A edição 2018 da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ocorre de 25 a 29 de julho. A programação foi solta no início deste mês. Em meio a cortes de orçamento e redesenho de parte importante da estrutura física do evento, conseguiu-se manter as inovações amplamente bem recebidas no ano passado como a paridade entre os gêneros, o percentual de autoras e autores afrodescendentes. “Todas as ideias que me nortearam na Flip 2017 foram mantidas”, diz a curadora do evento, a jornalista Joselia Aguiar.
O presidente da Associação Casa Azul, Mauro Munhoz, afirmou na coletiva de imprensa que anunciou a programação (em 5 de junho) que anualmente a Flip vem sofrendo uma redução orçamentária da ordem aproximada de R$ 1 milhão. A Casa Azul é a realizadora do evento. Em 2017, o valor aplicado foi de R$ 5,8 milhões – a conta deste ano não foi fechada, mas Munhoz estimou que a redução da quantia em 2018 corresponde à de outros anos. Também foi reduzido o espaço para o público em volta do palco principal, agora com 500 lugares sentados. Em contraponto, aumentaram o número de parcerias: no ano passado foram 8 casas parceiras, neste ano são mais de 20.
Nesta conversa com o Pernambuco, Aguiar explica algumas das escolhas feitas neste cenário de redução orçamentária e pensa aspectos do maior evento literário do país. “A literatura continua no centro [dos debates], autores ainda pouco conhecidos terão a oportunidade de apresentar seus trabalhos no grande palco que é a Flip”, diz , resumindo o cerne de sua proposta curatorial.
Em algumas de suas edições, a Flip homenageou escritores não canônicos: Millôr Fernandes (2014) e Ana Cristina Cesar (2016). Hilda Hilst vem integrar esse pequeno grupo. Quais os desafios de colocar em pauta o trabalho de uma autora cuja imagem pessoal é maior que livros?
Temos duas questões muito interessantes aí. A primeira, sobre a diferença entre homenagear um autor canônico e um não-canônico. Há dificuldades nos dois caminhos. O autor canônico – um Drummond ou Machado, por exemplo – é imediatamente aceito pelo grande público. Não falta material para pesquisar, e para compor mesas de debates há autores que têm diálogo com suas obras e ótimos especialistas. O desafio, nesse caso, é fazer algo de fato novo. Um autor não-canônico não apenas é menos conhecido do grande público como por vezes também representa um território inexplorado. Se há muitos guias para explorar o autor canônico, no caso do não-canônico você não tem um guia, depois de tudo pronto você terá construído o seu próprio guia para oferecer. A Hilda Hilst tem leitores cada vez em maior número, que pertencem às novas gerações e que também são mais especializados: gente que a estuda na universidade e gente das artes, sobretudo da literatura e do teatro.
A outra questão colocada tem a ver com autores cuja imagem pessoal se torna mais conhecida que seus livros. Sem dúvida Hilda Hilst começa a ser mais alvo de perfis e entrevistas depois de lançar O caderno rosa de Lori Lamby, sua “banana ao mercado editorial”, como ela dizia; tinha passado dos 60 [anos] e era apresentada como excêntrica. As declarações engraçadíssimas que ela dava à imprensa só reforçavam isso. Tentei ao máximo restringir o anedotário e trabalhar o tempo inteiro em torno de sua obra e das questões que coloca. De certo modo, o problema com Lima Barreto também foi esse. A imagem pessoal era a de um autor negro que tinha perecido ao enfrentar o racismo. O tempo inteiro tentei fazer com que a obra de Lima Barreto estivesse em primeiro plano, ainda que seja uma obra que trata sobre ser negro e enfrentar o racismo. Você imagine que havia gente da área de literatura que esperava uma mesa de debates sobre alcoolismo, ou sobre o funcionalismo público.
No ano passado, em conversa com o Pernambuco, você afirmou: “No final das contas, a Flip contribui para colocar a literatura em pauta e também para trazer autores ainda pouco conhecidos para a frente da loja”. Para você, quais os saldos positivos da influência da Flip 2017 no mercado? Qual a sua expectativa para a edição deste ano?
