Noite chuvosa de segunda-feira. A Sete de Setembro estava tão caótica como sempre. Fechei a porta do carro, devidamente estacionado em local proibido. Num boteco um casal obeso com mais álcool no sangue que o aceitável para uma segunda-feira trocava carícias e a tevê, sintonizada no noticiário, dava mais um assassinato. Um caminhão descarregava carne congelada e o estivador reclamava de algo para o encarregado. Eu me encaminhava para o edifício em que morava a alma que eu iria buscar: Gilvan Lemos. Escritor premiado, tímido e humilde, que fazia questão de se dizer um grande azarado. “Um pecador de marca maior”, tinham-me dito na seção de Almas Perdidas do décimo quinto andar. O serviço era simples: entrevistá-lo, assegurar-me de seus pecados mediante uma confissão simples, pedir que assinasse a papelada e conferir-lhe o toque, com um aperto de mão ou algo parecido. Quatro dias depois do toque e pronto: encomenda feita. Subi o elevador antigo. Décimo segundo andar. Recebeu-me Gilvan de bermuda, camisa quadriculada e um sorriso no rosto. “Sabe quem eu sou, não é?” Ele fez aquele olhar de quem não lembra seu nome, mas sabe do que se trata. Pediu que sentasse, ofereceu café. O sofá era coberto por uma toalha com o brasão do Santa Cruz. Percebi: entrava no mundo do escritor, no labirinto que era sua memória. O que se segue é o relato fiel de minha entrevista em busca dos pecados de Gilvan Lemos e minha frustrada tentativa de capturar sua alma.
O procedimento é simples: direi uma palavra e o senhor deve me dizer o que ela lhe recorda.
Certo.
Ira.
Eu sempre fui um menino bem comportado, era muito apreciado na escola, em todo canto em que chegava. Eu não sabia o que era ira. Comecei a ler e minha intenção principal era ser escritor, então eu só pensava em escrever. Durante esse período eu sofri muita injustiça, muita safadeza, até de primo legítimo meu que me prejudicou imensamente. Passado esse tempo, eu estou numa fase meio parada, nunca mais escrevi nada, começo a recordar do passado e vêm aquelas coisas: “Mas eu era muito besta!”. Aí vem a ira. Hoje eu sou irado, por pessoas que já morreram. Tanto que eu tenho esperança que exista alguma coisa no outro mundo, porque existindo eu vou direto para o inferno e lá eu vou pegar esses caras, porque eles estão lá também. A minha ira hoje é essa.
Inveja.
Inveja eu tinha dos escritores famosos da minha época. Eu morava em São Bento do Una sem condições absolutas de ser alguma coisa, porque lá não tinha colégio, jornal, banca de revista, não tinha uma pessoa com quem eu convivesse intelectualmente. Então eu me fiz sozinho comprando livros pelo reembolso e lendo. O dinheiro que eu ganhava na fábrica era todo para comprar livros. Então eu fui me instruindo pela leitura, mas nunca tive esperança de ser escritor porque eu não tinha condições. Quando eu vim para Recife não tinha máquina. Eu me viciei em escrever a máquina na época da fábrica e não havia jeito de eu escrever à mão. Tanto que quando eu consegui comprar uma máquina à prestação, em um mês eu escrevi Noturno sem música, que estava todo pronto na minha cabeça. Então eu fiquei com esse livro aqui, mas sem esperança. Eu pensava: “Se conseguir publicar um livro, estou realizado”. Aí apareceu um concurso e me inscrevi. Tirei em segundo lugar com Osman Lins, mas ficou o livro aqui e Osman, muito sabidão, foi para São Paulo, se fez lá e eu aqui parado. Eu propriamente não invejava, eu mais admirava. Em primeiro lugar Graciliano, depois José Lins do Rego, depois Erico Verissimo, aquela turma da época. Eu tinha inveja porque eles conseguiam publicar e eu não tinha esperança.
