A professora de Sociologia da Universidade de Maryland e ativista negra, Patricia Hill Collins (Estados Unidos, 1948), uma das principais teóricas do feminismo negro internacional, defende a maternidade de mulheres negras como espaço de poder e tem dedicado seus estudos mais recentes à interseccionalidade [nota 1]. Sua principal obra, Black Feminist Thought, publicado nos Estados Unidos há quase 30 anos, terá a primeira tradução para o português em breve. O ineditismo de sua obra traduzida, no entanto, não evitou que seu pensamento fosse conhecido e influenciasse o ativismo brasileiro ao lado dos nomes de bell hooks e Angela Davis. De passagem pelo Brasil, onde participou da 8ª Edição da Feira Literária Internacional de Cachoeira (Flica), ocorrida em outubro no Recôncavo Baiano, a professora conversou com o Pernambuco sobre a onda de extrema direita em expansão no mundo, o papel do feminismo transnacional nesse cenário e da literatura, a partir do qual mulheres negras podem ler as histórias de outras e se fazer ouvir.
Como aconteceu sua aproximação do Brasil e em particular do ativismo negro aqui praticado?
Quando eu estava revisando Black Feminist Thought, procurei por trabalhos de mulheres negras transnacionais, então encontrei Carolina Maria de Jesus e Lélia Gonzalez. Eram apenas pequenos fragmentos, porque muitos deles estavam em português. Fiz o que podia com o que encontrei, porque sei que o Brasil é o quinto maior país do mundo, cheio de pessoas negras, mas a língua portuguesa quase cria uma barreira. Minha primeira viagem ao Brasil foi em 2003, onde estive em um seminário para docentes. Com um grupo de quinze professores, viajei a São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro. Fizemos um tour numa favela que tinham crianças como guias, conhecemos o Movimento dos Sem-Terra (MST), uma comunidade criada perto de um lixão, além do Museu Nacional do Rio de Janeiro, incendiado recentemente. Em dez dias conclui que havia muito aqui e eu precisava voltar, o que só aconteceu 11 anos depois, quando fui convidada para falar no evento Latinidades, em Brasília, no ano de 2014. Fiquei extasiada com aquele evento, porque estava desesperançada, presa dentro da academia, me perguntando o que ia acontecer com o feminismo negro. Então eu vi a resposta naquilo que estava acontecendo, um evento organizado por mulheres jovens que me impressionaram e com quem aprendi muito.
A professora faz uma referência a Sueli Carneiro na edição de Black Feminist Thought de 2000. O Brasil passa a influenciar o seu trabalho em algum momento? Quais narrativas de mulheres negras ecoam nas suas pesquisas?
Não conheci grande parte das feministas negras sobre quem eu escrevo. Eu não conheci Sueli Carneiro, por exemplo. Por isso valorizo a chance de escrever e publicar porque há pessoas que eu jamais teria chance de conhecer, assim como elas de me conhecerem. Quero deixar algo para dizer a elas mesmo que ache que não serei lida, assim como algumas mulheres negras que estavam escrevendo no séc. XIX não tinham ideia que seus trabalhos seriam estudados. Uma história que me chamou atenção foi a de uma mulher negra, que usou a pensão de seu marido, morto na Guerra Civil, para publicar suas próprias ideias. Casos assim caem na obscuridade e anos mais tarde pesquisadoras da literatura negra descobrem e dão visibilidade. É com isso que me identifico. Mesmo não sendo historiadora, eu respeito muito o passado. Eu sou uma pesquisadora solitária e sou muito minuciosa com o meu trabalho. Eu vou procurar as coisas até onde eu puder. Geralmente gosto de procurar o que está faltando e me perguntar o que isso significa. Grande parte do meu trabalho é fundamentalmente ouvir, ler o que está publicado no mercado e não necessariamente acreditar no que está posto.
Na mesma edição, você se refere ao feminismo no contexto transnacional. Ainda é possível falar em feminismo transnacional no momento atual, depois dos avanços das pautas dos grupos não hegemônicos?
