PauloScott

 

Em seu novo romance, Marrom e amarelo (Alfaguara), Paulo Scott retrata a luta das novas militâncias frente aos velhos preconceitos dum Brasil que tem dificuldade em superar a herança segregada que carrega. Nesse cenário distópico, o colorismo impregnado, o racismo e seus enfrentamentos são enredados numa narrativa veloz, que passeia entre o burocrático mundo político e o romance de tensão social. Autor de obras como Ithaca road e Habitante irreal, Scott conversou com o Pernambuco por e-mail sobre seu Marrom e amarelo, que consumiu mais de cinco anos de pesquisa.

 

Hierarquização cromática é um tema já abordado em outro de seus romances, Habitante irreal, considerado por você seu romance mais maduro. Entre este e o novo Marrom e amarelo, foram lançados dois outros livros com temáticas diferentes – O ano que vivi de literatura e Ithaca road. Por que a retomada deste tema?

A temática do Habitante irreal tem uma dimensão histórica e social que talvez não se constate nos outros dois livros que você refere, mas não acho que exista uma, digamos, hierarquia de maturidade de tratamento temático nos livros que escrevi. No Ithaca road, para exemplificar, há contundente exposição do racismo em relação aos aborígenes na Austrália. Talvez a maturidade que referi tenha relação com o quanto certa temática possa ter ocupado minha atenção, sobretudo em relação ao tempo de reflexão. O holocausto indígena é algo que me perturba, de verdade, desde o final do século passado quando passei a buscar, com maior regularidade, informações sobre a situação dramática dos guaranis e dos caingangues no sul do Brasil. No Marrom e amarelo, retomo verdades que me inquietaram quando mais jovem para tê-las como ponto de partida da construção da verdade da narrativa ficcional; não escondo que para articular o ponto de partida deste livro levei em conta determinadas verdades que fazem parte da minha biografia. Mas não se trata de autoficção, sempre é bom que isso fique claro. 

Quanto ao racismo em si, com certeza, é algo que me indigna e, sim, que sempre esteve presente na construção dos enredos e enfoques dos meus livros; está na composição da personagem coadjuvante Machadinho, no Voláteis, está nos poemas do meu primeiro livro de poesia – lá, nesse livro, a propósito, está o poema que é o embrião deste romance “Marrom e Amarelo” –, está no livro de poesias Senhor escuridão, nos contos do Ainda orangotangos; só não está no romance O ano em que vivi de literatura, que é uma sátira sobre o universo literário brasileiro contemporâneo, um livro que não é menos leve do que os demais, só é mais sarcástico, porque nele exponho a condição de ser escritor reconhecido, premiado, supostamente consagrado, subcelebridade, em um país onde quase ninguém lê.

 

O formalismo canônico eurocêntrico foi – e ainda é – um fator de grande influência na produção literária no Brasil. Uma pesquisa realizada por Regina Dalcastagnè (UNB) mostra que há uma supremacia branca massacrante de protagonismo e autoria nas produções literárias brasileiras – valendo a ressalva de que dos personagens negros presentes nas histórias, mais da metade são contraventores ou escravos. Hoje, podemos vislumbrar uma gradual metamorfose desse cenário. A literatura agora abarca as possibilidades de olhar pela perspectiva do outro – fora do cânone cristalizado –, e há uma preocupação maior em  fazer o personagem negro ganhar outros contornos nas narrativas. Como se deu o processo de pesquisa para este romance de tema tão complexo? Houve uma pesquisa em ficções sobre o assunto? Se sim, quais?

Pesquisei durante mais de cinco anos a produção teórica sobre o racismo e o colorismo no Brasil, fiz entrevistas, assisti a documentários, palestras de ativistas, sobretudo ativistas mulheres envolvidas na luta contra a discriminação racial, o que não impediu de consultar obras de pensadores estrangeiros, que, mesmo não conhecendo as peculiaridades brasileiras, analisam com precisão e profundidade os malefícios do colorismo, por exemplo, como é o caso, apenas para citar um nome, do filósofo africano Achille Mbembe. Nesse processo, sim, entraram ficções brasileiras que eu já tinha lido antes e também ficções que foram lançadas depois de eu começar a escrever o livro, este livro que foi contratado com a editora em 2012/2013, portanto bem antes desta abertura por parte do mercado editorial. Há muita coisa boa sendo produzida. Um aspecto que não posso deixar de registrar é o fato de que no centro da narrativa do Marrom e amarelo está uma família negra de classe média, tendendo para classe média alta, com condições financeiras boas, uma família com ótima formação educacional, uma família que detém ferramentas culturais, e linguísticas, e uma estrutura psicológica, que lhe oportunizam enfrentar de frente os ataques diários de uma sociedade tão racista como a do Rio Grande do Sul. Isso me pareceu importante concretizar, porque é parte de uma realidade brasileira que precisa ser encarada pela produção literária contemporânea e precisa ser abarcada pelo mercado editorial, e pela imprensa que cobre esse mercado editorial, que às vezes é pautado só pela moda, pelas ondas, pelas vendas. O racismo no Brasil não vai desaparecer daqui a uma semana, ele é estrutural, vai continuar estragando nossa sociedade, destruindo vidas, identidades, ainda por muito tempo; racismo não é moda, é doença social, coletiva, crônica.