Luxúria.
Não. A minha luxúria era só na zona. Era sexta e sábado na zona, pegando as raparigas. Até me associei com uma. Eu ficava por lá e ela me perseguindo, me chaleirando. “Mas Ivan (ela me chamava de Ivan), que demora, não vem, não é?” Aurelina. Ela era mais velha do que eu. Uma vez eu tirei férias, fui a São Bento. Quando voltei procurei ela e a mulher da pensão disse: “Não, Aurelina abortou, não está vindo.” Aí passou-se. Quando ela ficou boa eu reatei a amizade e ela me disse: “Olhe, eu abortei de um filho seu!” Eu disse: “Você é besta! Você fica com todo mundo!” E ela: “Não, mas toda vida você me procurava, era sempre o primeiro da noite!” Então eu sou pai de um aborto. Na época que eu podia casar, fiquei muito sobrecarregado com a família. Terminei sustentando pai, mãe, uma irmã que casou mal. Foi passando o tempo, fiquei velho. Acabou-se, a luxúria, tudo.
Preguiça.
Preguiça não. Comecei a trabalhar na fábrica dos Valença, que eram primos legítimos meus e me exploraram toda a vida. Trabalhei cinco anos lá. Comecei com 14, mas antes disso sempre trabalhei, porque papai tinha casa de jogo de bilhar e tinha uma banca de bicho. Eu era tão besta que meu irmão mais velho dizia “Fica aí na banca que vou aqui e volto já”. E nunca voltava. Não sei nem o que é preguiça. O último livro que escrevi foi em 2004, Na rua do Padre Silva, de lá para cá não escrevi mais nada. Revirando meus papéis eu encontrei um romance de 1946, Sete ranchos, baseado numa favela de São Bento. João Luís da Nossa Livraria disse: “Eu quero publicar!” Eu disse: “Presta não, João. Eu escrevi em São Bento ainda, eu tinha dezessete para dezoito anos, um ignorante”. Mas aí ele insistiu, eu entreguei e vai sair agora.
Vaidade.
Não, nunca tive vaidade e me prejudiquei muito por isso. Osman empatou comigo no Prêmio Fábio Prado. Antes ele tinha passado na José Olympio e ela não quis. Quando ele chegou a São Paulo foi anunciado o livro como vencedor do Prêmio Orlando Dantas e a José Olympio aceitou. Aí ele (Osman) ligou para mim: “Olhe, Gilvan, você está perdendo muito tempo, está tendo um concurso agora, patrocinado pelo Diário de Notícias (Prêmio Orlando Dantas), mande Jutaí Curumim”. Eu mandei. Demorou, demorou, eu escrevi para ele: “Está vendo? Perdi meu tempo”. Ele disse: “Não, não deu ainda não, vamos aguardar.” Tirei em primeiro lugar. A comissão julgadora: Otto Maria Carpeaux, Herberto Sales e esse do dicionário, como é? (pausa) Buarque de Holanda. Aí pronto, disse: “Estou feito!”. Também tirei aqui o prêmio da UBE. Foram 50 mil réis e uma viagem ao Rio. Quando cheguei lá, fui ao Diário de Notícias. Fizeram uma reportagem, publicaram um capítulo do livro. Perguntei na portaria: “Quem é o chefe do suplemento agora?” Álvaro Lins. Quando ele me viu fez uma festa. “Olhe, eu fiquei muito feliz com o prêmio, porque você é pernambucano como eu! Falei com Herberto Sales quando julgaram o prêmio. “Mas, aqui para nós, o Diário de Notícias não vai cumprir”. “Por quê?”, eu perguntei. “Porque vai fechar, está quebrado. Mas eu já falei com o Rubem Braga, expliquei tudo e ele disse que publica seu livro”. Aí eu voltei para cá e, pouco tempo depois, leio no jornal a notícia: a Editora do Autor (a editora do autor era de propriedade de Rubem Braga, Fernando Sabino e Walter Acosta. Faliu em 1966) quebrou, foi vendida à