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Raffaella Fernandez, autora do recém-lançado A poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus (Aetia Editorial, 353 páginas), estilhaça os mais conhecidos percursos de leitura e análise dos textos da autora de Quarto de Despejo, em uma tentativa de ajudar a desatar Carolina do selo de “escritora da favela”. O trabalho de Raffaella, resultado ampliado de sua tese de doutorado em Teoria e História da Literatura pela Universidade de Campinas (Unicamp), vasculhou as mais de cinco mil páginas manuscritas – de textos inéditos – disponíveis até agora da autora, focalizando o seu processo de criação, sem perder de vista os aspectos biográficos que acabaram por estigmatizá-la. A pesquisadora defende a poética de resíduos por detrás do signo da pobreza, já exaustivamente tratado pela crítica. Em entrevista ao Pernambuco, Raffaella fala do projeto literário de Carolina, do qual a autora tinha plena consciência, aponta problemas no acesso a sua obra completa e faz um apelo para que os leitores se engajem na luta pela publicação dos textos ainda inéditos da escritora.

A fotografia de Carolina Maria de Jesus, que ilustra a capa do seu livro, dá pista para um outro caminho de leitura em que não figura a autora de lenço na cabeça que estamos acostumados a ver. Que imagem de Carolina você gostaria de passar aos leitores?

Quando vi pela primeira vez a fotografia que consta na capa e que faz parte do acervo de Zélia Gattai, feita por ela após uma entrevista com Carolina, fiquei atenta porque ali apresentava-se outra imagem de Carolina. É uma imagem muito distante daquelas que, aos poucos fui percebendo, foram montadas por apelo editorial, as de uma Carolina estigmatizada, colocada sempre no lugar da pobreza, do sofrimento, cabisbaixa com um lenço na cabeça. Carolina, ao contrário disso, nos seus manuscritos e na própria produção literária que não é conhecida, que não veio a público ainda infelizmente, revela uma outra mulher, com um desejo constante de se refazer e de criar, como a fantasia de carnaval que ela recriava e vestia todos os anos. Ela estava envolta o tempo todo no universo da imaginação e do pensamento, no desejo de escrever, de criar, de inventar músicas, peças teatrais, de cantar, muito além de mero relato de denúncia do que seria o seu sofrimento, que também faz parte do que é ser Carolina, mas não a limita a isso. Essa fotografia da Zélia me remeteu de imediato a Carolina que se apresentou para mim nos seus originais, nas mais de 5 mil páginas manuscritas, um processo vasto e repleto de imaginação e de colheitas diversas.

A questão central do seu trabalho parece ser a análise da elaboração estética da obra de Carolina, diminuindo o foco no que antes parecia essencial, o aspecto testemunhal de seus textos. É possível ler Carolina abrindo mão da experiência social e histórica da autora ou como é possível conciliar essas duas dimensões?

Eu diria que é uma análise crítica que procura se aproximar ao máximo do processo criativo da escritora. Não à toa, recorri à crítica genética e, especificamente, uma crítica genética de linhagem francesa, preocupada com manuscritos autobiográficos, ou com o social, desenvolvida no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) com a professora Telê Ancona Lopez e os trabalhos sobre o espólio de Mário de Andrade. Eu diria que a preocupação ter uma dimensão de Carolina a partir de seus próprios manuscritos seria uma questão central do meu trabalho, que não separa a experiência social e histórica de Carolina e do seu contexto de escritura. É uma escrita perpassada por biografismos o tempo todo, reivindicando uma identidade narrativa. Mesmo quando Carolina, no seu processo de criação, expande para o que está fora da realidade social em que estava imersa, ela retorna a esse local a partir de algumas pistas. A questão social está dentro do seu processo criativo, mas não como uma colagem, uma mera representação da sua própria biografia. Carolina trabalha com esses elementos na sua poética de resíduos, de catação de experiências, de formas de escrita, artísticas, as rádios novelas, escutadas nos bondes, memórias de modo a reapresentar o real através da literatura, da invenção de uma história para si e apara os seus. História essa sempre soterrada pelo racismo opressor que tenta o tempo todo invisibilizar as formas de existência dos negros.

Como o biografismo aparece de modo mais evidente na obra de Carolina?

