A entrevista com Suely Rolnik, reduzida no impresso por questões de espaço, abaixo segue na íntegra.
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O ponto de partida de Esferas da insurreição: notas para uma vida não-cafetinada (n-1 edições), novo livro da psicanalista e crítica de arte Suely Rolnik (foto), são os movimentos micropolíticos iniciados nas décadas de 1960 e 1970, sobretudo no Brasil e na França. Trata-se de um guia de resistência política em tempos de contrarrevolução. Na obra, Rolnik comenta a expansão de uma nova onda conservadora não só no Brasil e na América Latina, mas como fenômeno global aliado ao neoliberalismo financeiro. A operação proposta pela autora é a busca do entendimento desse mal-estar generalizado não só em sua esfera ameaçadora ou angustiante, mas como uma potência que busca caminhos para mudanças e rupturas, um grito que convoca a cada um de nós a novas insurreições.
Você defende no seu livro que, apesar da dificuldade dos períodos de convulsão, neles “a vida grita mais alto e desperta aqueles que ainda não sucumbiram integralmente à condição de zumbis”. É esse grito da vida que nos convoca para insurreições?
A vida grita quando prevalecem forças de violência contra ela no corpo social. O que estamos vivendo hoje por todo o planeta é a tomada de poder por este tipo de forças, que no Brasil são especialmente escrotas. E por que a vida grita em situações como esta? Porque o que a vida quer é perseverar, e para isso toda vez que sua continuidade se vê ameaçada nas formas do presente ela se coloca em ação em sua própria essência: potência de criação que transfigura as formas da realidade e transvalora seus valores. Este grito não se expressa como oposição ou denúncia, mas como força de atualização em novas formas e valores, e por isso tem poder de contágio em subjetividades que ainda não se transformaram irremediavelmente em zumbis sob o impacto da violência. Nesse contágio, geram-se insurreições coletivas como o feminismo contemporâneo, no qual as mulheres têm se deslocado de seu personagem na cena machista, inviabilizando a continuidade da própria cena. Foi este movimento que levou recentemente milhares de mulheres a ocuparem as ruas de várias cidades do Brasil, acompanhadas por muitas parceiras pelo mundo afora, diante do perigo de ser eleito para à presidência do país o candidato mais explicitamente porta-voz da violência contra a vida (da qual o machismo é apenas uma das manifestações). Em suma, a vida nunca para: a história humana é feita de um combate permanente entre distintos tipos de forças, das mais ativas às mais reativas.
Você conseguiria traçar um breve panorama, para aqueles que ainda não conhecem o seu trabalho, das dessemelhanças e dos entrelaçamentos do que você chama de insurgências macro e micropolíticas?
Macro e micro são duas esferas indissociáveis de todo ser vivo: forma e força. No humano, a esfera macro corresponde aos modos de existência de uma determinada sociedade, os códigos culturais segundo os quais se articulam tais modos, os distintos personagens que compõem suas cenas, seus lugares e sua distribuição no campo social, suas hierarquias e suas representações, o que é inseparável de como se distribui o acesso aos bens materiais e imateriais. Enquanto que micro é a esfera das forças vitais que animam as formas do presente e também das forças que as convulsionam, levando a sua transformação. Então, macro e micropolítica correspondem à disputa entre distintas perspectivas em cada uma destas esferas. Na primeira, a disputa na forma de sociedade em que vivemos é por um maior ou menor teor democrático do Estado e suas leis; é nesta esfera que atuam tradicionalmente as esquerdas. Na segunda, a disputa é por uma maior ou menor afirmação da vida em sua potência de transfiguração. Como contamos com um acúmulo de experiências de mais de dois séculos para o combate macropolítico, vou concentrar minha resposta no combate micropolítico que, não por acaso, sob o domínio do regime colonial-capitalístico, nos é mais desconhecido.
Apelarei aos Guarani para facilitar o acesso a esta esfera que é tão óbvia para eles e tão inacessível para nós, caras pálidas. Os Guarani usam uma expressão com dois termos para designar garganta: ñe’e raity, que significa literalmente “ninho das palavras”. É porque sabem que, em nossa experiência humana como seres vivos, nossos corpos são afetados pelas forças variadas do ecossistema e suas relações variáveis a cada momento – o que inclui, obviamente, as forças das demais vidas humanas e seus mundos. Eles sabem que embriões de palavras emergem desta fecundação do ar do tempo em nossos corpos e que, neste caso, e só nele, as palavras têm alma: a alma da vida que as/nos habita – esteja ela materializada nas formas do presente, ou em sua condição de germe portador de futuros. Que as palavras tenham alma e a alma encontre suas palavras é tão fundamental para eles, que tanto o termo ñe’e, que eles usam para “palavra”, “linguagem”, quanto o termo anga, que usam para “alma”, significam ambos “palavra-alma”. E a doença, para eles, seja ela de que ordem for, sempre decorre da separação entre palavra e alma. Os Guarani sabem igualmente que os embriões de mundo tensionam as formas em que a vida se encontra plasmada no presente. É que, sendo portadores de futuros, eles são o indício de que a vida está nos impondo a exigência de criarmos outros modos de existência, que se digam com outras palavras, para que ela possa voltar a respirar a cada vez que se encontra sufocada em suas formas e linguagens atuais. Quando ocorre esta inevitável tensão, os modos de existência vigentes e suas palavras perdem seu sentido, o que nos deixa desestabilizados. Somos, então, tomados por uma espécie de nó na garganta que nos causa um desconfortável estranhamento. Atentar para essa sensação é essencial, porque ela funciona como sinal de alarme que convoca o desejo a agir para recobrar um equilíbrio vital, que nos humanos é indissociavelmente emocional e existencial. É na resposta do desejo a este sinal de alarme vital que se distinguem suas políticas. Este é precisamente o campo da micropolítica disputado por variadas e variáveis perspectivas vitais que regem as ações do desejo, das mais ativas às mais reativas.
