Em Natureza das coisas (Ubu), dez das mais significativas séries visuais de Pedro Motta (Belo Horizonte, 1977) são analisadas por críticos/as brasileiros/as e internacionais. A relação do humano com a natureza é tema central em sua pesquisa: sobre fotografias que revelam alterações na paisagem, o artista realiza suas próprias intervenções. Organizado por Rodrigo Moura, o livro conta com textos de Ricardo Sardenberg, Eduardo de Jesus, Agnaldo Farias, Ana Luisa Lima, Luisa Duarte, Nuno Ramos, Kátia Hallak Lombardi, Cauê Alves, José Roca, além de texto do próprio organizador. Diante dos crimes ambientais ocorridos em Mariana (2015) e Brumadinho (2019) – além dos alarmantes índices de desmatamento em nosso país –, a obra de Pedro Motta ganha aflitiva contemporaneidade e nos convoca a uma radical tarefa de politização da natureza.
As imagens citadas na entrevista podem ser conferidas no site do artista: www.pedromotta.net ou clicando nos nomes em destaque.
Como funciona a relação entre o seu trabalho e as análises críticas presentes em Natureza das coisas?
A proposta de formato do livro surgiu do Rodrigo Moura, um cara que além de bom gosto ímpar tem ideias editoriais bastante precisas, com um conhecimento muito grande na área. O último livro que fizemos juntos chamava Temprano (2010), infelizmente realizado por um edital da Funarte que não permitia venda. Meu interesse não é na comercialização, e sim entrar numa editora e ser distribuído. O mais importante do livro é ele chegar nas pessoas, é a possibilidade de ele transitar por vários territórios, entre pessoas com diferentes pontos de vista; pessoas leigas, pessoas da área, pessoas que se interessam por fotografia ou por artes plásticas etc. Eu já vinha com um longo trabalho voltado para o ambiente, numa pesquisa muito extensa sobre a paisagem natural. Então eu chamei o Rodrigo com a vontade de produzir um livro novo, e ele veio com uma proposta que, de cara, me pegou: a de sair de uma leitura cronológica, apostando antes em séries que dialogam com o que eu tenho produzido hoje, focando nos elementos transformadores do meu trabalho. A ideia foi selecionar dez séries – na verdade onze, porque uma não tem análise crítica – e chamar dez pessoas que já tinham relação com o meu trabalho, oferecendo uma determinada série. Eu fiz uma seleção (e o Rodrigo participou, obviamente) um tanto intuitiva para escolher cada qual com seu cada qual. E isso gerou um trabalho novo, completamente novo! As diferenças de perspectivas e de formatos de abordagem trouxeram uma riqueza que eu considero a grande qualidade desse projeto, que não é um livro de fotografias, mas um livro que tem fotografias, e também não é um livro biográfico, mas é um livro de arte. Eu acredito que a parte mais importante do trabalho nas artes plásticas é justamente esse encontro com outros olhares, abrindo um mundo de possibilidades. E é claro que existem as críticas não muito favoráveis também, mas cabe ao artista a humildade de permitir que o outro faça a leitura que ele quiser. No caso do livro, tenho certeza que se trocasse as séries entre os autores, as perspectivas seriam completamente diferentes.
Na série Paisagem suspensa, vemos balões coloridos de gás hélio suspendendo blocos geométricos que simulam toneladas de minério sendo extraídas de covas. Parte da série foi realizada numa região montanhosa de Belo Horizonte, área com tradição centenária de mineração. No ano passado, José Miguel Wisnik lançou Maquinação do mundo: Drummond e a mineração, ensaio em que mostra como o aspecto catastrófico da mineração foi determinante em boa parte da obra do poeta, através de um choque entre sua mitologia pessoal mais íntima e a geoeconomia mundial. O livro de Wisnik acabou por me oferecer possibilidades para pensar também sobre o seu trabalho. Sendo assim, gostaria de saber de que forma o tema da mineração encontra espaço tão relevante em suas composições.
