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Jamille Pinheiro Dias (Belém, 1983) é tradutora e pesquisadora das áreas de etnopoética e tradução na Universidade de São Paulo. Concluiu sua tese de doutorado Peles de papel: caminhos da tradução das artes verbais ameríndias em 2017, onde mobiliza componentes dos estudos literários, da linguística antropológica e da etnologia para propor uma análise dos cantos e narrativas ameríndias, identificando a poeticidade específica das artes verbais indígenas. Suas traduções publicadas no Brasil incluem Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades científicas, de Bruno Latour (Editora 34, 2016), Políticas do sexo, de Gayle Rubin (Ubu, 2017) e Arte e agência, de Alfred Gell (Ubu, 2018).

No decorrer da correspondência que formou a seguinte entrevista, assistimos novamente a um crime ambiental numa escala desoladora, na esteira do rompimento da barragem de rejeitos em Brumadinho, com consequências irreversíveis para as vidas humanas e não-humanas dali. É esse tipo de consequência do capitalismo (ou “Capitaloceno”) que as pensadoras e pensadores que Jamille traduz ajudam a dimensionar, apontando para novas formas de pensarmos as interações (sejam elas entre espécies ou práticas de conhecimento) que modelam a experiência contemporânea.


A sua trajetória como tradutora atravessou caminhos confluentes, mostrando certa afinidade conceitual entre as autoras e autores que você traduziu, especificamente no campo da antropologia. Na sua opinião, haveria uma forma atual de antropologia dominante? O que você considera essencial para o pensamento antropológico no que diz respeito à compreensão do contemporâneo?

Um dos atributos fascinantes da antropologia é a multiplicidade de abordagens sobre o que significa ser humano. Ela tem oferecido reflexões sobre marcadores sociais e a articulação entre categorias como raça, sexualidade, gênero e classe; etnologia indígena e questões de parentesco, ritual, território, xamanismo, dentre outras; discussões profundas sobre instituições religiosas, práticas científicas, saúde, cidades, música, ativismo, expressão estética, consumo e assim por diante. Não penso, assim, que exista uma única forma dominante. Penso, por outro lado, em desafios sociais e ambientais prementes, centrais para a compreensão da contemporaneidade, que os vários pensamentos antropológicos nos ajudam a enfrentar.

Vale ressaltar, nesse sentido, dois conjuntos de problemas característicos do nosso período histórico, transversais às vertentes que mencionei, e que a antropologia pode contribuir para elucidar: o primeiro remete ao chamado Antropoceno ou Capitaloceno e diz respeito ao impacto da degradação ambiental e das alterações climáticas causadas pela ação antrópica sobre a Terra, com consequências decisivas para as ecologias multiespécies que envolvem seres humanos e não humanos no planeta; o segundo, a desqualificação dos direitos humanos pelo recrudescimento de agendas moralistas, fundamentalistas, nacionalistas, xenofóbicas, racistas e LGBTfóbicas entre setores mais conservadores.

Como há uma sobreposição entre esse quadro de intolerância, ao qual o ensaísta indiano Pankaj Mishra se referiu como “a era do ódio”, e a chamada “era da pós-verdade”, que tem tido como um de seus principais produtos a disseminação de notícias falsas, estamos atravessando um momento de acentuado e perigoso esvaziamento de conceitos. A antropologia pode ser nossa aliada no cuidado cotidiano de conceitos que balizam a vida coletiva e a responsabilidade ética em relação ao outro, tais como democracia e humanismo, bem como contra a banalidade do mal. Levando isso em conta, o essencial para o pensamento antropológico é defender as condições para que o outro exista outramente.

Da possibilidade de "defender as condições para que o outro exista outramente", me vem à tona como neste horizonte próximo que temos será um desafio cada vez maior fazer com que subjetividades não hegemônicas continuem vivas, nisso incluo a subjetividade latino-americana, ameríndia e, consequentemente, as línguas que existem em nosso território. É nesse ponto que a tradução parece ser um caminho imprescindível, sendo uma forma de fazer com que algo exista em outra língua. Tendo essa possibilidade de levar novas subjetividades a outras línguas, o que você tem pensado em traduzir? Penso aqui nos seus trabalhos para o inglês, como o livro do Lula e da Marielle Franco.

