Lançado em novembro de 2018, após ganhar o Prêmio Cepe de Literatura no ano anterior, Mulher sob a influência de um algoritmo (editado pela Companhia Editora de Pernambuco) é o segundo livro da poeta capricorniana Rita Isadora Pessoa (foto). O viés astrológico presente em seu primeiro livro, A vida nos vulcões (2016), não aparece com tanta intensidade em seu novo projeto. Neste recente trabalho, a mulher, como é sugerido pelo título, funciona como centro disparador a partir do qual os bots de linguagem denunciam e rasuram imposições sofridas cotidianamente. Como um modus operandi estético, a estrutura anafórica — à semelhança dos sites de busca — sustenta repetições a fim de, pelo significante, permitir que a luminosidade do significado escape devagar. Sobre essas e outras questões, Rita Isadora Pessoa falou ao Pernambuco.
Rita, o título de teu livro traz a discussão tecnológica pelo uso do vocábulo algoritmo – tão em voga devido a redes sociais, eleições presidenciais; até redação do ENEM cobrou como temática. O que seria ser contemplada por um algoritmo – como sugere a dedicatória?
A ideia de algoritmo, no livro, tem um sentido múltiplo. O algoritmo da linguagem de programação está presente como referência exibida pelo eixo narrativo do livro, anunciada já no primeiro poema, como uma espécie de submissão irônica, mas que, ao mesmo tempo, eu procuro driblar. Na sequência de poemas, há sempre um mote, um gatilho visível ou oculto que faz a transição de um poema para o outro, como numa espécie de “busca relacionada” no Google, semelhante à lógica algorítmica no próprio universo online e nas redes sociais.
Há também muito forte, por outro lado, a ideia de um algoritmo linguístico forjado, figurado e utilizado como uma subversão daquilo que se busca — não apenas no universo online, mas em um sentido existencial, afetivo, filosófico mais amplo. Um algoritmo figurado, metafórico e metonímico que transgride a manipulação massiva e que funciona como um oráculo de linguagem que revela não aquilo que você quer ver, mas aquilo que precisa ser visibilizado ou aquilo que precisa permanecer velado por motivos misteriosos.
Ao passo que, o algoritmo, da maneira como o entendemos no mundo virtual, é um desvio forçado, uma lógica imperativa de ter seus desejos, seu reflexo, suas referências e opiniões selecionadas a priori por um dispositivo artificial, robótico e abstrato que pode engolfar a produção de subjetividade.
Minha tentativa no livro era também de desviar-me dessa tendência generalista e criar para mim mesma, a partir da artificialidade, uma fala mais funda que fosse também inaugural dentro da minha sensação de totalidade das coisas. Em Mulher sob a influência de um algoritmo, a única maneira possível de ser contemplada por um algoritmo implica em incorporar sua estrutura como estratégia de sobrevivência, apropriar-se dessa estrutura de forma figurada e criar linhas de fuga – líricas ou não, violentas ou disruptivas – através dos dados e informações que nos são bombardeados diariamente.
Em 2012, foi lançado um livro que se tornou referência nas discussões feministas hoje abordadas por muitas das suas contemporâneas. Um útero é do tamanho de um punho, da Angélica Freitas, foi obra que desencadeou (libertou?) o fazer poético de outra grande autora atual, Adelaide Ivánova. Durante a leitura de seu livro, o ritmo, a dicção da linguagem – para além do viés temático – me lembrou alguns poemas de Um útero. Gostaria de saber se o aceno foi proposital, se este livro também te influenciou.
Sim, bastante proposital. Eu estabeleço uma série de diálogos nesse livro. Com escritoras que me formaram como leitora, com autoras contemporâneas com quem troco experiências e que admiro profundamente como Adelaide Ivánova e Carla Diacov. Com o cinema e sua linguagem cênica, e mesmo com alguns dos meus escritos anteriores. O título faz alusão a dois títulos cinematográficos que adoro e que fazem parte do meu imaginário estético e paisagem interior: Uma mulher sob influência (1974, John Cassavetes) e Mulher solteira procura (1992, Barbet Schroeder). A estrutura “uma mulher, uma mulher que” dialoga diretamente com as obras de duas autoras contemporâneas, a própria Angélica Freitas, como você bem observou, com seu livro incrível, um divisor de águas faraônico, Um útero é do tamanho de um punho, e a mineira Flávia Péret, com seu projeto de escrita expandida através de um algoritmo, Uma mulher.
A ideia de usar Google, algoritmos, bots e outras ferramentas tecnológicas para escrever é uma estratégia que me atrai muito, pois implica justamente na apropriação ativa de um saber, um modus operandi, um discurso tecnológico que nos atravessa passivamente (principalmente a nós, mulheres de Humanas) e que nos automatiza e, não raro, invisibiliza mesmo. Utilizá-los como uma ferramenta estética me parece uma forma muito atraente de transgressão criadora. Pensar a mulher sob a influência de algoritmos, bots, Google me parece não só necessário em vista do papel e do lugar que a tecnologia vem tomando em nossas vidas, mas também diante de um cenário político distópico que está sendo apresentado e que coloca, sobretudo a nós, mulheres, em posição de xeque.
