Autora do recém-lançado Maréia (Malê), Miriam Alves (São Paulo, 1952) é dona de carreira artística extensa. Seu novo livro é o segundo de uma saga baseada nos elementos da natureza, em diálogo com a cosmovisão iorubá. Miriam foi integrante do coletivo Quilombhoje Literatura (de 1980 a 1989). Ministrou cursos como escritora visitante em universidades norte-americanas. Publicou poemas e contos nos Cadernos negros, do volume 5 (1983) ao 40 (2017). Também coorganizou antologias bilíngues no exterior. Suas obras abarcam livros de poesia, contos, ensaios e os romances Bará: na trilha do vento (2015) e o já citado Maréia. Nesta entrevista, ela ressalta os porquês de ter escolhido colocar personagens brancas em evidência em seu romance mais recente. Também fala sobre sua trajetória literária, sempre paralela às suas práticas de luta antirracista.
Seu novo livro faz parte de uma trilogia. Poderia falar um pouco sobre o processo de partida e chegada até ele?
Na verdade, faz parte de uma “quintologia”, se assim podemos chamar. São obras unidas por uma temática que tem como ponto de partida os quatro elementos básicos da natureza – vento, água, terra e fogo. No 5º livro, eles (os elementos) se reúnem para discutir a vida. Em comum, (os livros) têm mulheres negras, de mais ou menos 30 anos, independentes economicamente, resolvidas com a problematização racial. Cada uma tem nome-título do romance que remete ao elemento. Bará: na trilha do vento, o 1º da série, é o vento, que vem no subtítulo do livro. Tem elementos autoficcionais e levou sete meses para escrever e sete anos para ser publicado. O 2º da série, que lancei na Flip, na atividade paralela da Casa Poéticas Negras, já teve outro percurso até a publicação pela Editora Malê. Estava no lançamento de um livro, no Rio de Janeiro, comentava sobre o argumento do meu próximo romance e um dos editores se aproximou interessado em publicar. Com a experiência do anterior, achei que ia levar os mesmos sete meses para concluir. Mas levou dois anos e depois mais três meses de reelaboração até a forma final. Tem alguns pontos com os quais não estou completamente satisfeita, acredito que poderia fazer mais, mas em mim a história estava se esgotando, e eu também estava me esgotando.
Porque Maréia demorou mais tempo que Bará, o primeiro romance da saga?
Acredito que foi o caminho da narrativa que resolvi seguir. Optei por um argumento não autoficcional. Os personagens teriam que partir do zero e não das minhas lembranças afetivas – porque, de certa forma, elas já estão “semiconstruídas” na minha subjetividade –, assim como o cenário desencadeado na história. Eu queria um viés histórico da época do que se acostumou chamar de “descobrimento”, inclusive oficialmente, em que a população que foi escravizada num sistema cruel e dizimador, aparece em porões de navios negreiros, ou naquelas situações amplamente divulgadas nas gravuras de Debret e Rugendas que ilustram fartamente os livros escolares, glamorizando perversidade – inclusive nas ficções, livros, filmes e novelas – como grandes feitos. Como escritora de Literatura Negra Brasileira – não aceito outra denominação para a minha escrita –, isso me incomodava e causava angústia. Passei, como assistente social de rede pública, a ver crianças negras abandonarem a escola por isso. Forma-se a psique de dois tipos de brasileiros, os brancos e os negros. Algumas pessoas me questionaram a História, e a História (seria) “vocês vieram de navio”. Ops! Não. Nós viemos de navio, brancos e negros. Era o meio de transporte da época. Então, resolvi falar a partir do convés e construir personagens brancas. Construo a narrativa (da forma) como vejo a sociedade brasileira: um paralelo de realidade e de vidas. Mergulho na História do convés e na psique das personagens brancas sob o meu ponto de vista: mulher, negra, brasileira; e narro a família negra contando a mesma História do Brasil sobre outro ponto de vista. Acho que o capítulo 15, que tem o nome de “Paralelas”, transmite a dramaticidade da minha intenção criativa.
A literatura teria poder de cura, de resistência ou de outras naturezas?
Sim, a literatura também é lugar de sonhar com possibilidades. Não só a cartografia da dor ou do racismo que agora, quase 40 anos depois de o Movimento Negro Unificado ter, em 1978, alardeado a falsa democracia racial, ganha mais visibilidade. Os fatos atuais ocorridos no Brasil transmitidos em redes sociais não deixam dúvida disso. Nós, há 40 anos, denunciamos isso. Agora, para a literatura que escrevo, é hora de traçar caminhos, nem que sejam ficcionais, para resgatar dignidade através da construção de memória. “Memória”, aqui, eu uso não só como o ato de recordar detalhes de infância ou da vida para a autoficção, que também é importante, mas de uma coletividade nela imbricada.
Muitos teóricos têm se debruçado para categorizar obras de autoras e autores negros como Literatura Negra ou Literatura Afrodescendente. Como você avalia essas classificações?