O traço autobiográfico perpassa todo o seu processo de criação, seja nos seus romances já conhecidos – nos quais percebe-se muito a presença da mulher, e esta mulher é colocada de maneira irônica –, seja nos seus manuscritos inéditos. Podemos vê-las nos romances ainda inéditos que trazem seus nomes estampados no título (Rita, Maria Luisa, Diário de Marta ou A mulher diabólica, Glória, Dona Inês) ou mesmo nas peças que também fazem um apelo à mulher (A senhora perdeu o direito), além de outros romances como Doutor Silvio ou Doutor Fausto, que também trazem a figura do feminino de modo marcante. Em geral, essas mulheres se dão mal por não se deixarem oprimir pelos homens, enquanto as mulheres submissas acabam sendo subjugadas e felizes como nas radionovelas, formato deglutido por uma Carolina inspirada ou revoltada com os melodramas que escutava na época. Ela trabalhava muito com o formato do romantismo heterodoxo de Camilo Castelo Branco e com o melodrama, porém tudo muito associado a um realismo febril e dilacerante. As mesclas em seus textos são tão absurdas quanto a realidade. Ela foi realmente genial! Acho muito interessante observar as figuras das mulheres na obra de Carolina ainda pouco exploradas. A questão da mulher que está em trânsito, que se movimenta do interior de uma cidade como ela, que vem de Sacramento (MG) e vai parar na favela, a exemplo do romance A felizarda, que foi publicado numa jogada editorial como Pedaços da fome (1963), dialoga com essa proposta da autora. Aliás, Carolina registra em nota que detestou as alterações impostas na versão publicada desse romance.

Manuel Bandeira e Marisa Lajolo defenderam a autenticidade da obra de Carolina a partir do que chamaram de “impropriedades de expressão”. Até que ponto a pouca instrução formal, usada contra a autora, é também um marcador da poética de Carolina?

O mais importante é observar como essa escrita se apropria de diversos mecanismos de linguagem e cria uma literatura muito específica e particular, uma poética dos resíduos, que recicla discursos literários e não literários, linguagem erudita e a oralidade transposta no papel, apresentando-se como poética múltipla e aberta. É interessante, também, observar como as “impropriedades de expressão” são utilizadas contra a sua escrita e outras vezes em sua defesa. O segundo caso ocorre quando, por exemplo, voltam a colocá-la no lugar do estigma de uma favelada “semi-analfabeta” que escreveu e precisa ser escutada e resgatada. Costumo dizer, nas minhas falas públicas, que foi Carolina quem me resgatou, me fazendo aprender com ela a importância de uma linguagem oculta da língua portuguesa, os problemas do racismo, as demandas específicas das mulheres negras – até porque, em um primeiro momento, o que me colou a ela foram as denúncias das desigualdades sociais. Então, quando leio Carolina, vejo muito além do relato da pobreza. Vejo potências de saberes e criações, sobretudo na figura do seu avô, para quem ela escreveu um texto de homenagem chamado O Sócrates africano. Ali, Carolina traz essa figura do rezador, do benzedor que era um sábio, que lhe trazia provérbios, histórias dos negros brasileiros e africanos. É uma outra história dos negros brasileiros, história que está à margem do ensino formal e erudito. Esse é um marcador social e cultural de Carolina associado à linguagem da qual a autora tinha consciência de que precisava se apropriar e replicar, mas sem perder de vista que somente a linguagem formal poderia levá-la ao reconhecimento. Esse incomodo é o que mais me instiga, porque provoca, confunde e nos faz repensar lugares de poder, certo ou errado e, principalmente, coloca mais lenha nas perguntas: o que é literatura? Do que é feito um intelectual?

O processo de catação dos recursos linguísticos por Carolina a afasta dos modernistas dos anos de 1950 ao mesmo tempo que mostra seu gosto pelos parnasianos e românticos, em especial. Por outro lado, a escritura híbrida, expandida, aparece em vários momentos de sua vasta obra. Pode-se classificar Carolina de Jesus como uma escritora contemporânea?

