GALINDO DIVULGACAO

 

“Traduções envelhecem mais rápido do que as obras literárias originais porque repensam a obra para o leitor de agora”, afirma Caetano Galindo, professor de Linguística pela UFPR e tradutor das novas edições de J. D. Salinger (1919-2010) no Brasil, lançadas pela Editora Todavia. Nesta conversa com o Pernambuco, ele fala do trabalho de verter o clássico norte-americano O apanhador no campo de centeio (lançado em 1951 nos EUA) e o livro seguinte do autor, Nove histórias (1953), para o português neste tumultuado 2019. Galindo comenta, também, as reflexões sobre a condição humana e o olhar crítico social de Salinger.

 


No Brasil, O apanhador no campo de centeio e o Nove histórias foram lançados em 1969, pela Editora do Autor, e tiveram algumas reedições empreendidas de lá para cá. Pensando nas novas traduções, neste processo de releitura, o que ganha o leitor com a atualização dessas obras canônicas que já contam com traduções consagradas?

O leitor ganha, primeiro, a possibilidade da escolha. Isso já é um mérito. Traduções são – e eu não canso de fazer essa comparação – como interpretações de músicas. As traduções literárias envelhecem mais do que seus originais e isso tem um pouco a ver com essa dinâmica de que a grande obra literária é feita sem um público em mente. Ela é sempre feita como uma expressão um pouco mais artisticamente original por parte do criador. Já a tradução é um projeto semiartístico e também um projeto editorial – ela tem um mercado, um público e um contrato. Então, a tradução é um pouco mais limitada do que o original nesse sentido, porque ela é feita pensando para quem vai ler naquele momento. Uma tradução feita hoje leva mais em consideração os parâmetros do leitor de hoje no que se refere à qualidade da tradução literária – esperamos coisas diferentes de uma tradução literária depois de um intervalo de 30, 40 ou 50 anos. Então, o leitor ganha escolha, ganha um trabalho feito para ele, ganha um trabalho novo em cima do livro e a obra, eu espero, ganha com essa possibilidade maior de acesso e com esse novo projeto editorial brilhante que a Todavia está fazendo.

É no contexto politicamente polarizado do pós-guerra dos anos 1950, nos Estados Unidos, que Salinger levanta seu olhar crítico social e sua sensibilidade em pensar a condição humana. Agora são feitas essas releituras dessas duas obras, quando vivemos um outro cenário de polarização política global. Você acha possível relacionar esses contextos, a partir do olhar crítico do autor?

A grande literatura, a literatura profunda, sempre vai ser capaz de dizer coisas inesperadas a respeito de contextos não projetados pelo autor. O apanhador no campo de centeio não é sobre o Holden (Caufield, protagonista do romance), não é sobre um adolescente americano vivendo o pós-Segunda Guerra Mundial, mas sobre um ser humano em um momento de crise, sobre um ser humano em confronto com a História. Insisto em dizer que, talvez mais do que a crise adolescente que muita gente identifica no livro, a crise da Segunda Guerra, as mortes da Segunda Guerra e a sobrevivência daquele rapaz que perdeu o irmão e um colega da escola, nesse rito de passagem para a idade adulta, encarando a morte, a violência, encarando o sem sentido de um mundo que muda muito velozmente. Descrito desse jeito, não há muita diferença com um adolescente brasileiro, que vai ter que enfrentar as quebradas em São Paulo, no Recife ou em Curitiba. Se você ler pela superfície, vai chegar à conclusão de que os livros se isolam em seu próprio momento. Se você ler profundamente, percebe que eles sobrevivem precisamente porque eles estão tratando de questões muito mais universalizáveis. É claro que o contexto social, o tipo de polarização que se vivia lá e o que vivemos cá, agora, são de ordens completamente diversas, mas acho que há muito a se aprender com aqueles livros – no caso d’O apanhador e muito especificamente no Nove histórias –, há muito a se aprender e a se aplicar à vida e à sociedade de hoje. Inclusive no que eles têm de intransferível, em você perceber o quanto que certos contextos se alteraram e são completamente diferente dos nossos. Isso também é um exercício interessante de empatia, de transposição e de concepção de mundo, tanto do nosso sentido para lá, quando de lá para cá. É algo que se pode aprender muito e algo que pode criar relações das mais imprevistas e mais férteis. Se trata de livros que são tudo menos abordagens rasas e diretas de uma sociedade isolada. São honestas, profundas e seríssimas investigações sobre a condição humana, sobre a posição dos seres humanos diante do mundo. Isso, inclusive, vai se acentuando na produção do Salinger. Se você compara O apanhador….. e até o último conto do Nove histórias, você percebe um envolvimento cada vez maior desse lado que podemos chamar de universal humano, ou até espiritual – para usar uma palavra meio brega –, que vai se radicalizando até o fim da carreira literária do Salinger. Acho que tem muito a se aprender, muitos paralelos para se criar e muita coisa interessante para se traçar por ali.