Penso em traduzir pensadoras e pensadores comprometidos com a irredutibilidade do outro ao mesmo. Penso em traduzir autoras e autores do Brasil que, se não pela via da tradução, permaneceriam invisíveis para o leitorado anglófono. Penso em traduzir ideias que se contraponham aos discursos de apologia ao autoritarismo e à cultura fascista de intolerância que estão em alta. Como tradutora, atuo principalmente no âmbito das ciências sociais, com atenção especial para a etnologia indígena e os estudos de gênero e sexualidade. Contribuir para a circulação de subjetividades indígenas, feministas, antirracistas e anti-homofóbicas entre línguas é o que entendo como central no meu trabalho. Se as profundas desigualdades sociais e econômicas que marcam a realidade brasileira têm alcance estrutural, é preciso que a luta insista em ter alcance também estrutural. É nessa luta de alcance potencialmente estrutural que procuro inserir meus esforços de tradução.

Consideremos, por exemplo, o caso do feminismo antirracista, uma luta que se fortalece com a formação de redes transnacionais de solidariedade contra a opressão de gênero e raça. A tradução é um campo de militância decisivo para as trocas que ocorrem dentro dessas redes. No ensaio da Marielle que as colegas Katrina Dodson, Deise Nunes e eu traduzimos para o inglês, After the Take-Over: Mobilizing the Political Creativity of Brazil’s Favelas, publicado pela revista New Left Review, a autora enfatiza a capacidade de ativismo e emancipação das mulheres faveladas, sobretudo as negras, sem colocá-las na posição de vítimas. Na tradução, procuramos ressaltar o fato de que a o termo “favelada” é “reativado” como um significante de protagonismo e autoestima pela Marielle.

Há algo que conecta Marielle e outras autoras feministas que tive oportunidade de traduzir, como Gayle Rubin, Marilyn Strathern, Patricia Hill Collins, Judith Butler, Starhawk: elas contribuem para “reativar”, pela via das palavras, a nossa relação com vidas historicamente vulnerabilizadas, dentre as quais as de faveladas, bruxas, trabalhadoras domésticas, pessoas LGBT, e assim por diante. O sentido de “reativação” ao qual me refiro aqui, sobre o qual tenho há alguns anos uma interlocução com Renato Sztutman, é discutido pela Isabelle Stengers em Reativar o animismo. “Reativar” diz respeito a estabelecer vínculos renovados, de modo experimental e pragmático, com práticas que sofreram desqualificação com a modernidade e o capitalismo. Nesse contexto, traduzir é “reativar” as palavras – e “reativar” as palavras é especialmente decisivo como ato de resistência política, como ressalta Sztutman em Reativar a feitiçaria e outras receitas de resistência.

A era da pós-verdade, como processo de esvaziamento de conceitos, é um enfeitiçamento em grande escala – uma forma de captura da capacidade de atribuição de sentido que produz impotência e tende a paralisar as pessoas. Se o momento histórico que atravessamos tem sido tão marcado pela disseminação de discursos de ódio e essa conjuntura de relativização de sentidos – o avesso do cuidado cotidiano de conceitos –, entendo que a tradução se apresenta como uma prática que contribui para devolver dignidade às palavras. Assim, ao me dedicar aos deslocamentos de subjetividades não hegemônicas entre línguas, tenho em mente o compromisso de “desenfeitiçar” sentidos desgastados, entorpecidos, esvaziados.

Apesar da literatura não possuir conceitos unânimes, como você percebe os modos de fazer antropologia e de fazer literatura, levando em conta o que você já disse sobre o cuidado cotidiano dos conceitos?

Penso no cuidado cotidiano de conceitos que atravessa a antropologia e a literatura como uma prática de investigação do que nos é ontologicamente alheio. Quando Barbara Cassin fala na tradução como estado permanente de desconfiança do uno, entendo que a desconfiança à qual ela se refere se alia ao cuidado de não reduzir o outro ao mesmo, levando a sério a diferença entre pontos de vista heterogêneos. A desconfiança do uno é um cuidado cotidiano pertinente à tradução, mas também na antropologia e na literatura tratamos de “sonhar com um outro ‘nós-mesmos’”, como nos fala Eduardo Viveiros de Castro a partir do conto O recado do morro, de Guimarães Rosa. “Sonhar com um outro ‘nós-mesmos’”, passa por escutar mensagens inquietantes, às vezes aparentemente delirantes, às quais habitualmente permanecemos surdos.

A recorrência de imagens auditivas aqui não é fortuita. A ideia de “escrita de ouvido”, de Marília Librandi, ressalta a importância da abertura auditiva da literatura no Brasil para rumores, sussurros, murmúrios e outros sons não reconhecidos pelo letramento oficial. Juan José Saer, ao conceber o fazer literário como "antropologia especulativa" – isto é, como teoria dos modos possíveis de ser humano –, também quer abarcar a dimensão de “espelho” implícita em “especular”. Mas o espelho da ficção reflete enigmas, não absolutos. E não é um espelho que impõe a dominância da visão em detrimento de outros canais de sentido, mas um espelho que reverbera desconfiança.

