história dos cavalos. Quantos anos você tinha nessa época? Você acha que isso teve alguma influência no seu encontro com o Rosa?

Totalmente. Eu tinha 19 anos e fui aprender a domar cavalos em Los Angeles. E uma das coisas que mais me intrigava era perceber como um animal tão poderoso como aquele podia ser dominado. Eu tinha sempre essa coisa de procurar no cavalo onde é que estava a força dele.

É impressionante como algumas das nossas questões nos acompanham ao longo da vida, não é mesmo? São coisas que movem a gente de forma meio inexplicável.

Sim, e pra sempre. No Grande Sertão, a cena da morte dos cavalos é a que mais me enlouqueceu. Quando matam os cavalos e ele fala que aquilo é a pura maldade. Eu acho essa fala tão apropriada! Aqueles cavalos querendo fugir... é um animal que tem tanta força, uma liberdade tão louca no corpo, no movimento. O cavalo é um símbolo de força, de liberdade. E agora você me perguntando isso eu lembrei de uma imagem de quando eu era bem menina, na cidade do interior em que eu morava. A gente tinha o costume de ficar na varanda de casa olhando a chuva cair. Eu me lembro perfeitamente de um dia em que um cavalo atravessou correndo, sozinho. Depois de uns 5 minutos passou um cara com um cobertor na cabeça gritando: “onde é que tá meu cavalo? Onde é que tá meu cavalo? ” E aquilo nunca mais saiu da minha cabeça. Eu ia dormir e ficava pensando “será que ele encontrou o cavalo? Pra onde o cavalo fugiu?”, como se fosse o fragmento de uma história que não tinha nem começo e nem fim, e me intrigava o drama daquele cavalo e daquele homem. Engraçado...

Se eu não estou enganado, já te ouvi dizendo que leu Grande Sertão pela primeira vez para criar a exposição que inaugurou o Museu da Língua Portuguesa, em 2006. Foi isso mesmo? Por que a escolha do Rosa?

Foi, sim. Eles me chamaram pra fazer o Museu da Língua. Quando eu vi como estava estruturado o Museu, eu achei que faltava trabalhar mais com a linguagem. O Museu estava muito bem estruturado do ponto de vista da fenomenologia, mas não tinha a linguagem. O que que a gente faz com a língua? Com o a, b, c, d. O que que se faz com isso, com a beleza disso? Então, eu pensei em uma sala especial para escritores, e propus que a primeira exposição fosse do Guimarães Rosa, amplamente reconhecido como nosso grande inventor. A ideia foi admitida e eu peguei o livro. Sabe que pra mim foi fácil de ler? Eu logo entrei naquele universo. Eu não sei se porque eu tinha aquela obrigação de ler. Ou vai ver foi pela minha infância, né?! Uma infância no campo, numa casa que passava boiada, tinha cavalo que saía correndo. Não era de todo um universo estranho. E a sensação que eu tive foi a de que eu tinha acabado de ganhar um amigo – e eu sinto isso muito forte até hoje! Eu sempre tive minhas coisas, sabe? Quando eu li O Eleito, do Thomas Mann, eu fiquei absolutamente louca. Quando eu li a Virginia Woolf, o Orlando, também. O homem sem qualidades, do Musil, foi uma coisa absolutamente fundamental pra mim. Quando eu li Dostoiévski – e quem me deu foi o Domingos de Oliveira – foi a mesma coisa. Mas com Grande Sertão foi diferente. Eu nunca tive essa sensação de achar que um livro virou meu amigo. Eu volto sempre nele: em situações bizarras, pra pensar situações estéticas, pra pensar na educação dos meus filhos. É um amigo mesmo! Eu sofri muito pra acabar de ler o Grande Sertão. Quando eu vi que faltavam umas 10 páginas eu pensei que eu não ia conseguir terminar, porque eu me apeguei aquilo de forma muito profunda. E aí tem uma história bonitinha que eu encontrei o Antonio Candido e contei pra ele do meu sofrimento. Ele olhou pra mim e disse que tinha uma coisa ótima pra me dizer, que eu poderia começar tudo de novo. Era tão óbvio. Mas você não sabe como aquilo foi algo abençoado! Então eu acabei e comecei tudo outra vez.

