“Dim dim don, Rap é o som!” (Capítulo 4, Versículo 3 – Racionais MC’s). Essa afirmação vem ecoando desde a já distante década de 1990, quando do lançamento de um dos álbuns mais icônicos da música brasileira, Sobrevivendo no inferno. De lá para cá, muito se ouviu e se produziu a respeito do grupo do bairro do Capão Redondo, periferia da Zona Sul de São Paulo. Hugo Cacique, jovem nascido no bairro do Campo Limpo, vizinho a Ice Blue e Mano Brown, é um dos manos que faz essa voz potente do rap reverberar com mais força. O Dicionário Capão é uma homenagem lírica e imagética ao que os Racionais fizeram por ele, por nós e pelas quebradas do Brasil profundo. Trata-se de um perfil no Instagram (@dicionariocapao) que reúne gírias das letras dos Racionais e explica o sentido delas a partir da imagem de palavras pichadas – ou pixadas, como preferem os artistas – em uma folha de dicionário. Essas imagens são como as tags, pixos feitos com um canetão, não com spray, e que costumam ter tamanho menor, "lançadas" em um poste, porta de estabelecimento ou algo do tipo. É o caso da foto acima, na qual Hugo posa com a reprodução impressa de uma postagem do Dicionário.
Nesta entrevista concedida ao Pernambuco, Hugo relata algumas das contradições do sujeito periférico paulistano, especialmente quando em ambientes tradicionalmente elitistas como a universidade ou o escritório publicitário. Seu projeto é uma tentativa de conferir ainda mais peso ao empoderamento que os Racionais nos trouxeram. Uma ode ao caráter transformador da arte. “Uma homenagem a melhor arma dos quatro pretos mais perigosos do Brasil: a palavra.”
Qual que foi dessa ideia? Como surgiu isso de fazer um Dicionário Capão?
É uma ideia de gaveta, de muito tempo atrás. Surgiu quando eu morava no Campo Limpo, entre Morumbi e Capão, bairro de muitos contrastes. Foi no caminho que eu fazia na época, de ônibus e trem. Nesses trajetos, é muito marcante como o perfil das pessoas vai mudando. E o jeito das pessoas se expressarem também muda muito. Um dia, vendo um mano falando ao celular com outro, fiquei imaginando o que as tiazinhas do trem estavam pensando. Daí me veio o estalo pra começar o projeto.
Por que você resolveu chamar o trampo de Dicionário Capão?
Primeiro, por ser Racionais. Eles têm uma identidade muito grande com o bairro. O Capão é como se fosse uma meca marginal, quase um sinônimo de periferia. É uma ideologia. Claro que têm outros nomes, como Ferréz e Sérgio Vaz, que carregam o orgulho de ser de periferia, mas Racionais levam isso pra outros lugares do Brasil e do mundo.
O Capão então surge muito mais como conceito pra você do que como lugar geográfico efetivamente?
Sim, é linguagem mesmo. Tem um fator identitário. A gente se reconhece ali. A linguagem é pensamento e as gírias dos Racionais são uma tradução desse pensamento.
Você tem algum trampo que envolva a palavra? Qual é a sua formação acadêmica?
Eu sou redator publicitário por formação. Sempre gostei da palavra e o uso dela sempre foi muito familiar. Sempre joguei descalço. Quando criança, participava do jornalzinho da escola. Entrei na publicidade porque uma professora disse que eu desenhava bem. Quando entrei na universidade, foi um impacto muito grande. Sempre circulei pela periferia do Campo Limpo e, querendo ou não, eu não pertencia àquele mundo. E é isso que acontece também na publicidade. Sempre têm os “patinhos feios”, mas o grosso é bem hipsteragem nutella (risos).
De onde veio a identidade visual do Dicionário? Por quê você escolheu lançar os verbetes em formato de tag, pichada no meio da página de um dicionário?