Não sei reconhecer os limites precisos dessa influência, mas, se eu morasse na beira-mar, certamente a minha obra teria outra aproximação. O que posso dizer é que eu sou muito interessado pelas formas. No caso do Drummond, por exemplo, em que o Pico do Cauê (montanha que caracterizava a paisagem de Itabira) foi destruído pela mineração, deixando em seu lugar um buraco, eu fico pensando na imagem dessa montanha em negativo. Uma montanha, que teria algo próximo ao formato piramidal, tem agora o formato oposto. Imagina as implicações disso em termos de tempo, espaço e matéria!? É uma coisa brutal, um terror! É um embate de forças monumental! Então, essa é uma paisagem recorrente para mim, que sou de Minas Gerais. No caso da série que você menciona, o trabalho foi feito para uma residência artística no Jardim Canadá, uma região bastante explorada pela mineração. A proposta da residência foi fazer um trabalho sobre o entorno. E eu senti que a mineração me dava uma aproximação muito grande com a pesquisa escultórica que me interessava. Foi assim que eu criei essa ambiguidade dos balões pequenos e sutis levantando esses torrões de terra, levando não se sabe bem para onde. O motivo seria o escoamento, a subtração da matéria. Ou a subtração da memória do lugar, que é o que essas mineradoras praticam, já que ali nada é mais ancestral do que o próprio solo. Depois, eu fiz uma outra parte da série em Nova York, uma cidade que vive no concreto, em um outro tipo de matéria. Eu não sou um grande conhecedor da cidade, mas nos dois meses em que eu estive por lá numa residência artística, eu vi uma grande quantidade de terrenos baldios sendo invadidos pelas construtoras, gerando uma mudança tão drástica que as pessoas se viam obrigadas a migrar para outras regiões mais baratas. Nos dois casos, tentei partir de um ponto de vista local, de uma noção do que estava acontecendo ao meu redor, em que o meio me levava ao trabalho.
Em Tristes trópicos, o antropólogo Claude Lévi-Strauss relata ter tido três amantes na juventude: a geologia, o marxismo e a psicanálise. O interesse pela geologia pode ser visto como um primeiro passo em direção ao método estruturalista do autor, já que, em um estudo mais detalhado de uma paisagem, poderíamos perceber que suas partes visíveis emergem de diferentes camadas do solo, datadas e estruturadas de forma heterogênea e seguindo uma ordenação oculta inteligível. Nos últimos anos, partindo da sugestão de que o planeta entrou em uma nova era geológica oriunda da capacidade humana de alterar tais ordenações da natureza – e as condições de existência de vida na Terra –, algumas áreas da antropologia têm se dedicado a contribuir de forma bastante significativa para o projeto de construção de uma nova filosofia da natureza. Esse giro de perspectivas abre espaço para a tarefa de radical politização da natureza, algo que me parece presente de forma bastante sofisticada na sua obra. Como se dá a construção da sua pesquisa em meio a esses debates?
As pessoas fazem essa associação bastante direta do meu trabalho com o debate ecológico. O que eu faço, então, é tentar enriquecer isso no campo das artes plásticas, a partir de um pensamento sobre o embate entre forças e formas. Minha pesquisa é, sobretudo, a do humano em relação com a paisagem; uma questão muito antiga, com inúmeros desdobramentos na pintura. Mas grande parte da minha obra trata justamente de ruínas. O Cauê Alves, um dos autores do livro, escreve sobre isso de forma bastante interessante num texto curatorial. Ele aponta que distante das vistas idílicas das belezas naturais louvadas nas canções que marcaram a identidade nacional, eu construo obras com barrancos desmoronando e erosões que revelam a falência da nossa noção de progresso. Nas minhas fotografias, as montanhas das paisagens de Minas Gerais aparecem transformadas pelos processos de terraplanagem para a abertura de estradas, ou pela atividade da mineração que tem destruído rios, paisagens e devastado cidades inteiras com impactos ambientais irreversíveis. Então, refletindo sobre a sua pergunta, fica bastante claro para mim que eu sempre me interessei por pensar nessas estruturas, embora não costume ter isso em mente enquanto crio meus trabalhos.