Quais outras autoras e outros autores te influenciam, te mobilizam para a exposição da palavra escrita?
Depois de muitos e muitos anos lendo e relendo autoras e autores clássicos, mortíssimos há décadas, quiçá séculos, tenho provavelmente nos últimos cinco anos (quando comecei a sair do armário como escritora) lido mais autoras e autores contemporâneos, sobretudo autoras vivas.
Mas você me pegou nessa. Eu adoro listas. Vamos lá. Do meu time de mortas temos o meu enamoramento clichê, juvenil, mas irremediável, com a dupla de escorpianas suicidas Anne Sexton e Sylvia Plath, essa última uma autora que passei uns quatro ou cinco anos da minha vida acadêmica estudando. Além disso, tenho as minhas Emilys preferidas, Dickinson e Brontë. Adrienne Rich, Eudora Welty, Carson McCullers, Katherine Mansfield, Ana C., Clarice Lispector, Alejandra Pizarnik, Aglaya Veteranyi.
A linguagem de Mulher sob a influência de um algoritmo privilegia mais o referente do que o lírico – independentemente das alusões e metáforas do discurso poético. Esse afastamento do lírico tem intenção de aludir opostamente, por meio de certa objetividade vocabular da estrutura anafórico-afirmativa, ao lirismo que sempre foi imposto como “ideal” de escrita dita “feminina ”?
Acredito que haja, sim, uma dose lírica considerável no livro, talvez não na forma, mas dificilmente seria possível escapar — e eu nem desejaria isso. Imagina, não tenho nem roupa para me opor ao lirismo “canônico” feminino, eu mesma extremamente lírica, capaz de escrever incansavelmente sobre o mar da infância e o desvio causado por uma pedra sobre um rio.
A oposição ao ideal de “escrita feminina” se dá, talvez, de uma forma mais clandestina. O risco de que trato no livro não é o lirismo, ou mesmo o lugar lírico relegado à “escrita feminina” (não gosto desse termo, preferimos “literatura produzida por mulheres”), mas a radicalidade daquilo que silencia, invisibiliza, a mudez, a anomia, a agrafia, o risco do desaparecimento de si mesma. O livro trata de um processo de influência, inclusive no sentido da angústia de influência bloomiana, mas não estamos falando apenas da influência dos autores precursores, mas também da influência de um procedimento algorítmico na escrita. De fato, há um procedimento repetitivo que é dado por essa estrutura anafórica; o livro possui uma arquitetura que busca um paradoxo: atingir, através das repetições, o que é universal dentro do que é profundamente subjetivo e singular. Ao mesmo tempo, tocar o absolutamente íntimo e subjetivo a partir de estruturas universais, lugares-comuns, clichês; permitir, assim, uma zona de fuga para que uma mulher se torne eu-lírica na própria enunciação, em primeira pessoa, assumindo, ao final, a autoria do texto, por meio do uso desse algoritmo oracular textual. E assumindo também a própria oscilação diante da existência que lhe cabe, revelando que está, sempre, desde sempre, sob o risco, sob a influência da própria desaparição iminente.
No teu poema-epílogo “uma mulher que cultiva um gesto de desaparição”, lemos, em espécie de subtítulo, que se trata de uma mulher que escapa ao movimento político de sua geração. Esse escape se dá pelo não uso recorrente da primeira pessoa, do procedimento confessional como estratégia poética? De que maneira vês esse epílogo em relação ao seu livro como um todo?
Acho que toquei nesse ponto numa das perguntas anteriores. O poema final só se torna possível na lógica interna do livro a partir de sua própria estrutura anafórica repetida. É através do paradoxo que nomeia cada mulher, inúmeras vezes, por meio das repetições e dos elementos metonímicos de transição de uma mulher a outra, que busco tocar aquilo que há de universal justamente no subjetivo e singular e, também, no que há de singular e pessoal nos clichês ou na aparente universalidade de algumas construções e representações. Só aí é possível abrir essa rota de escape para que a mulher em primeira pessoa fale sobre sua própria indefinição, seu caráter oscilatório, sobre seu gesto autodestrutivo, sobre o empuxo trágico ao silêncio, ao desaparecimento que a caracteriza não apenas como mulher, mas como autora. O poema-epílogo esboça a pergunta sem resposta que todo escritor se faz: por que continuar escrevendo? Ele coloca em xeque não apenas a mulher, mas o próprio gesto de escrita, uma vez que revela que a mulher que fala em primeira pessoa é uma construção textual, um efeito de discurso. No momento em que ela se apropria de sua voz na primeira pessoa, sente-se engolfada por um ponto cego que a coloca sob o risco da agrafia, de querer desaparecer e silenciar.
>> Ramon Ramos é crítico literário e autor de A vulnerabilidade como procedimento