Como definiria uma micropolítica ativa?
Uma micropolítica é ativa quando o desejo se deixa guiar por aquilo que lhe indicam os embriões de futuros; neste caso, a germinação vai se completando num processo de criação até encontrar palavras, imagens, gestos etc, que lhes permitam deixar o ninho e voar para o mundo. O que resulta disto é uma diferença, um devir de nós mesmos e de nosso campo relacional, com potência de proliferação por toda trama social. Este é o destino ético da pulsão, aquele em que a vida se afirma em sua força de transfiguração. Poderíamos dizer que o inconsciente é esta fábrica de mundos. Estar à altura desse tempo e desse cuidado para dizer o mais precisamente possível o que sufoca e produz um nó na garganta e, sobretudo, o que está aflorando diante disso para que a vida recobre um equilíbrio – esta é, precisamente, a tarefa de uma micropolítica ativa.
Considera que a força vital é sempre destinada ao cumprimento de um destino ético e coletivo?
Não. Os destinos da vida variam; eles resultam de uma disputa entre forças, das mais ativas às mais reativas. Esse é o campo da micropolítica. Se a insurreição nessa esfera é indispensável nas sociedades sob o poder do regime colonial-capitalístico (que hoje logrou abarcar o conjunto do planeta), é porque o que predomina neste regime é o desvio da pulsão vital de seu destino ético. Nós simplesmente ignoramos essa esfera da fábrica de mundos, pois perdemos o acesso à nossa condição de viventes na qual se dá a experiência desta produção: uma dimensão da experiência subjetiva que propus chamar de “fora-do-sujeito”. É nesse âmbito que acessamos os afetos: efeitos das forças e suas relações que agitam o fluxo vital de um mundo e atravessam singularmente todos os corpos que o compõem, fazendo deles um só corpo, em variação contínua. Dessa perspectiva, o outro, humano ou não-humano, vive efetivamente em nosso corpo (sob a forma de afetos) e o fecunda, produzindo gérmens de mundos em estado virtual. Separados desta experiência, não temos como desenvolver o saber-do-vivo ou saber-eco-etológico que nos permitiria decifrar o que nos acontece por meio do poder de avaliação dos afetos. Com o corte do acesso à nossa condição de viventes intrínseco à política de subjetivação no regime colonial-capitalístico, a subjetividade tende a reduzir-se à sua experiência como sujeito, própria à nossa condição sociocultural e moldada por seu imaginário.
Quais são as consequências dessa redução da subjetividade à sua experiência como sujeito?
Primeiro, vale a pena situar nossa experiência subjetiva como sujeito: é o que em nós decifra as formas da existência, seus códigos e suas dinâmicas, por meio da percepção e da cognição (distinta do saber-do-vivo), o que viabiliza a gestão do cotidiano e a sociabilidade. Da perspectiva do sujeito, o outro é um objeto exterior que nos produz emoções psicológicas (sentimentos), distintas das emoções vitais (afetos), as quais associamos a representações de que dispomos em nosso repertório e as projetamos sobre ele, o que nos permite situá-lo e a nós mesmos frente a ele. Bem, então qual o problema de estarmos reduzidos a esta experiência do mundo? É que estarmos separados de nossa experiência fora-do-sujeito, nos faz ignorar que a vida em sua essência é potência de diferenciação contínua, o que nos leva a crer que a forma de mundo em que ela se encontra provisoriamente plasmada no presente seja absoluta e eterna. Sendo assim, quando esta forma se desestabiliza e somos tomados por um nó na garganta, o mal-estar do estranhamento que isso nos provoca se converte em angústia do sujeito, pois este o interpreta como sinal do “fim do mundo” e, com ele, de nós mesmos – e não como sinal do “fim de um mundo” e, com ele, de uma certa forma do suposto si mesmo, na qual estamos temporariamente corporificados.