Claro que sim. O que é muito bom e diferente agora é que podemos ver as diferentes expressões do feminismo negro. Sempre adotei a posição de que você escreve do seu próprio local de fala, de sua localização. A primeira edição do livro de 1990 foi sobre as particularidades das mulheres afro-americanas, que naquele tempo estavam tentando formatar um discurso público sobre feminismo negro. As ideias já estavam lá há muito tempo, mas não haviam sido sistematizadas. Nunca parti do princípio de que as mulheres afro-americanas foram as únicas a terem pensado nisso. Isso é uma maneira muito ocidental de olhar para o conhecimento, como se alguém o possuísse ou o tivesse descoberto e eu nunca tive esse modelo colonial de conhecimento. Foi muito interessante para mim, depois daquela primeira edição, ouvir que eu deveria falar de uma perspectiva transnacional. O que me surpreende é como as ideias de Black Feminist Thought viajaram para além das mulheres negras, porque os argumentos são sobre como você se empodera com suas próprias experiências, como você analisa as suas próprias experiências e desenvolve uma voz independente, mas que pode ser usada para estabelecer um diálogo com os outros. Isso não é algo que se encerra com as fronteiras de gênero ou raça. Quando escrevi o livro este era meu pensamento inicialmente e isso se confirmou. Então sim, há muito espaço para o feminismo negro transnacional, porque há mulheres negras em todos os lugares. Sempre haverá mulheres negras. A raça não é uma categoria fisiológica fixa. Esta é a socióloga em mim falando. As mulheres negras não têm a mesma cor, a mesma classe, a mesma sexualidade, então tem a heterogeneidade dentro da categoria de mulher negra. A sociedade tem de mudar para que as mulheres negras se empoderem para serem completamente humanas, para usar todos os seus talentos. Assim falo sobre focar o particular e o universal juntos, em vez de partir do princípio de que há algo universal lá fora, no qual você tem de se encaixar.
Um dos candidatos à vice-presidência da República [nota 2] deu uma declaração relacionando violência e famílias chefiadas por mães e avós. Seu trabalho focaliza a maternidade como local de empoderamento das mulheres negras, muito pertinente para pensar o caso do Brasil. Como explicar esse empoderamento a partir da família?
No discurso feminista hegemônico, a maternidade é definida como um local de opressão, em que as mulheres ficam aprisionadas no lar sendo mães e rejeitam esse papel como algo que atrapalha a emancipação feminina. Eu defendo o oposto: a maternidade para mulheres negras, não em todos os seus aspectos, é uma posição de poder. Pode ser que isso não seja reconhecido como tal, mas como você cria seus filhos é um posicionamento político para as próximas gerações. Muito do que eu escrevo é sobre essas mulheres negras comuns que vivenciam isso e para as quais a base de empoderamento tem sido instituições comuns como maternidade, igrejas, vizinhanças ou partes da vida que essas mulheres controlam verdadeiramente, que é diferente apenas do trabalho. Não estou dizendo que todas as mulheres precisam ser mães para serem completas. Nada disso. Não é uma glorificação da mãe toda poderosa. É mais uma investigação sociológica de como pessoas negras têm conseguido persistir e sobreviver porque as mulheres negras têm sido fundamentais para maternar seus próprios filhos, mas para a própria sobrevivência da comunidade negra. Eu quis politizar a maternidade, ao contrário de vê-la como algo fora da esfera política. Acredito que as mães negras fazem o melhor com o que elas têm. É assim que nós temos de olhar para isso. Um candidato à vice-presidente que faz esse tipo de declaração parte do princípio de que há uma única e melhor maneira de ter uma família (de classe média, heterossexual e com filhos). A vida de muitas pessoas não segue esse padrão. Dizer algo assim para mulheres negras desconsidera que elas estão segurando o mundo. Mesmo que tenha um homem na casa, isso não significa que esse homem tenha emprego, que seja um bom pai. Ainda assim, isso é algo que a gente precisa tomar cuidado no feminismo negro, porque existem homens que são bons homens e também bons pais que estão presos.
Considerando a experiência recente dos EUA, com a vitória de Donald Trump, você acredita que nós brasileiros poderíamos ter visto o avanço da extrema direita que põe em risco nossa democracia?