José Olympio (risos). Qual era o meu papel? Eu ía à José Olympio e dizia: “Esse livro ganhou o prêmio Orlando Dantas e estava para sair pela Editora do Autor, como Osman fez, né? Aí saía, mas não. Passou-se o tempo, foi quando escrevi outro, como era? (pausa) Emissários do diabo. Eu não tinha apoio, então escrevi para o Osman, se ele podia conseguir publicar. Ele disse: “Gilvan, não espere por ninguém! Você é um grande escritor, mande seu livro para as editoras, sem modéstia, sem timidez. Mande para Civilização (Brasileira) sem citar meu nome, que estou brigado com Ênio Silveira (editor da Civilização Brasileira)”. Eu escrevi para Ênio e ele disse que eu mandasse. No mesmo mês recebi uma carta aprovando. Apenas pediu para mudar o nome, que era Enviados do diabo, porque disse que dois ‘dos’ ficava feio. Eu disse: “Pode mudar”. Resultado: 5 mil exemplares, autor inédito, durante semanas saiu naquela coluna dos mais vendidos, não era o primeiro lugar. De seis em seis meses fazia o apanhado dos livros, como é que chama?
Balanço?
Isso! Com seis meses Ênio me pagou 2.500 livros. Resultado: “Pronto, agora estou feito!”. Ênio foi preso como comunista, quebraram a Civilização Brasileira, o livro terminou sendo vendido a um cruzeiro nas ruas (risos). Vá vendo o caiporismo! Você conhece um conto de Machado de Assis chamado Último capítulo?
Não.
É um conto muito interessante de um cara azarado, desse tipo, né? Aí eu conto essas coisas e digo “vá vendo o caiporismo!”. Tem o caso de Jutaí Curumim. Tinha O Cruzeiro, se lembra daquela revista? Mário Camarim era o diretor. Ele me escreveu porque Herberto Sales tinha trabalhado lá e tinha indicado esse livro a ele. Perguntou se eu queria publicar e eu mandei. Ele aceitou e mandou só uma retificação: sugeriu mudar o título para Jutaí Menino. Eu deixei. Resultado: publicou, teve um êxito grande, saiu reportagem n’O Cruzeiro e tudo. O Cruzeiro fechou e a editora fechou. Vá vendo o caiporismo!
Então você acha que a ausência de vaidade é que fez você ir perdendo essas oportunidades?
É. Agora, eu tive muitas chances, tive esses dois prêmios nacionais, aqui no Recife tive vários prêmios, mas não tinha vaidade porque não me consolidava. Quando eu estava assim, já no apogeu, vinha um contratempo e eu me lascava.
Gula.
Não. Desde menino eu era magro. Até 21 anos, quando vim pro Recife, meu peso era 44. Desde menino eu era, como mamãe dizia, fastidioso. Por exemplo, feijão eu não topava, ovo eu não topava. Mamãe sempre fazia um pratinho especial para mim porque eu não comia nada. Hoje você vê: eu estou morando sozinho, durante o dia eu almoço em restaurantes, à noite eu faço um cafezinho com um sanduíche e pronto.
Cobiça.
Pobre de mim. Claro que eu sempre desejei as coisas, mas fazer coisas impróprias para obter, nunca fiz não. Não tenho inveja, nem cobiça, nada. Não... (pausa) Cobiça, não. Eu só não sou santo, porque não morri ainda.
(Dei por encerrada a entrevista. Pedi que assinasse a papelada da repartição e apertei-lhe a mão. Lembrei do Diário de Notícias, de Rubem Braga, d’O Cruzeiro, da Civilização Brasileira e de Ênio Silveira. Confesso que tive receio de descer por aquele elevador antigo. Na sexta-feira treze nada aconteceu a Gilvan Lemos.)
Escritor faz a mea-culpa de todos os pecados cometidos
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