Todas as ideias que me nortearam na Flip 2017 foram mantidas. A literatura continua no centro, autores ainda pouco conhecidos terão a oportunidade de apresentar seus trabalhos no grande palco que é a Flip. Difícil falar sobre como influenciamos, é sempre melhor que quem tenha sido influenciado conte isso. O que percebo é que, após a coletiva, muitas das questões que apareceram em 2017 já não apareceram desta vez. Não houve mais surpresa quanto a termos paridade de gênero – uma mulher a mais, na conta final de 33 –, tampouco quanto a uma proporção de autores e autoras negros que não era comum anos atrás. Fico contente cada vez que vejo um novo projeto de autor da Flip 2017 sendo anunciado, às vezes por editoras grandes, que se movimentaram muito no último ano. Havia agora, em comparação a 2017, muito mais oferta de autoras mulheres e autores e autoras negros.
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No tocante aos autores estrangeiros, suas escolhas passaram ao largo de um George Saunders, por exemplo, para ir a um Colson Whitehead (vencedor do National Book Awards e do Pulitzer), menos conhecido. Ou mesmo uma Liudmila Petruchevskaia, recentemente lançada no Brasil, mas ainda pouco difundida se comparada com outros nomes do exterior. E a poeta portuguesa Maria Teresa Horta ou ainda o escritor Alain Mabanckou. Pode comentar os critérios para essas escolhas menos óbvias?
Sabe que convidamos o George Saunders este ano? (risos). Não costumamos dizer quem foi convidado e não aceitou ainda, até para não estragar a surpresa dos próximos anos, mas o fato é que vencedores de Nobel, do Booker Prize, do Pulitzer costumam ser convidados ano a ano. O Philip Roth era convidado todo ano. De tanto ser convidado, um dia o J. M. Coetzee aceitou. Mas concordo quando diz que há escolhas menos óbvias. Eu faço um esforço brutal para sair da obviedade. Desde a maneira de cercar o homenageado do ano até o desenho de mesas, que não passa necessariamente por temáticas, ainda que elas existam – e este ano existem mais do que existiram em 2017. Não teria sentido ter um elenco apenas de consagrados, se não for para conhecer o que ainda não se conhece, acho que um tanto da graça estaria perdida. Também é importante dizer que, pelo meu jeito de trabalhar, eu parto do autor homenageado para fazer o recorte. Não é obrigatório, tampouco é uma solicitação da Flip. Dos quatro nomes que citou, três – Maria Teresa, Mabanckou e Liudmila – têm pontos de contato com a Hilda Hilst. De todo modo, a Flip é uma festa literária que homenageia um autor, não é uma festa sobre um autor homenageado. Então o mais importante é mostrar como a cena literária pode dialogar com esse homenageado, que questões ele nos traz.
Na coletiva de imprensa, você chegou a ser indagada sobre escolhas fora do cânone para o evento. Em resposta, pontuou que isso não pode ser visto como uma “receita para renovar o evento”. De fato, essas escolhas ajudam a pautar novos autores para leitores e críticos, além de inserir certas discussões (como representatividade de minorias, por exemplo) no meio literário, entre outras contribuições. Você estranha ser indagada por esse tipo de atitude? Como entende esse tipo de questionamento?
As perguntas têm de ser todas feitas, sou jornalista e entendo perfeitamente a necessidade de levantar todos os pontos. Creio que a Flip está sendo renovada de muitas maneiras, não apenas ao escolher autores fora do cânone. Creio também que a maioria dos autores mais canônicos já foi homenageada, então cada vez mais haverá nomes ainda não estabilizados. Quanto a ter uma receita, pelo meu jeito de trabalhar também acho quase impossível isso existir.
Quando indagada sobre o percentual de autoras e autores negros na Flip 2018, você respondeu que se mantém o mesmo do ano passado (30%). Optou por não dar números mais concretos porque teria de consultar todos os convidados para saber como se entendem, além de que muitos preferem não ser tratados como, por exemplo, “escritor negro”, mas apenas por “escritor”. Em todo caso, a que se deve a manutenção (e não a ampliação) desse percentual?
Não podemos deixar de reconhecer que, dado ao racismo estrutural, ainda temos mais autores e autoras brancos no país e no mundo. Manter o percentual é já muito importante. Se fossemos aumentar mais, começaríamos a ter uma desproporção. É sempre possível fazer uma festa ou festival com um recorte negro ou afro-brasileiro. Mas acho que avançar, neste momento, é montar algo de modo que todos dialoguem sobre literatura, brancos e negros.