No texto de Ricardo Sardenberg, ele aponta que o seu trabalho segue a tradição dos exploradores e viajantes, registrando cenários que parecem resgatados por um arqueólogo imaginário. O paradoxo, segundo ele, é que não há uma memória a ser reconstruída a partir das ruínas do passado, já que as construções presentes na sua obra foram feitas por nós no presente e funcionam como “totem ao qual nós, brasileiros, dedicamos imensa devoção”. E, como totens da tribo Brasil, “estão envolvidos por tabus claros e severos: nunca são discutidos, mencionados, questionados; e, acima de tudo, não devem ser destruídos. Por serem um tabu de nossa tribo, são, em suma, intocáveis”. Partindo da análise de Sardenberg, seu trabalho pode ser encarado como uma forma de questionamento dos tabus e profanação de nossos totens?
Na série que ele analisa, Arquipélago, eu trabalho com construções sobre blocos de terra, construções que não servem para absolutamente nada, não têm função alguma, mas ainda assim constituem memória de um tempo gasto, de um esforço empregado. Na perspectiva da arqueologia, o passado está por baixo, submerso, e o presente está ao nosso alcance. Nesse caso eu trabalho com uma certa inversão dessa ideia, o que constitui um paradoxo absurdo. Essas construções exibidas nas fotografias são como monumentos falidos, que a qualquer momento vão acabar por ruir. Nesse sentido, eu acho que a metáfora acaba sendo bastante contundente para pensarmos o nosso país, sobretudo nesse momento.
No livro, Luisa Duarte analisa Naufrágio calado, série em que testemunhamos diferentes tipos de embarcações encalhadas em paisagens tomadas por erosões de grandes dimensões. Através da manipulação digital, vemos aproximados uma região de Minas Gerais e um cemitério de navios em Bretanha, na França. Para a autora, a série é um dos momentos mais potentes de um programa poético todo atravessado pela incerteza, mas que ainda assim escolhe instaurar situações nas quais a pausa e a ausência de movimento são as protagonistas, em oposição ao ruído e à aceleração do mundo contemporâneo. Como você entende as possibilidades de intervenção crítica da arte em um mundo de horizontes interrompidos?
Entendo que cada artista tem uma elaboração muito específica; alguns mais intuitivos, como no meu caso, outros mais analíticos. Antes, meu trabalho era mais urbano. Hoje, a natureza ocupa lugar central. Entretanto, mesmo nos trabalhos sobre o meio urbano, a questão da dúvida sempre me interessou. Por isso, realizo manipulações digitais, para jogar com uma fronteira crucial que é a da dúvida do espectador, que muitas vezes se sente angustiado tendo que decidir se está diante de uma ficção ou da ‘realidade’. A partir do momento em que você entende que a fotografia não é parte da realidade, não serve de documento para nada – que é o que eu defendo –, dela você pode tecer histórias e narrativas espetaculares e aproximar o documento fotográfico da ficção, desnaturalizando até mesmo a fotografia de paisagem. Eu fiz Naufrágio calado em 2016, época do golpe sofrido pela Dilma. Eu fiz esse trabalho como a elaboração de um enorme pessimismo. Para mim, esses barcos eram como nós, soterrados, sem qualquer possibilidade de negociação com uma paisagem destruidora... na época, acho que não fiz uma associação assim tão direta, mas eu sentia uma ligação entre os dois elementos: uma paisagem destruída pela mineração de cassiterita e um cemitério de barcos que eu já tinha visitado na Bretanha. Ali, os barcos estavam destituídos de vitalidade, de função, estavam em plena decadência. Então eu fiz essa junção que para mim era como um retrato da impossibilidade de movimento. Para te ser sincero, às vezes olho essas imagens expostas e elas me parecem um grande mausoléu. Mas a Luisa Duarte fala de uma possibilidade de resistência presente no meu trabalho, através da instauração de um tempo de pausa e silêncio que pode nos fazer enxergar o naufrágio em que nos encontramos. Ela acredita que esse tempo pode ser necessário para que possamos novamente ver o mar e o horizonte. Assim como cada artista tem uma elaboração muito própria, cada espectador acaba por criar um contato muito pessoal com as obras de arte.