Eu queria transformar em estética aquilo que na gíria é conceitual. Você bate o olho na tag e não consegue entender de imediato aquilo. Com a gíria é a mesma coisa, você ouve mas não consegue determinar ao certo o que é. Você pode entender como vandalismo ou como arte.
Pode crer. Isso tem um efeito imediato mesmo. Qual que era sua intenção primeira quando pensou no projeto?
Era, acima de tudo uma homenagem aos Racionais. A maioria está ali por causa dos Racionais, sua empatia com as letras ou coisa parecida. Tem aqueles que se identificam pela estética periférica e tem aqueles que estão prestando vestibular, agora que os Racionais viraram leitura obrigatória para a Unicamp. Os alunos vêm me agradecer por ajudar a decifrar a obra e os professores me procuram dizendo que vão usar o Dicionário em sala de aula.
Sim, eu mesmo tô tendo essa experiência e vou usar seu material com meus alunos do cursinho.
É, então. Eu não esperava esse retorno tão positivo e fiquei muito feliz com isso.
A interlocução com as outras classes sociais é interessante, mas eu vejo valor em como isso tá circulando entre nós, com esse peso imagético e a maneira como você cuidou da palavra esteticamente. É essa minha ideia de representatividade. Quando nós entramos na universidade, falar de Racionais entre os grandes autores de literatura era algo impensável. O que você acha dos Racionais aparecendo nesses lugares acadêmicos como o que está ocorrendo agora?
Isso me parece um reflexo do fato de as pessoas que não pertencem a uma classe elitizada estarem adentrando a universidade. Antes o número de “estranhos no ninho” não era tão visível e hoje, como esses espaços são muito mais plurais, há pessoas com outras visões e outras vivências que podem modificar a estrutura da academia. E o que digo sobre a universidade, serve também pra realidade da publicidade. Eu uso isso pra subverter o status quo e o discurso dominante. Você deve ter acompanhado quantas vozes se levantaram contra a presença dos Racionais nos vestibulares: “Ah, mas eu tô pagando cursinho pro meu filho ouvir essa porcaria”. É exatamente esse o ponto, esse confronto ideológico que escancara o que algumas partes da população tendem a colocar debaixo do tapete. Essa realidade é tão comum, que as pessoas não querem atravessar da ponte pra cá, ficando nesse lugar confortável.
Você tem como mote do trampo então causar esse impacto e incomodar as pessoas?
Antes de mais nada é uma homenagem aos Racionais. De como eles conseguem nos representar. Todas as outras reverberações não estavam nas intenções, mas são muito bem-vindas.
E quanto essa escolha de usar o alfabeto fonético antes da definição das palavras?
Minha intenção era dar mais credibilidade ao Dicionário. Mesmo que não siga as regras normativas da gramática, é interessante pra dar maior legitimidade. Claro que também tem o fato de enfatizar o caráter oral desta variante da língua. Mostrar que se trata de um dialeto.
A primeira coisa que aprendemos na faculdade de Letras é variação linguística. É um susto saber que não vamos aprender a gramática normativa, fazer análise sintática de sujeito verbo, predicado e outras fitas assim. Aprendemos que é preconceito linguístico dizer que tal pessoa fala errado. Os Racionais já mostraram isso pra gente há muito tempo e você trouxe potência de imagem com o lance da tag e do picho. É muito loko. Você chegou a trocar ideia com os caras dos Racionais sobre o trampo?
Tentei conversar com eles pela internet mesmo. Mandei mensagem falando sobre o Dicionário, que era uma homenagem pra eles e tal, pequena, mas de coração (risos). Os caras devem receber mensagens como essas o tempo todo. É só ver a quantidade de menções que eles têm no Instagram. Um ou outro perfil pessoal deles curte as postagens do Dicionário. O próprio perfil dos Racionais já curtiu algumas postagens. Recentemente fomos convidados pra fazer uma exposição lá na Vila Fundão (no Capão Redondo). Foi uma marca que chamou a gente, mas tinha essa relação identitária, organizada por uma galera de lá mesmo, os “Visionários da Quebrada”. Teve uma boa receptividade e o público gostou, foi bem interessante.