Se a gente pensar na perspectiva do Giorgio Agamben sobre o contemporâneo, diria que ela é contemporânea, sim, porque traz diversos elementos do passado e, a partir deles, vai criando. Ao mesmo tempo, vai moldando sua identidade feita de muitas outras. Por exemplo, sua experiência de falas no interior de Minas Gerais, quando, ao invés de educado ela redige “iducado”, trazendo para dentro dos livros a linguagem popular extremamente explorada pelos modernistas, sobretudo pelo Mário de Andrade, nas suas análises feitas no Amazonas como "turista aprendiz". Carolina brinca, experimenta, reescreve, vai se valendo da escuta. A oralidade é fundamental no seu processo de criação, bem como os livros que ela teve acesso seja em bibliotecas particulares de seus patrões (como a do primeiro médico que fez um transplante no Brasil, o Dr. Zerbini). Sem falar nas revistas, jornais e livros que ela ia encontrando em seu processo de catadora. E que livros eram esses? Eram romances e textos de parnasianos ou românticos, que eram descartados nas lixeiras. Esses livros estavam descartados em massa porque, no século XX, a imprensa e as máquinas editoriais começaram a se desenvolver, então todas essas obras foram republicadas com a linguagem atualizada. Carolina encontrava no lixo textos que traziam a linguagem do século XIX, daí seu vocabulário passadista entendido como ignorância por leigos. Seu texto Onde estaes felicidade? faz uma remissão direta à obra de Camilo Castelo Branco, Onde está a felicidade, de 1856. Carolina vai se apropriando de toda sorte de suporte material tanto para criar sua literatura mobilizada num processo autodidático. Sendo restituída desde berço dos direitos fundamentais à existência, ela resistiu às estatísticas e lutou até o fim por seu direito à literatura movida por sua veia quixotesca e desejo-estado de escrita. Tenho a impressão de que ela não poderia existir de outra maneira.

A genealogia dos textos, a reescrita e, às vezes, a repetição dos textos como os Prólogos [textos escritos pela autora para abertura de seus livros], mostra a preocupação de Carolina com a crítica. A autora tinha noção do que hoje entendemos como projeto literário?

Sem dúvida alguma, tanto que ela guardou e registrou diversos reportagens de jornais e em revistas sobre sua própria obra. Carolina colava essas reportagens em folhas de papel soft e comentava as reportagens nas marginalias ou em folhas que podem ser analisadas nos arquivos. Isso revela uma consciência ou ao menos um desejo de que ia ficar para a posteridade e precisava sublinhar sua opinião. O escritor João Antônio e tantos outros também se valam desse método. Aliás, quando a gente consulta o acervo do João Antônio, no CEDAP alocado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Assis (SP), encontramos inclusive o volume de Quarto de despejo, que ele leu e anotou nas marginalias. É interessante perceber como Carolina tinha esse projeto também, daí as diversas reescrituras, revisões, rasuras, cotejos, que ela também vai empreender ao longo da sua produção literária, sinalizando as formas e conteúdos que gostaria de estabelecer para seus livros, o que infelizmente não foi reconhecido em vida e a fez recluir-se de vez num sítio até sua morte. A tentativa, também, de deixar para a posteridade não apenas seu legado literário, mas a crítica que ela fez de como manipularam seu legado. Pedaços da fome foi publicado com esse título, porém foi nomeado por ela de A felizarda. Ela não gostou da alteração do título, porque achava importante que o nome da personagem estivesse na capa do livro. Também não gostou da maneira como foi vinculado o final do romance, que não tem nada a ver com o que ela produziu. Ela estava preocupada com as temáticas envoltas nas trajetórias das mulheres. Ela observou e registrou que seu processo criativo e sua imagem não foram respeitadas, ao mesmo tempo que estava de mãos atadas diante de um mercado editorial perverso.

Fazendo um caminho às avessas de Lima Barreto, autor que foi mal reconhecido em vida e passou a ser muito estudado depois, como explicar o apagamento de Carolina após o sucesso editorial vivido no Brasil e no exterior? E como explicar também o ressurgimento do interesse nos últimos anos sobretudo pela crítica especializada?