Qual a responsabilidade imposta pelo percentual citado acima (30% de autores e autoras negros) e pela conquista da paridade de gênero (17 mulheres e 16 homens)? Seria possível, no futuro, fazer uma Flip com menos pessoas negras e com mais homens após experiências tão bem-sucedidas e que buscam representar a diversidade do meio literário?
É uma alegria muito grande para mim ter feito o que fiz, fazer outra vez e saber que, aonde estiver, farei sempre. A Flip renova seus curadores a cada um ou dois anos, então não tenho muito como prever o futuro. Claro,vou ficar na torcida para que essa pluralidade sempre aconteça.
No ano passado, falou-se bastante na pluralidade de público alcançada pela Flip – proporcionados por, entre outros motivos, ter homenageado Lima Barreto, inserido autores de perfis não hegemônicos na grade (André Vallias, Adelaide Ivánova, Luaty Beirão e por ter ampliado o espaço para não pagantes. Quais suas expectativas de público para a Flip que homenageia Hilda Hilst?
Será maravilhoso se a heterogeneidade de público se repetir. Não sei como será. Ano passado, senti que houve uma mobilização muito grande, por causa do homenageado e pelo que anunciávamos como um compromisso pela pluralidade no programa. Essa pluralidade está mantida, não é mais novidade, mas é claro que é preciso ter uma audiência plural também. Vai depender do interesse das pessoas e da possibilidade de se deslocarem e ficarem hospedadas em Paraty. Também poderão, claro, assistir a tudo pela internet. No longo prazo é que isso tudo vai se tornar mais nítido.
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Você manteve a poesia espalhada pela programação, reunindo um conjunto bastante heterogêneo de poetas que farão suas performances com base em temas da obra de Hilda Hilst. Ano passado, entretanto, foram seis artistas. Neste ano são apenas três: Bell Puã, Reuben da Rocha e Ricardo Domeneck. Qual o saldo da experiência de 2017? E por que optou pela redução?
O saldo foi excelente; diria que foi a grande marca da Flip 2017. Você fala em redução, mas é preciso contextualizar. Primeiro, comento que houve uma redução geral no número de autores e autoras este ano. Foram 46 em 2017, desta vez temos 33; e foram 22 mesas ano passado, desta vez, 19. Ao mesmo tempo, vamos ter mesas com mais vídeo e teatro, então de certo modo as mesas já começaram a incorporar dentro delas aquilo que no ano passado ficou mais circunscrito aos chamados “frutos estranhos”. Dentro das Canjas Flip ou Flip Mais, como chamamos programações paralelas que ocorrem fora do Auditório da Matriz, vamos reforçar essas entradas ainda mais que ano passado, por exemplo com slam, performance e literatura de palco. Os “frutos estranhos”, portanto, permanecem e não são mais “frutos estranhos”, estão sendo lindamente absorvidos como corpos permanentes.
Uma escolha bastante bem-vinda é a homenagem à editora Corrupio que será feita pela Flip em parceria com a editora Sesi. Uma editora fundada e gerida por mulheres, responsável pelas primeiras edições de Pierre Verger no Brasil. Pode comentar sobre como surgiu essa ideia e a importância de divulgar o trabalho da Corrupio?
Conheço a história da Corrupio desde os meus tempos de estudante em Salvador (BA) que se interessava já por literatura e artes em geral. Conheci Pierre Verger em encontros por motivos variados nessa mesma época. Foi, talvez, a pessoa que mais me impressionou em toda a minha vida, pelo seu misto de aventura, mistério e dignidade. Depois, no mestrado em História na USP, estudei sua fotografia publicada pela Corrupio no livro Retratos da Bahia. É, portanto, uma história que me diz muito respeito, sentimental e intelectualmente. Ano passado, depois da Flip 2017 e quando eu já sabia que estava na Flip 2018, tive um encontro com as duas editoras, Arlete Soares e Rina Angulo, e comentei: a Corrupio é uma editora de mulheres que há quatro décadas publica títulos seminais de cultura afro-brasileira; vocês têm de mostrar esse case para o país. Mas não pensei imediatamente como isso poderia acontecer. Com a ajuda da editora do Sesi, que vai ter uma casa parceira em Paraty, chegou a solução e isso vai ser possível. Que outros curadores e curadoras da Flip, sejam eles de Pernambuco ou Rio Grande do Sul, possam trazer para o circuito nacional essas histórias que são mais conhecidas, por vezes, em âmbitos locais.
* Igor Gomes, editor-assistente do Pernambuco, é jornalista