Um limbo entre desesperança e vislumbres de alegria. É assim que Djaimilia Pereira de Almeida, escritora portuguesa nascida em Angola, observa a vida dos personagens do seu novo romance, Luanda, Lisboa, Paraíso, lançado no Brasil pela Companhia das Letras. O livro, que ganhou recentemente o Prêmio Fundação Eça de Queiroz, evoca o colonialismo português, a questão política dos retornados e os afetos que afloram quando a condição é de precariedade. Djaimilia conversou com o Pernambuco por e-mail sobre sua nova obra.
Ao fim da entrevista, disponibilizamos um trecho de Luanda, Lisboa, Paraíso.
No seu primeiro romance, Esse cabelo – um retrato autobiográfico e ficcional que fala de raça, gênero e identidade –, temos uma narrativa em primeira pessoa. Essa proximidade entre entre a tua voz e o leitor é algo marcante nesse “romance ensaístico”. Em Luanda, Lisboa, Paraíso, seu olhar parece ter saído em um passeio, para fora do “eu”, como que para encontrar o “outro”. Pode comentar?
Reconheço-me na descrição de uma mudança na direcção do olhar de um livro para outro. Entre a escrita dos dois livros, vivi uma experiência que se revelou muito importante (e se verteu num outro livro, em 2017: Ajudar a cair): durante alguns meses convivi com uma comunidade de pessoas com paralisia cerebral. Esse contacto e a imersão na sua realidade, por curta que tenha sido, resultou em dias inteiros em que não me ocorria nem por um momento pensar em mim nem nos meus problemas. Quando, após esta experiência, parti para o Luanda, Lisboa, Paraíso a minha atenção tinha mudado de direcção. Interessou-me tentar imaginar outras vidas e deixar para trás um ponto de vista pessoal, no qual deixei de me reconhecer.
Luanda, Lisboa, Paraíso retrata um período histórico/político complexo. A queda do “terceiro império” português, firmado na Revolução dos Cravos (1974), foi uma abrupta quebra no fio da história – diferente de como ocorreu no Brasil. Pensar o colonialismo português é, como dito no Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo, “ultrapassar os choques de uma vivência ao desenterrá-la”. Como você pensa o reflexo dessas obras literárias de temas tão necessários e com dissonâncias políticas tão atuais em países como o Brasil e Portugal, que vivem ainda, de diversas formas, sob a sombra do colonialismo?
Penso muito que é muito importante que a ficção reflita sobre o que vivemos e creio que nos pode fazer pensar o presente e o passado de uma maneira própria, por oposição ao discurso histórico e informativo. No caso dos meus livros, não os encaro como sendo escritos na sombra do colonialismo nem sequer me revejo na ideia de que ofereçam sobre ele um ponto de vista estável. Mas certamente me reconheço na ideia de que tento, ao escrevê-los, desenrolar um novelo de perguntas, novelo esse que está longe de poder ser respondido de uma maneira clara pelo discurso historiográfico, por exemplo. E reconheço uma atitude paralela em alguns outros livros que partem dos mesmos tópicos em Portugal.
“De Portugal, a cidadania dos mortos foi o seu único visto de residência”. É no cenário posterior à descolonização que surge a imagem do retornado. Para além da diáspora, do despertencimento, da guerra, da fome e da exclusão, Luanda, Lisboa, Paraíso é também sobre afeto. A desidentidade letárgica que vivem os personagens Cartola e Aquiles, quando vão a Portugal, é um ponto crucial do romance. Na diáspora poética de Luanda…, o afeto é o fio que os une frente à desolação do regresso. Como você pensa essa imagem do “português vira-lata”, que pejorativamente recaiu sobre os últimos descendentes do Império português na África?
As personagens do Luanda, Lisboa, Paraíso vêem-se num limbo entre a desesperança e vislumbres de alegria. Não sinto que imaginem a sua atitude como sendo letárgica e nem sequer que aceitassem o epíteto de ‘vira-latas’. Mas são decerto pessoas desapossadas do que as define e arredadas dos seus sonhos, o que não significa que tenham abdicado da sua dignidade. A forma como não se vergam ao cinismo e crêem no futuro, a maneira como ainda encontram um lugar para a amizade nas suas vidas, leva-me a considerá-los vivos, e não meramente desistentes.
