Entrevista Isabel Lucas jul19Paulo Alexandrino Divulgacao

 

 

A viagem é um signo bastante recorrente nos textos da portuguesa Isabel Lucas. Jornalista, crítica literária e curadora, Isabel começou no mês passado uma série de incursões pelo Brasil e por nossa literatura, a fim de pescar algo desse Brasil que ainda padece de uma retórica do progresso no devir. Provisoriamente batizado de Viagem ao país do futuro, o projeto consiste em crônicas que conciliam literatura e a vivência nas ruas, a serem lançadas simultaneamente no jornal português Público e neste Pernambuco. A ideia é bastante próxima de seu Viagem ao sonho americano (Companhia das Letras, 2017), em que percorreu os EUA por meio de suas estradas e livros. Para o Brasil, Isabel estabeleceu lista inicial com nomes canônicos, entre eles Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles, Milton Hatoum, Raduan Nassar, Gilberto Freyre, Clarice Lispector e Érico Veríssimo. Ao fim, o projeto será lançado em livro pela Cepe Editora.

Nesta entrevista por e-mail, ela fala da abertura ao improviso e ao diálogo como formas de escapar de uma visão colonialista e do recorte ca nônico com o qual principia seu contato com nosso país.

De que maneira começou sua aproximação com a literatura brasileira? O que a fez escolher inicialmente esses autores para guiar seus caminhos pelo país?

Comecei muito cedo a ler autores brasileiros. Cresci numa altura em que Jorge Amado era muito popular em Portugal, nos anos após a Revolução (dos Cravos, em 1974). Lembro-me de ter uns sete ou oito anos e a minha mãe me oferecer Jubiabá. Seguiu-se Capitães da areia, Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, que havia lá em casa. E na adolescência lia muito a poesia de Drummond, de João Cabral, copiava letras das canções do Chico (Buarque) para cadernos, descobri depois os cronistas Nelson Rodrigues, Luís Fernando Veríssimo; a seguir, vieram Clarice, Lygia e, já adulta e a trabalhar, um amigo teve muita importância em me dar a ler nomes como Milton Hatoum, Bernardo Carvalho, Nuno Ramos, Sérgio e André Sant’Anna e tantos outros. Chamava-se André Jorge e foi um dos maiores divulgadores da boa literatura brasileira em Portugal, na editora que fundou, a Cotovia. Devo-lhe muito, também por isso, e por me ter apresentado pessoalmente alguns desses autores. E, também por ele, descobri um dos livros mais belos da vossa literatura: A menina morta, de Cornélio Pena.

Inicialmente, os romances escolhidos como guias para essa viagem ao Brasil estão dentro do ambiente do cânone e da literatura tida como síntese da nação. Quais os desafios de trabalhar com esses marcos sínteses do país e atualizá-los em crônicas que os colocam em atrito direto com o contemporâneo?

Sim, pode-se dizer que é uma escolha conservadora, mas pretende ser um ponto de partida para a diversidade e o contemporâneo. Digo sempre que são livros de partida, pretendem ser vias de abertura para deixar entrar o que fizer sentido. Pela temática, estilo, abrangência, território. Aí quero guiar-me por todas as possibilidades que eles abrem, e, se me perder, tanto melhor. A literatura, como a viagem, têm muito que ver com essa ideia de perdição e estranheza que gosto de convocar para o que faço e escrevo. Vou pedir ajuda pelo caminho, serei uma estrangeira numa geografia e numa área onde tenho tudo o que aprender. Ter esses livros como guia é ter uma segurança porque os li, é aceitar toda a aventura pelo que eles me podem revelar. Se conseguir passar a quem lê parte do que vou aprender e encontrar a partir deles, fico contente. 

Em 2017, você lançou Viagem ao sonho americano, um projeto que fazia cruzamentos entre um recorte da literatura estadunidense com a experiência contemporânea e implicações sociais dos EUA hoje. O movimento de fazer algo semelhante com o Brasil traz, de largada, outras camadas. Para além de termos uma língua compartilhada, o fato de você ser portuguesa em viagem por terras brasileiras traz também dimensões coloniais. De que forma pensa sobre esse corpo, inevitavelmente marcado por essa memória, atravessando o Brasil?

Traz isso tudo, sim, e é uma coisa de que estou bastante consciente. Falar a mesma língua não significa necessariamente que nos entendamos melhor, porque há referências e circunstâncias diferentes, e uma história que tanto une como divide. Eu vivo no meu tempo e carrego uma história. A literatura tem vindo a tratar isso, a lidar com isso, mas há questões muito presentes a suscitar paixões. Vou, mais uma vez, pedir ajuda para tentar ler melhor essa realidade. Ajuda de estudiosos e conversas com pessoas que não têm essa dimensão teórica. Quero fugir a clichés, a esterótipos, a preconceitos, ciente de que eu também os carrego, por mais que me queira livrar deles ou que eles sejam inconscientes. É uma coisa de que só vou saber um pouco mais quando estiver nos sítios. Ao fazer este trabalho no Brasil, sinto-me mais amarrada à minha identidade, e a isso acresce uma noção de responsabilidade mais visceral. 