Como foi conceber a transposição de um romance como Grande Sertão: Veredas para uma linguagem cênica sem operar um processo de domesticação da obra? Você poderia me contar como foi o processo criativo durante os ensaios? Como você guiava o elenco na sala de ensaio?

Quando eu fui fazer o Grande Sertão no teatro eu tinha uma sensação muito grande da impossibilidade do fazer. Eu não fazia teatro há muito tempo. Por outro lado, eu acho que o mais gostoso de qualquer coisa é poder vencer as dificuldades. Fazer o que você já fez não tem a menor graça. Então eu decidi enfrentar esse negócio. Eu sabia da dificuldade que seria montar o Grande Sertão, claro. Ao mesmo tempo, eu tinha a certeza de que o processo seria muito rico, mesmo que o resultado final não interessasse a ninguém. Então a gente fez uma coisa de registro do processo de trabalho, no sentido de que aquilo que era importante. O grupo tinha a consciência de que o processo era de fato o que importava. E eu fui conversando com muitas pessoas no caminho. Eu encontrei a Marília Rothier, a Flora Süssekind, o Roberto Machado, o Paulo Mendes da Rocha, o Silviano Santiago. Foram vários interlocutores que de alguma forma me ajudaram imensamente nesse processo. O olhar do Silviano pro Grande Sertão foi uma coisa importantíssima pra mim. O que ele dizia o tempo inteiro sobre o romance não ser domesticável foi algo que eu usei durante o processo de ensaio inteiro. Dos 120 dias de ensaio, eu acho que eu disse isso por pelo menos 80 dias. Isso foi algo que nos conduziu. Não como algo que tivesse que ser obedecido, mas como algo que a gente também reconhecia. O processo foi todo muito intenso. Era tão intenso que só quando o espetáculo estreou que a gente foi sentar o grupo todo numa mesa, comer algo e conversar com calma. Porque antes não dava nem tempo de ser amigo, de tanto que era exaustivo. Foram só quatro meses de ensaio, os ensaios precisavam ser todos conduzidos. Não dava tempo de você não ser objetivo, ao mesmo tempo em que a gente precisava ser muito subjetivo. O que eu fazia era trabalhar coisas muito curtas do Rosa, sem nenhuma cronologia., era pegar frases, parágrafos, trechos soltos e dar para os atores trabalharem, não o texto, mas a situação. No início, o texto estava ali como um estímulo, não como a coisa fundamental. A gente ia experimentando. Muito lentamente, eu fui selecionando as coisas do romance que mais me interessavam. Mas eu não acho que eu fiz uma adaptação da obra. Eu fiz uma colcha de retalhos. No caso do Guimarães todo livro está contido em tudo, tudo está em cada um dos fragmentos. Então, se você fizer bem uma das coisas você faz o livro todo. Não tem cenas, é como um rio caudaloso, uma coisa que dá na outra, na outra e na outra. Eu precisei, de início, libertar os meninos do pânico de fazer um Guimarães Rosa, de aquilo ser algo muito maior que a gente. Eu precisava dar muita força pra cada um deles criar uma individualidade própria. Uma das coisas mais geniais no Guimarães é como cada coisa é cada coisa. As coisas não são homogêneas. Os jagunços não são todos iguais. Cada um é completamente diferente dos outros. Cada pássaro pia de um jeito. A coisa da diversidade do Brasil está completamente apontada. Eu também não queria criar uma imagem do que é o Sertão do Rosa, mas evocar em cada pessoa uma imagem desse Sertão. Porque o Sertão é dentro da gente. Sertão é o mundo todo. Todo processo partiu disso e foi assim até o final, na hora de pensar figurino, cenário, a questão sonora. Evocar, e não fazer. É o corpo do ator que vai se transformando, transformando e é tudo. Às vezes os meninos me perguntavam o que significava alguma palavra e eu dizia pra eles lerem a frase inteira e ver o que aquilo transmitia pra eles. Tentar entender cada palavra é empobrecer palavras que dizem tantas coisas, e deixam também pro leitor uma possibilidade imensa de criação. O bom do Guimarães é justamente que as palavras não são palavras fechadas. Determinar o que elas queriam dizer era negar a própria obra. Foi justamente esse entendimento que foi nos dando ânimo de criar algo que era nosso, um diálogo nosso com a obra do Guimarães Rosa. O livro está lá, obviamente, mas é o que nós fazemos com ele.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro defende que Guimarães Rosa é um dos maiores pensadores brasileiros do século XX. Segundo Viveiros de Castro, Rosa (ao lado de Clarice Lispector e Oswald de Andrade) deu uma das maiores contribuições filosóficas ao pensamento ocidental oriunda de nosso país. Eu imagino que você concorde com ele, certo?