Diante deste perigo imaginário, nos aterrorizamos e o desejo busca recobrar rapidamente um equilíbrio que nos livre da angústia, numa espécie de ejaculação precoce. O preço que pagamos pela escolha desta micropolítica reativa é altíssimo: ao extirparmos de nossa consciência o estranhamento que nos provoca o nó na garganta, este se converte num nódulo cancerígeno cujas metástases, como a peste, espalham-se pelo corpo-ninho-de-mundo de nós mesmos e de toda a trama social em que estamos envolvidos. Interrompem-se, assim, os processos de germinação e, pior, criam-se condições para que o sistema vigente possa drenar a pulsão vital de modo a fazê-la produzir de acordo com seus desígnios. A esse regime de produção da fábrica do inconsciente propus dar o nome de “inconsciente colonial-capitalístico”. A espoliação dessa fábrica de futuros se dá por meio de uma operação de cafetinagem: o movimento pulsional é desviado de seu curso ético, no qual produziria “novos mundos” em função do que pede passagem, para que, em seu lugar, produza “novidades”, mais e mais cenários que multiplicam as oportunidades de investimento e acumulação de capital e excitam a voracidade de consumo numa velocidade exponencial. O abuso da pulsão é a medula micropolítica do regime colonial-capitalístico. Para viabilizá-lo, o inconsciente é um dos alvos essenciais do mega-empreendimento colonial operado pelo capitalismo, que hoje tornou-se globalitário. Sendo assim, é impossível transformar o atual estado de coisas sem intervir na esfera micropolítica: descolonizar o inconsciente é o que almeja a insurreição nesta esfera.
No prólogo da obra, Paul B. Preciado defende que seu livro é “uma belíssima larva que cresce no esterco”, capaz de “nos guiar nos lugares que mais nos aterrorizam e tirar dali algo com o que construir um horizonte de vida coletiva”. Essa cartografia pode ser pensada como um imbricamento entre sua atuação na clínica e sua produção teórica na área da cultura, numa tentativa de traçar novos caminhos para repensarmos as relações entre indivíduo e sociedade?
Eu costumo dizer que este prólogo de Paul B. Preciado é a melhor parte do livro. De fato, aquilo com o que eu trabalho desde sempre – pensar/agir no âmbito dos modos de subjetivação, ou seja, na esfera micropolítica – implica necessariamente uma transdisciplinaridade, e esta é indissociável de uma pragmática clínico-política. O modo como concebo a clínica vem muito de minha formação na Paris dos anos 1970, onde estudei ciências sociais, filosofia e psicanálise e, sobretudo, me alimentei dos efeitos de 1968 ao longo daquela década. Esta formação me trouxe duas consciências importantes acerca da psicanálise. A primeira é que há na psicanálise, desde a sua fundação, uma linha de fuga que é seu ponto de virada mais radical – uma espécie de potência clandestina portadora de um desvio na cultura e na política de desejo dominantes na tradição moderna e colonial-capitalística do Ocidente. Isso inclui a política de produção de pensamento. Do ponto de vista dessa linha de fuga, a invenção da psicanálise favoreceu a reconexão com o saber próprio de nossa condição de viventes, cujo acesso havia sido interrompido no modo de subjetivação que predomina nessa tradição. E mais: isso se fez não só no plano teórico, mas também e indissociavelmente pragmático ao introduzir um ritual – a prática psicanalítica – em que tal reconexão se dá por meio de um longo processo que poderíamos qualificar de “iniciático”.
A segunda consciência é a de que a tendência que, no entanto, prevalece na história da psicanálise é, ao contrário, uma resistência à linha de fuga citada, movimento que acaba contribuindo para a expropriação da produtividade do inconsciente ao submetê-la ao teatro dos fantasmas edípicos, próprios da política de subjetivação dominante no regime colonial-capitalístico, que Freud equivocadamente estabeleceu como universal. Se a psicanálise pode contribuir para descolonizar o inconsciente, faz parte desta empreitada (clínica) descolonizar a própria psicanálise, ativando sua potência clandestina e expandindo a linha de fuga presente em sua fundação. Expandi-la não só no âmbito restrito das práticas psicoterapêuticas e mais restrito ainda dos consultórios, mas sim em todo o campo social – ou seja, assumi-la e praticá-la como uma “ciência humana clínica” (não por acaso, este é o nome da faculdade de psicologia em que me graduei e pós-graduei em Paris, criada na Sorbonne após maio de 1968).
Em suma, considerando que o foco da psicanálise são as políticas do desejo (e, portanto, de subjetivação), das quais resultam as formações do inconsciente no campo social, seu território é o da micropolítica e é nele que a psicanálise tem um poder efetivo de ação transformadora, podendo constituir-se num dispositivo essencial da insurreição nessa esfera. Da perspectiva dessa ciência, parece-me impossível pensar/agir na esfera micropolítica sem deslocar-se da tradição antropo-falo-ego-logocêntrica na própria produção do pensamento. É que tal tradição constitui um dispositivo essencial da micropolítica dominante, a ser dissolvido como os demais dispositivos que a sustentam. É isto o que tenho tentado fazer desde sempre em minha vida, com maior ou menor êxito.
>> Leonardo Nascimento é jornalista e mestrando em Antropologia (Museu Nacional/UFRJ)