Daora. Isso me fez lembrar uma coisa. Os Racionais estão há um tempo na estrada e, de uns anos pra cá, vêm sendo criticados com a ideia de que estão se vendendo pro mercado ou, de alguma forma, traindo suas raízes. O último álbum, Cores e valores, foi mal recebido pelo público em geral que procurava algo parecido a Sobrevivendo no inferno ou Nada como um dia. O que você acha disso? E quanto ao seu dicionário-homenagem, como você lida com a ideia de monetizar, ganhar uma grana com o trampo?
O meu principal medo e o motivo pelo qual eu preciso falar com eles é esse. Não quero parecer o camelô que tá ganhando dinheiro com a camiseta pirata deles. Antes da exposição, ainda tentei entrar em contato com a Eliane (empresária, advogada e ativista feminista, atua na produtora dos Racionais MC’s, a Boogie Naipe) pra deixar isso claro, mas não rolou. O motivo do trampo é uma homenagem pros caras e pra tudo o que eles fizeram e têm feito por nós. Não tenho intenção nenhuma de monetizar e nem de me promover com isso.
Como é a pegada com o processo criativo pra escolher os verbetes do Dicionário?
Eu peguei todas as músicas, fiz as transcrições, compilei tudo num arquivo só e fui destacando as gírias. Quando comecei, fui de forma cronológica de 1988 pra cá. Já tenho mais de 400 palavras e espero que fique defasado em breve e que eles lancem ainda mais músicas. Mas não sabemos se isso vai rolar, se os Racionais vão continuar produzindo.
Pode crer. Tô acompanhando as entrevistas dos caras e não parece que eles estão muito dispostos a voltar a compor e produzir. Principalmente neste Brasil que elegeu o Bolsonaro e tá mostrando a sua cara mais racista e conservadora.
Justamente. Os caras sempre foram vistos como a voz ativa da periferia. Como ser a voz de um troço que tá assim, em mutação? Eles sempre tiveram esse cuidado de parar e produzir cada coisa no seu tempo, com um longo processo entre um álbum e outro. O Cores e valores, mesmo, eles prometeram uma segunda parte do álbum e não parece que vão lançar tão cedo. Machucou muito a repercussão negativa da rapaziada que é viúva do passado e a posição política das pessoas, nessa recente eleição.
É isso mesmo, mano. Viúvas do passado. Acho o Cores um álbum incrível e creio que as pessoas devem se propor a uma outra leitura dele, saber ouvir mesmo. Nessa caminhada aí, você notou alguma gíria nova que o Brown e o Edi Rock usam nessas letras de 2014, diferente das que eles usavam nos álbuns anteriores?
Tem isso sim. A presença de gírias nas letras vai acompanhando a renovação do dialeto nas ruas. Assim, palavras mais recentes, como “jet” e “chave”, podem ser encontradas nas últimas gravações. O que tem de interessante nesse processo, voltando pra abordagem cronológica que fiz, é que no começo eles não tinham essa preocupação com a linguagem. Eram poucas gírias utilizadas e sempre quando o eu-lírico ia conversar com alguma outra personagem da canção. Dentro da narrativa da canção mesmo, era mais raro de ouvir as gírias. Não havia a preocupação de mostrar o dialeto da rua mesmo e isso vai mudando aos poucos, no decorrer da obra.
Sim, eu percebi essa modificação também. Eles vão introduzindo mais gírias, mais coisas da oralidade nas canções e o ouvinte da periferia se identifica ainda mais.
Pode crer. Mano, eu acho isso incrível. Tem alguns fios que tecem minha história e um deles é o rap. A legitimidade que os caras trouxeram pra nós. O poder que vem das letras deles. Eles me fizeram ir atrás da palavra e fazer dela meu ganha pão. Os Racionais são responsáveis por isso e eu quero retribuir um pouco do que fizeram com essa homenagem. O Dicionário Capão é uma tentativa de agradecer os caras pelo que eles fizeram.