O apagamento de Carolina está totalmente atrelado a forma como ela foi reconhecida em vida. Eu não seria tão categórica em dizer que entre Lima Barreto e Carolina existe um abismo no sentido do reconhecimento, porque a maneira como foi reconhecida também é problematizada, inclusive, por ela mesma. Quer dizer, ela foi reconhecida como uma escritora de relatos da pobreza, nuance acompanhada de todo um fantasma estigmatizador, que lamentavelmente perdura até hoje. Não por acaso, encontramos nas falas de pesquisadores ou pseudo-pesquisadores, em publicações ou eventos, a exploração e o sensacionalismo envolto na experiência favelada da escritora. Não podemos julgar ou excluir esses outros trabalhos, mas não se pode perder de vista que às vezes eles reforçam apenas o espaço da escassez, enquanto Carolina foi e é tão potente. De todo modo, as limitações editoriais apontadas não levam a conhecer uma Carolina diversa, múltipla e criativa. Nesse sentido, penso que o apagamento de Carolina se faz devido a duas questões fundamentais. A primeira, sua insubmissão: quer dizer, ela não se limitou ao local da pobreza, e o fato dos seus textos literários não terem sido reconhecidos como literatura a deixou triste. Inclusive, ela nos conta que no dia do lançamento de Quarto de despejo levaram terra da favela para colocar na vitrine junto ao livro dela. Ela se sentiu muito mal, porque dizia que o seu maior sonho era ver seu nome estampado no livro e quando viu se deparou com aquela imagem acompanhada de uma faixa onde se lia “Carolina, a escritora da favela”. Fico pensando se alguém a abraçou nesse momento de dor ou mais uma vez ela só pode recorrer aos cadernos na sua solidão de mulher negra. É muito pesado! Para piorar, ela também conta que muitas foram as vezes em que pediam para ela posar em fotos com o lenço na cabeça e as vestes de catador. Por isso existem muitas fotografias de Carolina cabisbaixa e com o lenço na cabeça. É muita humilhação para uma pessoa só, não podemos insistir nesse erro! Chega! Ela nunca quis ficar nesse lugar, tanto que tentou publicar toda sua literatura que não foi aceita e até hoje não encontra um trabalho completo de edição. Por isso, Carolina chamou atenção do repórter Audálio Dantas para si, assim como buscou fazer em diversas redações de jornais e revistas, como a Reader’s Digest nos Estados Unidos, enviando seu material na tentativa de publicar tão somente seu espólio literário. Apesar disso, parece ter ocupado sempre um não lugar, aquele que não é nem o espaço da classe média burguesa que ela tentou chegar, nem é o espaço da favela do qual ela sempre fugiu. Um lugar que não podia ser aceito nem por um e nem por outro. O isolamento de Carolina no sítio, já no final da vida, não foi por acaso. A gente não pode esquecer que estamos chegando ali no momento da ditadura no Brasil. Carolina já não servia para a ideologia populista. Inclusive, Quarto de despejo foi proibido por Salazar em Portugal. Temos ali o lugar de fala que não podia mais ser escutado.

De acordo com a sua pesquisa, em 2011, Audálio Dantas doou à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro 14 cadernos contendo gêneros diversos, e que apenas o caderno 11, datado de 04/12/1958 a 19/12/1959, foi digitalizado e encontra-se disponível no acervo digital da instituição. A impressão que se tem é de que ainda sabemos muito pouco de Carolina, de que há um mundo ainda a ser conhecido pelos seus leitores. O que falta para o espólio de Carolina vir à público?

A memória do povo negro brasileiro é pouquíssimo valorizada. O Brasil é um país sem memória, que tem uma série de problemas nos acervos, nos arquivos, sobretudo nos arquivos menores ou em espaços que nem arquivos são, mas que a duras penas tentam resguardar obras e fotografias da história dos segmentos marginalizados e silenciados pela história oficial. Diria que um primeiro problema é a própria dimensão de desvalorização de uma parte de nossa cultura. De que memória estamos falando? A de uma mulher, negra e favelada, três vezes marginalizada. A segunda questão é a problemática física dos arquivos e dos acervos brasileiros. Assim, são diversos os fatores que impedem a difusão dessas memórias, pois a desimportância que se dá a esse tipo de história, as dificuldades do mercado editorial que vêm sendo debatidas e a reconstrução dele, graças ao advento de diversas editoras criadas por gestores negros, que lutam para resguardar e disseminar a memória dos seus ancestrais – como por exemplo, a Ciclo Contínuo Editorial, que publicou o sétimo livro de Carolina intitulado Onde estaes felicidade em 2014, trazendo uma Carolina com um cabelo black na capa e com textos inéditos. Também são exemplos a Aetia Editorial, a Nandyala, a Oguns Toques etc.