Assim, o ponto da teorização do ser humano pelo fazer literário é que ele é um espelho que deforma, e não que conforma. O cuidado cotidiano de conceitos é uma prática de investigação que nos lembra que há sempre mais. Lembrar que há sempre mais – especular, desconfiar, não reduzir o outro ao mesmo – remete à fórmula “ce n'est pas tout”, que, como já observou Viveiros de Castro, é tão frequente em Lévi-Strauss. Esse inacabamento produtivo – o “isso não é tudo” que nos é constitutivo – conecta-se intimamente ao modo como Cassin conceitua os intraduzíveis. Para ela, os intraduzíveis não são aquilo que nós não traduzimos, mas aquilo que nós não paramos de não traduzir. Desconfiar do uno, assim, é desconfiar de traduções cabais: o cuidado cotidiano de conceitos que acolhe o enigma.

A sua última tradução publicada no Brasil foi Arte e Agência, de Alfred Gell. Para um leitor não-familiarizado com a história da antropologia, como você situaria o livro e seu autor?

Em linhas gerais, Arte e Agência é um livro especial porque oferece uma teoria propriamente antropológica da arte, iluminando análises tão diversas quanto as de O Grande Vidro, de Marcel Duchamp; do ataque à Vênus ao Espelho, de Diego Vélazquez, pela sufragista Mary Richardson; e de um fetiche de pregos da África Ocidental. Assim, ele vai bem além de um interesse restrito em arte "primitiva". Ao mostrar que os objetos de arte têm um papel prático de mediação nos processos sociais, ele critica as abordagens iconográficas da arte e propõe uma nova compreensão da relação entre "pessoas" e "coisas". Arte e Agência é um livro rico em exemplos, analiticamente rigoroso e com uma série de momentos bem humorados, que passa por artefatos europeus, indianos, africanos, polinésios, melanésios e australianos. Gell aborda cada um desses objetos como índices, isto é, entidades materiais que suscitam a atribuição de agência, e por meio dos quais é possível apreender uma "mente distribuída" como uma disposição externa que transcende a esfera individual.


Penso na tradução também como uma espécie de ferramenta receptora: mas nenhuma língua acolhe ideias da mesma forma. Daí que dimensões políticas você vê surgindo do processo tradutológico?

Essa é uma ótima pergunta, com vários desdobramentos possíveis. Quando a tradução se dá em espaços particularmente tensionados, fica ainda mais explícito que as línguas são fruto de um longo processo histórico de construção de relações de subalternidade e privilégio. É importante lembrar, à luz das pesquisas de Mona Baker, que quem se dedica ao ofício da tradução tem um papel decisório sobre quais representações culturais são importadas e exportadas. Nesse processo, há escolhas, muitas vezes sutis, sobre quais discursos e narrativas se tornam mais visíveis ou invisíveis diante de públicos com as perspectivas mais variadas. Baker tem ressaltado como a tradução faz parte da instituição da guerra e do manejo de conflitos. Assim, é um ofício intimamente ligado a dinâmicas de poder, e está longe de ser politicamente neutro.

Isso me faz pensar em algo que a bell hooks, a partir de um poema da Adrienne Rich, fala sobre o papel da linguagem nas relações de poder. Nesse poema, chamado Queimar papéis em vez de crianças, Rich se refere ao paradoxo de falar a língua de um opressor, mas necessitar dela, ao mesmo tempo, para se comunicar com alguém. No livro Ensinando a transgredir, hooks revisita os versos de Rich e aponta, por outro lado, que a contralíngua que os africanos escravizados nos Estados Unidos inventaram dentro do inglês padrão faz parte de um conjunto de práticas de resistência; assim, ela argumenta que não é a língua inglesa em si que fere e humilha alguém; o que fere e humilha alguém é o que aqueles que oprimem fazem com a língua inglesa.

Esse debate nos ajuda a pensar as dimensões políticas da tradução: se o que se faz com uma língua, por um lado, pode contribuir para naturalizar e normalizar diferentes formas de opressão, também existe nela a possibilidade de interromper discursos que desqualificam e estigmatizam os grupos historicamente mais vulneráveis a uma série de presunções negativas. Determinados arranjos sintático-semânticos em uma tradução, por exemplo, podem contribuir, seja inadvertidamente ou não, para reproduzir formas de opressão ligadas a gênero, raça, sexualidade, classe e assim por diante. Por isso, é crucial que o fazer tradutório implique uma tomada de consciência linguística e política.

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