Durante a leitura de O apanhador….., percebi uma atualização da prosa do Holden. Nessa atualização houve uma atenção em manter, na medida do possível, as repetições que saem sarcásticas na voz de nosso narrador. Como se deu a abordagem dessa releitura do Holden, visto que é um personagem da metade do século XX – e por ser uma linguagem jovem, envelhece bem rápido?

A questão da atualização da narrativa já é complicada. Houve, sim, um ligeiro “banho de loja”. A tradução soa ligeiramente mais nova do que a anterior. De novo, ela atende expectativas de um leitor de hoje, não de décadas atrás. Uma grande preocupação nossa – e vale um grande plural mesmo – foi de caminhar nessa corda bamba de tentar estabelecer uma linguagem que seja: 1) completamente oralizável, que possa parecer alguém falando, no caso d’O apanhador e em alguns casos do Nove histórias; 2) uma voz que não soasse como um adolescente de 2019, o que seria um anacronismo imperdoável – o Holden hoje seria um senhorzinho beirando 90 anos; 3) não soar, também, como um pastiche, uma reprodução arqueológica de um adolescente do momento em que a história se passa, no final dos anos 1940-1950 – isso ia parecer muito artificial para o nosso leitor. Chegamos a fazer algumas experiências, li muito Nelson Rodrigues, fiquei anotando expressões da época, mas isso soaria falso. Seria um daqueles casos em que um realismo radical ia parecer menos real do que a imitação de realidade. Então, o que buscamos foi esse efeito de uma ligeira antiguidade na prosa, as gírias não são exatamente as de hoje. Eu tentei não usar nada que marcasse o livro muito presente, mas que também não traísse demais essa antiguidade original. Há uma atualização, sim. Mas uma atualização com um grão de sal. Tomamos muito cuidado para que ele não soasse radicalmente novo. Uma coisa que fui descobrindo à medida em que fui trabalhando com o texto e fui ficando obcecado por isso, é que o texto é marcado por uma série intrincadíssima de repetições. Eu montei uma lista com dezenas de itens que me pareceram relevantes e que se repetem um determinado número de vezes, desde coisas que se repetem três vezes até coisas que se repetem setenta vezes ao longo do livro. Eu montei essa lista, passei ela para a Márcia Copolla (preparadora do texto da edição) e expliquei que qualquer alteração feita em uma das interações em um item, as alterações teriam de ser feitas em todas as outras interações deste item. Fizemos questão de manter a mesma quantidade de repetições e o mesmo tipo de repetição nos mesmos momentos. O livro é quase que estruturado como um objeto musical, em termos de retorno dos mesmos temas e das mesmas ideias. Algumas palavras retornam com sentidos ligeiramente diferentes em momentos chave do livro, mas tomamos muito cuidado em manter essa quantidade de repetição. Então, mesmo com essa atualização, o Holden deveria soar tão repetitivo no português de agora do que no inglês da época.

A obra de Salinger é marcada pela sensibilidade no olhar da condição humana, pelas relações do indivíduo com o mundo. É possível, também, pensar em uma relação de proximidade entre O apanhador….. e o Nove histórias a partir do constante uso de um “despretensioso” olhar crítico social nas narrativas. Você percebe diferença entre as duas obras – seja pela sensibilidade ou pelo olhar crítico característicos do autor?

Eu não sei se a crítica social é o grande objeto dos dois livros. Acho que ela está lá, muito especialmente em O apanhador….., aquela que recebe voz direta do Holden e a que percebemos pela voz do autor sendo refratada pelo Holden, e ela – a crítica social – vai estar lá em vários momentos do Nove histórias, também. Mas tendo a pensar mais no Salinger como uma pessoa mais interessada nesse núcleo humano, na relação “ser humano-mundo” do que nas relações de sociedade. De novo, elas estão lá, lógico. Existem diferenças e similaridades entre os tipos de obras. Mas acho que há uma progressão no caminhar da obra do Salinger, entre O apanhador e os três livros mais diretamente ligados à família Glass, em que ele vai se aprofundando cada vez mais nessa coisa espiritual, interna, humana e, de certa forma, se desprendendo mais desse olhar crítico social ou do indivíduo em choque com a sociedade, se voltando mais com o indivíduo em choque com o próprio indivíduo. Então, existe uma diferença entre O apanhador e o Nove histórias, que é um livro que vai apontando nessa direção. Mas existem similaridades também, uma aproximação entre esse mesmo olhar. Você menciona “o uso de um olhar crítico ‘despretensioso” e acho que isso faz sentido. Isso aproxima muito essa obra inicial dos primeiros anos da produção do Salinger – algo que aproxima a obra do autor à obra do David Foster Wallace –, mas acho que sim, existem diferenças sutis, no sentido de que O apanhador é mais monotemático e mais adolescente por conta do olhar do Holden. Já o Nove histórias é mais variado, mais amplo e mais “virado para dentro”.

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