Juliana Borges é pesquisadora em antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia e Política. É uma das vozes mais destacadas no atual debate feminista de perspectiva interseccional – ou seja, que pensa a sobreposição de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação. Juliana é colunista do Justificando, do site da Fundação Perseu Abramo, da Revista Fórum e do Blog da Boitempo, foi articuladora política da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD) e assessora da Secretaria de Governo Municipal de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo. Em seu livro, O que é encarceramento em massa? (da série Feminismos Plurais, da Editora Letramento), a autora se propõe a introduzir e estimular homens e mulheres a pensarem sobre uma pauta que considera crucial para a luta antirracista: as relações entre o sistema de justiça criminal e a manutenção das desigualdades baseadas na hierarquização racial. Passando por ideias de Sueli Carneiro, Thula Pires, Angela Davis, Michelle Alexander, Achille Mbembe, Vilma Reis, Ana Flauzina e uma série de outros intelectuais, a autora analisa como este momento de grave crise sistêmica – um momento de acirramento nas relações sociais e de cada vez maior concentração de renda, controle e extermínio – tem operado para que se reordenem as hierarquias de opressão em diferentes fórmulas.
Você defende que o sistema de justiça criminal não só é perpassado pelo racismo como ele próprio é operador da hierarquização racial. É possível afirmarmos que a luta antirracista passa necessariamente pela superação do cárcere como meio de resolução dos conflitos sociais?
Sem dúvidas. Há uma enorme contradição quando falamos em liberdade e seguimos defendendo o cárcere como estratégia principal para sanção de conflitos. É preciso cada vez mais nos questionarmos sobre a necessidade da punição. Por que punir? Por que submeter o outro a uma penitência? Esta punição, em países com passados coloniais e escravocratas, necessariamente será aplicada a determinados grupos, dada as hierarquias raciais fundamentais para a manutenção de um sistema de desigualdades. Neste sentido, temos um sistema de justiça criminal que surge como espaço central para a manutenção de privilégios e interesses de um grupo em relação aos outros, com a defesa da propriedade sendo o grande foco mobilizador deste sistema. A meu ver, não há sentido em falarmos de liberdade em sociedades que dependem de mecanismos punitivos e que criminalizam vulnerabilidades produzidas por esta mesma sociedade. Portanto, se o foco deste sistema de justiça criminal é a manutenção da pirâmide racial no país, coletivos antirracistas precisam, mais do que nunca, estudar e questionar estas engrenagens desse sistema de desigualdades.
No livro, você apresenta algumas saídas que considera “radicais”, como a afirmação de Angela Davis de que “só seremos livres em um mundo sem prisões”. O aumento no número de publicações de autoras negras tem impactado a literatura criminológica e o debate sobre o punitivismo no país?
O campo da criminologia crítica tem realizado produções e questionamentos das estratégicas focadas na punição e no encarceramento no país há cerca de 20 anos – isso se quisermos focar em uma considerável análise numérica de produções. Mas há, obviamente, formulações anteriores no país sobre isso. A intelectualidade e os movimentos negros historicamente questionaram a violência como motor de operação das opressões contra a população negra do país. O questionamento da criminalização e dos sistemas punitivos está presente no percurso histórico da produção negra. Seja pela denúncia do genocídio realizada por Abdias do Nascimento (1914-2011), com enfoque epistemológico, seja na atualização desta denúncia realizada mais recentemente pelo movimento e por intelectuais negros e negras, apontando o genocídio da população negra através da letalidade à qual este grupo sociorracial é submetido. O interessante é perceber a forte presença de mulheres negras nestas produções mais recentes e também no ativismo, seja pela mobilização, infelizmente, a partir de vivências dessa violência, seja pela necessidade intelectual de reflexão, posto que, como aponta Vilma Reis, mulheres negras são historicamente discriminadas: pela hipersexualização violenta contra seus corpos, pela exploração doméstica, ou por serem as mães que geram estes homens que serão brutalizados, aprisionados e assassinados. É como se, numa sociedade com forte marca cristã e de necessidade de penitência, estas mulheres levassem a culpa por trazerem ao mundo as figuras que a sociedade necessariamente enxerga como figuras criminosas. O aumento de produções que têm questionado e refletido que não é possível construir crítica ao campo criminológico sem discutir racismo – opressão que estrutura a sociedade brasileira – tem proporcionado um ganho imenso tanto nas formulações discursivas como nas práticas e na produção de políticas públicas. Assim, temos visto que o tema da segurança pública tem tomado uma centralidade como nunca tomou nas discussões do campo progressista, que em geral é falho com essa pauta.
Ao analisar historicamente o poder punitivo, você chama atenção para as engrenagens racistas, machistas e classistas que movem esse sistema. Qual a importância de uma perspectiva que intersecciona cada uma dessas categorias para analisar o capitalismo de barbárie que você aponta?