 

Marrom e amarelo retrata um desentendimento não só entre o preto e o branco. Em dado momento, o enredo é colocado por dentro da discussão do colorismo entre o preto que é atacado pelo mais preto, que por sua vez ataca o menos preto – quando contextualiza os critérios criados por alunos negros contra alunos pardos, “não suficientemente negros nem suficientemente pardos, pardos de araque, afroconvenientes”, como é dito no romance; ou quando os alunos negros e os alunos pardos mais escuros que ficam contra os alunos pardos claros, que “nem pardos claros eram, brancos se aproveitando da exclusividade do critério de autodeclaração racial”. Escrever essa ficção te ajudou a pensar nessas questões sobre esse cenário da pigmentocracia que dentro da própria comunidade negra?

Sim, mudou minha percepção. O fato de vir de uma família negra sempre me cercou de convicções que, na pesquisa para escrita do livro, foram se fragmentando. O debate é muito mais complexo e a opressão é muito maior do que eu imaginava. Mergulhar nas demandas políticas do movimento negro nos dias de hoje, em que os negros já não admitem baixar suas cabeças para os brancos, foi definitivo para que eu compreendesse ainda mais o quanto o Brasil permanece sendo um país de lógica escravagista, um país de uma desigualdade escancarada, criminosa, onde cinco bancos (Bradesco, Itaú, Santander, Banco do Brasil e Caixa Federal) comandam e exploram indiscriminadamente quase cem por cento da população – há uma elite e seus lacaios políticos, tecnocratas, burocratas, bem diplomados, bem instruídos, que, episodicamente, ficam de fora –, que chancelam um governo desastroso, destrutivo, como este que temos hoje no Brasil. Somos todos escravos neste país; os debates que poderiam levar a esta consciência são abafados, a cegueira impera, é desesperador. Nesse contexto, os de pele mais clara tem maiores oportunidades, maiores chances de conseguir um assento mais bem posicionado na plateia dos que trabalham para os verdadeiros donos do país. O discurso colonialista da meritocracia, nessa nossa inércia cruel, é renovado de maneira muito eficiente e também muito próxima dessa escala cromática, que resulta do colorismo, que prevalece quase intocada; há exceções, claro, e são exceções que só comprovam a perversidade dessa lógica estrutural, uma lógica que um dia vai nos levar para uma guerra civil se algo adequado, uma solução racional, não for encampado pela elite política e econômica do país.

 

Quando estava escrevendo Marrom e amarelo, você disse que, apesar de não ser autobiográfico, havia uma inspiração em você e no seu irmão – daí, inclusive, o nome do livro. Como você definiria o impacto das suas vivências como ativista na construção da narrativa de Federico, seu protagonista? E por outro lado, você acha que essa obra pode contribuir no cenário da militância negra no Brasil? Em caso positivo, como?

Uma das minhas preocupações como escritor é evitar produzir obras panfletárias, procuro não deixar que o meu ativismo, a minha consciência de cidadão que se engajou em algumas questões importantes, interfira no processo de escrita da história que eu penso que tenha urgência de contar. Quando escrevi O ano em que vivi de literatura, fiz muito por conta de uma necessidade de satirizar uma realidade da qual faço parte, uma realidade, em certos aspectos, cheia de precariedades, de equívocos, mas também para dar uma resposta a leitores que passaram a me cobrar a escrita de um Habitante irreal 2, de um livro sobre a conjuntura política brasileira, já que o Habitante irreal foi um dos livros que, em 2011, inauguraram a retomada do emprego do contexto político contemporâneo – algo que alguns, muito equivocadamente, diziam que não deveria ser feito porque dataria a obra – para servir de elemento, de cenário determinante à escrita de ficção no Brasil de hoje, de agora, cobranças que visivelmente partiam da premissa equivocada, insisto, de que eu era um escritor político, engajado, que direciona seu trabalho a partir de propósitos políticos; mesmo que tudo que se faça nesta vida tenha repercussão política, isso me preocupou. As leituras que serão feitas a partir do que escrevo é algo que escapa por completo do meu controle. O Habitante irreal é visto como um livro político, mesmo não tendo sido a minha intenção escrever um livro político – para mim ele é outra coisa, um livro dos espíritos, talvez. Riso.

Se tivesse de eleger meu livro mais escancaradamente político, eu diria que foi o Garopaba Monstro Tubarão, lançado pela Demônio Negro no início deste ano, porque nele estão os influxos, os choques afetivos de três anos (2016 a 2018) de convivência com o interior de um dos estados mais de extrema-direita do país, um dos lugares mais racistas do país, mais violentos em relação a indígenas e quilombolas: Santa Catarina. Mas não sei se quem o leu tem essa percepção, como eu disse, é algo que escapa à ingerência do autor, e acho bom que seja assim.

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