A ideia de costurar crônicas em (e sobre) um território estrangeiro exige uma vivência cotidiana e conversas com pessoas tanto conhecidas como desconhecidas. O quanto de planejamento e o quanto de improvisação existiu no primeiro percurso (os EUA)? Esse plano vai se repetir no Brasil?

Há muito mais planejamento na minha ida ao Brasil do que houve nos Estados Unidos. Por questões práticas, apenas. Mas elas acabam por ser determinantes. Nos Estados Unidos, andei meio vadia, à solta, a decidir os percursos meio em cima da hora, a desviar-me de rotas. Isso fez com que o acaso desempenhasse um papel crucial no trabalho. No Brasil, tudo está mais planejado, o que é muito mais descansativo. Pude contar com pessoas que me ajudam a planejar as viagens, tratam da produção, coisa que não existiu nos Estados Unidos. Isso liberta--me energia para me focar nas reportagens. Mas não dispensarei a rua, as vozes, os cheiros, as paisagens, a vida. Se não houver isso, estas reportagens não farão, para mim, sentido. O improviso é essencial e eu, na maneira como vivo e trabalho, gosto de me contaminar por ele. Sou naturalmente dada ao improviso nos meus caminhos. Nesse caminho, serei sempre um tradutor de uma realidade que não é a minha e farei erros de tradução. Não serão nunca premeditados. 

O fato de escrever durante o processo de viagem – e não depois dela encerrada – implica também uma escrita mais contaminada por aquilo que imediatamente a cerca. Enquanto jornalista, o quão importante é esse estado de espírito para a forma textual do projeto?

Acho que já respondi um pouco a isso na pergunta anterior. O contágio é bem-vindo. Este não é um trabalho científico. São reportagens a partir da literatura e, se eu sentir nostalgia, esse estado irá passar para o texto; se for entusiasmos, também passará. São textos que quero com vida e que tenham o objecto de se aproximarem de uma ideia de verdade – seja ela qual for: literária, de território, de identidade – mesmo sabendo que nunca a irei alcançar. Mas vou tentar ler a pensar nisso. E também sei que não voltarei a ler os livros que já li da mesma maneira. Eles vão carregar a minha experiência de viagem. Como os textos que eu escrever. Há subjectividade nisso, claro.

Seu próximo livro surge com o título de Viagem ao país do futuro. Essa ideia de “país do futuro” é muito cara à nossa história, particularmente para o momento que o país vive, de retrocessos brutais em todas as áreas de atuação governamental. Dessa forma, de que maneira o título funcionará como um condutor de viagem nesse Brasil contemporâneo?

No livro sobre a América (EUA), o título só surgiu quando tudo estava feito. Isso porque a ideia de livro veio quando as reportagens já estavam a ser publicadas no jornal Público (de Portugal). E veio porque trazia essa carga de ambiguidade, controvérsia, discussão à volta de uma frase que tem a ver com o mito americano. Agora, a proposta desse título veio daí, por também ela conter essa ambiguidade, quase ironia. Concordei. Acho que se ajusta. Tentarei não me guiar por ela. Se, no final, perceber que não faz sentido, mudarei. Partir para uma reportagem para ir ao encontro de um título vai contra o que entendo como jornalismo. Por isso, já esqueci o título. Como é mesmo? 

Percebemos que há uma prioridade para a prosa, mais especificamente para romances, no seu recorte inicial de livros. Isso aconteceu também com Viagem ao sonho americano, ainda que o desfecho se dê com um verso de Walt Whitman. Qual sua relação com escritos poéticos ou de contos no Brasil?

Os livros que escolho não são necessariamente os livros de que mais gosto, mas não há aqui nenhum livro de que não goste muito. E é verdade que há mais prosa porque ela me facilita o trabalho que não pretende ser um exercício de análise poética. Mas irá haver poesia, claro, porque a literatura e a realidade têm muitas dimensões poéticas. Eu leio muito poesia, mas raramente escrevo sobre poesia, acho que é por pudor. Se a poesia me contaminar ela entra, sempre. E levarei poetas comigo. É uma certeza.

Ainda nesse contexto, o campo da literatura no Brasil vem servindo como um dos focos de debate sobre revisões históricas de quem narra e quem é narrado. Machado de Assis, por exemplo, começou a ter sua negritude reconhecida por parte da academia e Casa-grande e senzala vem passando por revisões que problematizam a romantização mitificada de uma democracia racial defendida por Gilberto Freyre. Como são dois autores que estão no plano original do seu percurso literário pelo país, gostaríamos de saber se você chega com um plano de trabalho específico para lidar com eles.

Temo sempre muito os revisionismos históricos ou de memória. Saber ler à luz do tempo é preciso. Como é preciso saber ler à luz do nosso tempo. Só que neste tempo nós já temos mais conhecimento. Isso permite que tenhamos também mais ferramentas para perceber o que foi feito e como deverá ser feito o debate. É preciso isso, que as pessoas se ouçam. Essa questão, do porquê de este tempo querer fazer revisões e reescrever coisas passadas, será abordada, necessariamente. Vivemos neste tempo.

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