Caramba, eu não sabia que ele falava isso. Que lindo! Eu acho que só agora a gente vê o Rosa. Grande Sertão é um livro muito extraordinário, com inúmeras possibilidades de leitura. Não à toa ele tem o infinito no final, porque ele é meio infinito. Cada vez que você lê, você vê uma outra coisa. Mas não é só um detalhe que você não tinha percebido antes. Você pode ter uma leitura totalmente metafísica, você pode ter uma leitura histórica, você pode ter uma leitura sociológica, você pode ter uma leitura psicológica. São muitas as possibilidades. Depende do olho que você vê, porque ele tem muitas camadas mesmo. O João Moreira Salles, que eu adoro, foi ver o espetáculo e disse que a gente mostrava uma coisa que estava no romance e ele nunca tinha visto de verdade, a coisa dos bichos, por exemplo. Eu acho que hoje a gente encontra no romance uma coisa que há 20 anos a gente não veria. É uma coisa deslumbrante!

Bia, quando eu assisti ao espetáculo, a sensação que eu tive foi a de um encontro muito intenso com o Sertão do Rosa, ou ao menos com o Sertão que eu imaginava. Nesse momento difícil do país, onde você tem buscado experiências tão viscerais como a que eu tive na sua plateia?

Ah, que bacana você me dizer isso! Muito bacana mesmo! A gente começou falando do Zé Celso, né? Pra mim, do Zé ainda sai muita faísca. Eu vi As Bacantes no dia em que o Zé fez 80 anos. É uma coisa que você sai e pensa: caramba, o Brasil tá salvo. Como aquilo é absolutamente necessário. A primeira vez que eu fui a um baile funk, há muito tempo, também foi uma das coisas me fez pensar que o Brasil estava salvo, porque juntava imensa alegria e muita libido. Eu saí de lá e pensei: é uma das coisas mais poderosas que eu já vi na vida. A sensação que eu tenho que é o mundo oficial está todo falido, acabou, e que as faíscas vêm pelas beiradas, pelos cantos, pelos pequenos atos heroicos. Ao mesmo tempo em que a gente tem um retrocesso cavalar, triste, a gente tem também uma potência de vida que é algo extraordinário. As novas formas de pensar gênero... imagina você estar num mundo que não é mais homem e mulher? Eu fico achando que as possibilidades que a ciência vem dando é uma coisa que pode nos possibilitar viver de outro modo, totalmente diferente. Dos meios oficiais eu confesso que estou bem descrente. Mas eu acho que algo vem acontecendo pelas beiradas, sim. Só que é preciso uma ruptura. Uma ruptura radical!

 

* Leonardo Nascimento é jornalista e mestrando em Antropologia (UFRJ).

SFbBox by casino froutakia