Literatura Negra passa a existir a partir de 1978, como movimento literário que traz algo revolucionário. Trouxe para o campo literário brasileiro uma visão de nação, até então impensável: autores negros e autoras negras sujeitos da própria história e narrativa, numa ação intencional, refletida. Lemos autores negros e brancos, discutimos ideologias das escritas. Nossa atitude fez com que alguns pesquisadores resgatassem negros que escreviam em séculos passados, mas, até onde sei, esse ato de criação em torno de uma coletividade se deu no final da década de 1970. São públicas as divergências da função da escrita em Lima Barreto e Machado de Assis. Na Flip, em intervenção numa das mesas, eu disse que é difícil para a academia, para a crítica, seja a literária ou de quaisquer outros meios, assumir a denominação que fizemos na efervescência do movimento negro e o surgimento de Cadernos negros. Porque assumir Literatura Negra Brasileira, assim mesmo como eu disse, é assumir que existe a outra literatura – a do branco, canônica, que traduz uma visão parcial e excludente de brasilidade.
Vê-se, hoje, a presença de escritoras negras em evidência. Quais seriam as possíveis estratégias para que essa prática não seja apenas fruto de um modismo acerca da imagem das mulheres negras?
Sinceramente, eu quero é mais. Para escrever de forma não excludente, podemos ter muitas escritoras, como temáticas e formas de escrita. Só o tempo dirá sobre a venalidade. Quero tantos livros e autoras e autores negros como têm nas livrarias os autores brancos. Quero que inunde.
Sua obra literária dialoga com as literaturas das jovens escritoras negras...
Acredito que sim, com muitas delas – as que me procuram para comentar os meus escritos, para falar dos escritos delas e questionar, assim como eu, o porquê de a Literatura Negra atual basear-se apenas no sofrimento e na denúncia. Com algumas, converso sobre outros possíveis caminhos, e a proposta da “quintologia” é isso: encontrar outros caminhos para as narrativas.
A reapresentação da cosmovisão iorubá em suas obras empreende um trabalho decolonial. Como essa prática decolonial em seus textos se entrelaça com a literatura latino-americana?
Olha, quando eu coloco, principalmente em Maréia, a cosmovisão iorubá, (isso) tem o propósito de reforçar a ideia de se viver numa sociedade de (narrativas) paralelas, que já mencionei. E porque vejo como algo natural e corriqueiro na vida de muitos brasileiros negros: conversa-se normalmente em alguns círculos usando a linguagem iorubá, exercendo essa compreensão do mundo onde o visível e o invisível andam juntos. Quando proponho que minhas personagens-título, nos livros, tenham correlação com um dos quatro elementos, estou utilizando a compreensão da cosmovisão de culturas de vários países de África, cujos cidadãos foram traficados para o Brasil. Acredito que cada pessoa traz em si, quando nasce, a força dos elementos naturais, sendo um, o principal, que a orienta. Uso isso para conduzir a narrativa: no caso de Bará, o vento; em Maréia, o mar, que é berço da criação da vida, mas também os rios, cachoeiras e minas subterrâneas – eles que conduzem a narrativa. O próximo, que já estou elaborando num trabalho de anotação de argumentos e criação de personagens, é a terra.
Como você avalia a representação dos brancos nas obras de autores negros?
Até onde sei, não tem muita, não. Esse é o diferencial de Maréia: a representação de uma família branca por uma escritora de Literatura Negra Brasileira. Isso fez com que os editores da Malê se interessassem em publicar quando eu ainda estava desenvolvendo o argumento da narrativa. Um dos autores negros que fez isso (representou pessoas brancas), que não era considerado negro – e, sim, mulato ou mestiço –, foi branqueado nos livros de literatura e agora é redescoberto como autor negro, foi Machado de Assis, que enfocou e ironizou comportamentos da sociedade branca da época. Na Literatura Negra que estamos fazendo, esse não é o enfoque. O enfoque é da personagem negra. Como gosto de desafios e acredito que faço Literatura Negra mesmo tratando de personagens brancos no enredo da história, mandei em forma de conto o 1º capítulo de Maréia, “Herdeiro”, para os Cadernos negros nº 40, que foi publicado. E recebi depois um comentário, via rede social, de uma leitora dizendo que havia achado muito interessante falar do escravocrata e do período escravista sem colocar personagens negras em supliciamento.
O que a fez ser escritora, e qual a importância de Cadernos negros e do Quilombhoje na sua trajetória?
Bom, que eu me lembre, sempre quis ser escritora: sonhava, assistindo aos filmes hollywoodianos que retratavam a vida de escritores – sempre brancos com um cachimbo na boca, à frente da máquina de escrever e com um olhar perdido, como quem busca a história num lugar distante. Quando comecei a trabalhar – aos 18 anos, contra a vontade de meu pai e com o incentivo de minha mãe, que achava importante (para uma pessoa) ter seu próprio dinheiro – comprei uma máquina de escrever e um maço de cigarro. Meu pai e minha mãe sempre incentivaram a leitura e os estudos, tínhamos uma prática de ler, eu e meus irmãos, cinco palavras do dicionário Aurélio por dia, que ainda me é útil. Escrevia em cadernos desde os 12 anos e os guardava, ainda os tenho. Quando quis publicar, deparei com a realidade do mundo editorial: diziam que meus trabalhos não eram literários porque tinham muita pele. Nessa procura, encontrei um grupo de escritores negros em 1980, que publicavam Cadernos negros, e fez a grande diferença na minha vida literária.