Mas, vale dizer, existem complicações relacionadas aos herdeiros de Carolina, sobretudo Vera Eunice e o arquivo da cidade de Sacramento. A família luta para ter posse desses manuscritos, para levá-los para um arquivo que tenha mais condições de resguardo desse material e de fomento da obra carolineana. Uma luta de longa data. Lembro que quando comecei a pesquisa efetivamente nos acervos, em 2002, estabeleci um primeiro contato com as editoras de “jornal de Bitita”, Clélia Pisa, Ivonne Lapouge e Metallié, editoras de Carolina na França, tentando explicar via e-mail a importância da devolução de dois cadernos que compõem uma versão mais ampla de Um Brasil para brasileiros, até hoje erroneamente publicado no Brasil como Diário de Bitita – não por acaso mais uma vez "diário" no título [em alusão ao subtítulo "diário de uma favelada", de Quarto de despejo], uma versão deformada dessa importante obra memorialista de Carolina. Elas sempre relutaram em devolver e um dos argumentos era de que esse material num país sem memória como o Brasil seria perdido. Audálio Dantas também falava isso. Ele demorou muito para entregar o material para a Fundação Biblioteca Nacional. Depois de muitas conversas tanto com Clélia quanto com Audálio, ambos resolveram enviar os arquivos ao Instituto Moreira Salles e à Biblioteca Nacional, respectivamente.

Agora, sabemos que há alguns cadernos de Carolina sob posse de um senhor em Curitiba que se nega a devolve-los para a família. Isso é muito complicado, porque a partir do momento que este senhor entende que os cadernos são “bibelôs”, e não parte da história cultural e artística brasileira, há um evidente desrespeito com a memória numa perspectiva mais ampla. O seu apreço individual (parece que ele recebeu os cadernos de uma amiga que já faleceu) não pode ser maior do que o respeito com o público e com a própria memória de Carolina Maria de Jesus, que certamente gostaria que esses cadernos fossem lidos. Por fim, é um espólio muito prejudicado por não haver um fundo onde se possa catalogar de maneira mais precisa toda obra que, por sua natureza, já está fragilizada, pois os primeiros cadernos de Carolina eram redigidos em toda sorte de material retirado das lixeiras, versos de cadernos infantis, folhas de notas e papel de pão. Quando volto aos arquivos, observo que até hoje há problemas de catalogação, descrição e acondicionamento dos cadernos.

A partir da variedade de atuação da autora (poeta, contista, letrista, teatróloga), excluindo-se Quarto de despejo, exatamente por ser seu livro mais comentado, que sugestões de leitura você daria a quem quer conhecer a potência de escrita de Carolina?

Eu sugiro tudo sempre, mas proponho sempre um caminho mais próximo de Carolina, Meu sonho é escrever, seu oitavo livro, no qual se podem consultar alguns textos inéditos; Onde estaes felicidade?, que está online e contém textos que antecedem Quarto de despejo. E faço um apelo para que se engajem na luta pela publicação das outras obras da Carolina, porque esse é o grande dilema. Enquanto esses textos não forem publicados, as pessoas terão acesso apenas às edições que foram estabelecidas, solapadas por editores-homens, brancos, de uma classe totalmente diferente da de Carolina e que não tiveram a sensibilidade de trazer essa outra autora a público. O livro de poemas nomeado Antologia pessoal, no qual estão alguns poemas fundamentais que falam do negro no brasileiro – como, por exemplo, o poema Os feijões, que reivindica a presença dos negros na Universidade.

No momento, estou organizando junto a um coletivo de livreiros da favela da Maré no Rio de Janeiro o livro de poemas Clíris, no qual foram colocamos todos os seus poemas e canções. Nosso trabalho busca respeitar ao máximo o processo criativo da autora, a começar por adotar o título dado por ela. "Clíris" é uma palavra do grego arcaico que significa "clarividência". Acredito que respeitar em primeiro lugar o título da obra, os Prólogos que ela mesma criou para as suas obras e visibilizar textos que foram recortados já é um primeiro movimento de combate ao estigma e de fruição conjunta dessas preciosidades da autora. Espero que com essas pequenas atitudes, que são esforços coletivos, possamos estar cada vez mais próximos do projeto literário de Carolina e do grande legado que essa autora nos deixou para além de seu quarto de despejo.

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