É muito interessante pensar nas mudanças que estão ocorrendo, mas eu só poderia responder se pudesse ver o futuro. Tudo o que podemos fazer é ler o presente baseado no que sabemos sobre o passado. A esquerda nos Estados Unidos imaginou que quando Barack Obama ganhasse a eleição o racismo estaria morto e de alguma forma a América estava caminhando para um futuro glorioso. Mas os sinais contra Barack Obama estavam bem claros durante os oito anos de sua administração. As suas filhas foram chamadas de macacas, sua esposa foi xingada e Donald Trump afirmou que queria ver a certidão de nascimento de Obama, duvidando que o presidente eleito fosse americano. Obama foi o catalisador da oposição. Então de certa forma, penso que Trump seja um outro tipo de catalisador, para que as pessoas tomem consciência e se perguntem sobre o que podem aprender nesse momento histórico. Apesar de ser um processo doloroso, não quer dizer que não seja crucial. A diferença entre a realidade sociológica e a retórica ideológica associada a ela ajuda um regime como o fascismo. A retórica é moldada para situações particulares como vemos no Brasil, na Itália e aos Estados Unidos. Você pode passar todo o tempo tentando rebater isso ou você pode desenvolver argumentos alternativos que empoderem as pessoas. O fascismo não serve as pessoas. As pessoas servem ao Estado e à elite. Eu diria que você não pode prever as especificidades, como as coisas crescem, porque muitas vezes são construídas bases para que elas cresçam. Nos Estados Unidos foram quarenta anos para chegarmos a este momento. A mídia social e a internet trouxeram novas oportunidades de dinheiro e para direcionar este dinheiro para candidatos diferentes. Não é que Trump veio do nada. É mais uma questão sobre não conseguir reconhecer que cada lado tem de estar vigilante. Você não pode partir do princípio que vai vencer para sempre. As ideias do Trump não ficarão para sempre. Não vão estar no poder para sempre. As ideias não vão simplesmente embora quando se perde uma eleição. O Brasil tem uma história, assim como os Estados Unidos e mesmo assim eles parecem chegar a um momento similar. Há tendências parecidas no Reino Unido, acredito que na Itália e na Romênia. Não é algo peculiar a nenhum país específico. Como pesquisadora, eu responderia com outra pergunta. Quais são as conexões entre esses diversos movimentos que chegam ao poder neste momento histórico?
Toni Morrison, em entrevista a pesquisadora Marsha J. Darling, defendeu a necessidade de não se esquecer os horrores vividos no período da escravidão. Qual a importância de levantar temas difíceis para ativar a memória coletiva?
A literatura, por exemplo, pode colocar você no lugar desses eventos particulares. Você pode vivenciá-los de forma subjetiva, ao mesmo tempo em que acho que há um perigo de visar apenas os grandes exemplos como o genocídio negro. Para mim, deve-se chamar atenção para as mortes institucionalizadas que acontecem devagar, para as quais não olhamos. Eu costumava dizer aos meus alunos de graduação que dois mil bebês negros morrem todos os anos na nossa cidade. Eles morrem porque têm um índice de mortalidade diferente das crianças brancas. Eles não chegam a completar um ano devido a uma série de questões sociais e ninguém se importa com isso. Mas se eu levasse esses bebês para um estádio de futebol e atirasse neles na sua frente, você ficaria horrorizada. O que eu quero dizer é que esses bebês estão tão mortos quanto antes. Não devemos esquecer o aqui e o agora.
Você veio ao Brasil a convite de um evento literário e acaba de citar a literatura como um lugar para tratar de assuntos caros à sociedade em geral. Como você acha que a literatura pode contribuir com o ativismo?
Eu não acredito que estou num festival de literatura, porque eu não escrevo poesia, não faço nada disso, mas agradeço estar aqui. A literatura é maravilhosa porque você pode dizer coisas na poesia, na ficção, no teatro que se aproximam mais do espaço interno, de como as pessoas se sentem. Você certamente pode educar com esses mecanismos particulares, mas não precisa estar restrito à ideia de mostrar exatamente os fatos. Como uma cientista social tenho de ter cuidado com o que eu digo, se estou pisando em solo firme. Na literatura há mais espaço para criar e mostrar outras possibilidades, não apenas de representação. O que eu levo do Brasil é que muitos dos ativistas começam seus trabalhos com suas próprias histórias, em entender suas histórias diferentemente. A literatura atuar na medida em que lemos as histórias dos outros e contamos nossas próprias histórias. Se você está firme do seu lugar, você pode se conectar com outros. Para mim, ações e ideias caminham juntas. Assim penso a literatura pode fazer, em termos de ativismo, o que nenhum cientista social do mundo pode fazer.
NOTAS
[nota 1] A interseccionalidade considera que as condições sociais e políticas são determinadas por diversos sistemas de poder que atuam simultaneamente, formando uma intersecção de eixos. Questões como raça, gênero e classe se entrecruzam, por exemplo, para determinar a situação de vulnerabilidade de mulheres negras periféricas ou lésbicas.
[nota 2] Em setembro deste ano, o general da reserva Hamilton Mourão, candidato à vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro (PSL), disse que famílias sem pai e avó são “fábrica” de elementos “desajustados”.
>> Edma de Góis é jornalista e pós-doutoranda na UNEB.
>> Danielle de Luna é professora adjunta de literatura norte-americana da UFPB e pesquisa representações da maternidade negra nas literaturas afro-americana e afro-brasileira.