Interseccionalidade é um conceito político e também metodológico, uma ferramenta que permite reflexão e produção de saídas complexas para questões complexas. Não há como continuarmos em um sonho realizado por etapas, já que o sistema está todo imbricado e articulado, e as opressões atuam de modo consubstanciado. Este momento de aprofundamento do capitalismo, da implantação e ação profunda da necropolítica (conceito criado por Achille Mbembe para analisar formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte), de políticas de descarte racionalizado de uma gama cada vez maior de corpos demanda olhares e métodos de pensar, visualizar e agir sobre o mundo que acompanhem este complexo sistema. Até agora, a perspectiva que intersecciona essas categorias tem sido a ferramenta que vejo como mais potente para enfrentarmos as questões da contemporaneidade.
Você é graduada em Letras (USP). Na epígrafe do livro há uma citação de Conceição Evaristo. Concorda que a literatura e outras manifestações artísticas de autoria negra são parte essencial no debate sobre ideologia racista e sistema de justiça criminal no Brasil? Lembro de um texto seu sobre a atuação dos Racionais MC’s nesse debate.
Pela minha primeira formação, fica sempre muito difícil deixar de lado o olhar literário sobre o mundo. A poeta portuguesa Matilde Campilho afirma que a poesia pode não salvar o mundo, mas, sem dúvidas, salva o minuto. A literatura, por ser um direito e ter em si a efabulação, característica humana, como nos ensinou o professor Antonio Candido, tem em si a força de fazer conhecer outros mundos, criar, recriar e, portanto, instigar o leitor. Escrever é um processo doloroso, como diz Conceição Evaristo, uma vez que buscar este impacto no outro é algo árduo e sempre impacta primeiro quem escreve. Por isso, concordo nesse ponto sobre a literatura e outras linguagens artísticas como instrumentos de debate e reflexão sobre o racismo no Brasil. Veja: já em 1859 tínhamos publicado, por uma mulher negra, o primeiro romance abolicionista do país: Úrsula, de Maria Firmina Reis. Temos as obras de Machado de Assis (com contos que poderiam render uma análise crítica sobre punições), Lima Barreto, Solano Trindade e uma infinidade de autores e autoras negros que irão ver na arte literária este espaço amplo, pela possibilidade do imagético, de efabular e produzir tensões e reflexões. Racionais MC’s são herdeiros de um percurso histórico, no qual negros e negras veem nas artes um terreno de imensas possibilidades para uma produção que é também sócio- -político-filosófica sobre nosso país e o mundo. O engraçado é que eu precisei ir para uma outra área, a Antropologia, as Ciências Sociais, para começar a enxergar a literatura como este campo de exploração. Claro que sempre vi crítica social nas produções literárias, mas, antes, interessava-me mais em outros aspectos no texto.
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Muitas pessoas desdenham do abolicionismo penal como apenas mais uma moda acadêmica. Você já teve retorno do impacto do seu livro fora dos círculos especializados?
É muito comum dizerem que o abolicionismo penal é uma utopia e que deveríamos focar no que é possível. Tenho dito para colegas socialistas que, então, deveriam abandonar a ideia de socialismo, porque também é utópico, já que não vivemos numa conjuntura política que possibilitaria sua implantação. O abolicionismo penal é uma perspectiva a ser perseguida. Significa dizer que devemos tê-lo como perspectiva utópica. É a partir desta perspectiva que construiremos políticas cotidianamente. Então, para que focar na formulação de leis e políticas públicas que reforçarão o punitivismo e ampliarão o cárcere, que alimentarão tortura e violência? Ser abolicionista penal significa buscar alternativas que desconstruam a ideia de punição como necessária, que defendam e, quando possível, implementem medidas pelo desencarceramento, que busquem a restauração e a mediação de conflitos, em vez de incentivar práticas violentas. É pensar que não podemos mais criminalizar vulnerabilidades, que não podemos aceitar a execução de políticas de morte, em que determinados corpos são considerados descartáveis. Isso significa repensarmos nosso sistema educacional, que segue como aparato ideológico de controle. Significa pensarmos políticas que não reproduzam o absurdo de acharmos razoável a prisão de pessoas por uma operação puramente comercial, quando a criminalização do tráfico nada mais é que a manutenção de interesses e lucros de grandes corporações. Quem lucra com a ilegalidade? Certamente, não são as comunidades que hoje estão militarizadas e enfrentando a violência como única política do Estado em seus territórios. Queremos um Estado e relações sociais pautados pela solução de conflitos, pela restauração, pelo diálogo e por reparações ou um sistema que produz uma violência que será reproduzida pelos indivíduos? Considero fracos os argumentos que usam homicídios e atentados contra a vida como contraposição ao abolicionismo penal, porque não levam em conta que o grande causador do superencarceramento no país não são esses crimes. A máquina estatal se mobiliza para reprimir ações contra o patrimônio ou de cunho econômico, mas não há mobilização da máquina para os atentados contra a vida. E por quê? Porque isso envolve tempo, inteligência, outros mecanismos bem mais complexos. O abolicionismo penal não é uma perspectiva ingênua. Ingenuidade é pensarmos que aplicando o mesmo remédio punitivo que vem ampliando violência e extermínio conseguiremos dar conta dos conflitos e tensões sociais.
* Leonardo Nascimento é jornalista e mestrando em Antropologia (UFRJ)