A crítica literária Fernanda Miranda (USP) fez um mapeamento de romances de autoras negras na literatura brasileira ao longo dos dois últimos séculos. De 1859 a 2006, somente 11 romances foram publicados por mulheres negras brasileiras no país. Após a publicação de Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, até 2019, foram constatadas 17 publicações. O processo de “rasurar o cânone” e ampliar as narrativas de autoras negras existe fortemente e tende ao crescimento. Pensando a partir da literatura lusófona em Portugal e na África, como você vê essa conjuntura da presença de autoras negras na literatura?
Não tendo dados concretos, creio que em Portugal e nos países africanos de expressão portuguesa o problema é análogo. No presente, assistimos ao aparecimento de novas vozes, de várias autoras, o que denota uma alteração, ainda que muito lenta, de um estado de coisas historicamente lamentável. Acredito que é um começo. E tenho a esperança de que com o surgimento de novas vozes surja um interesse redobrado pela redescoberta de muitas outras autoras de gerações anteriores que foram sendo esquecidas injustamente. Para já não falar de todas as autoras que escrevem e que ainda não conhecemos — e que eu adoraria ler, conhecer, ouvir, poder partilhar.
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Quer por inveja quer por solidariedade, o prédio inteiro veio à janela saudar os dois viajantes no fim de uma tarde de fevereiro. O marido despediu‐se da mulher com um beijo sentido e da filha e da neta com um grande abraço. Foi como se partisse para a guerra. Amparado no ombro de Aquiles, Cartola carregou as duas malas e soltou um “até já” sofrido mas resoluto.
Apesar de ruinoso como uma carcaça num cemitério de barcos, o nº 5 do Largo do Baleizão acendeu‐se por minutos como um navio em despedida, com as suas janelas iluminadas através de persianas empenadas. Raparigas peitudas de rolos na cabeça acenavam dengosamente. Os únicos tripulantes de partida estavam a caminho do candongueiro para o aeroporto, deixando para trás o recorte da embarcação contra o cair da noite, assombrosa como um sonho.
De braço dado com o filho na rua, Cartola não tinha vontade de chorar e trazia o peito cheio de uma ansiedade obstinada, como um homem comum diante da necessidade. A sua expressão ambígua era a de quem estava pronto a morrer ao virar da esquina.
Sem descer à rua para se despedir do marido, Glória foi a última a lançar‐lhe um adeus de Luanda, já os vizinhos se haviam dispersado para as suas vidas noite dentro. Depois do jantar, Justina deitou‐a pondo‐lhe as pernas em cima da cama, como se carregasse em peso um cadáver. Depois ligou a ventoinha, apagou a luz e saiu do quarto. Tapada com um mosquiteiro, já o avião levantara voo, Glória fechou os olhos, apertou a camisa de noite contra o peito e disse em voz alta “até amanhã, Papá” sem se permitir soltar uma lágrima, mas pressentindo também que vira o marido pela última vez.
Aquiles nunca tinha andado de avião e nunca vira ao vivo tantas mulheres brancas tão bem penteadas como as hospedeiras do voo em que seguiram para Lisboa. Sem conseguir sentir o calcanhar esquerdo, e ao ver que o pai adormecera enrolado como um bicho‐de‐conta, a impressão de que não era ele quem estava aos cuidados do pai, mas Cartola quem estava nas suas mãos, subiu‐lhe à cabeça num pavor. Aguardada toda a vida, a partida parecia‐lhe agora rápida demais para que tivessem pensado em tudo. Quem os receberia? Onde dormiriam? Foi‐lhe claro naquele instante que não viajavam para Portugal, mas para sempre.
Sobrevoavam o Deserto do Sara quando, de cabeça caída sobre o peito, o pai lhe pareceu um velho pela primeira vez, o que apenas acentuava o facto de ter o calcanhar dormente. Que faria ele com aquele homem, se nem conseguia andar direito, nem tão‐pouco conhecia Lisboa senão das histórias contadas pelo pai, aventuras em que um Rossio de sonho desaguava num rio de dúvidas e subia em sete colinas apenas de mistério, vigiadas por um castelo todo interrogativo? “Papá, como é mesmo Portugal?”, perguntou‐lhe então, acordando‐o, incapaz de suportar ver‐se sozinho no que lhe parecia um pesadelo abafado, ruidoso e mal iluminado. Com uma frescura reconfortante, o pai abriu os olhos e fez um compasso de silêncio. Deu‐lhe uma festa carinhosa no cabelo. “Olhe lá, menino Aquiles, você alguma vez viu o deserto? Aproveita ainda este voo intercontinental que os seus conterrâneos não passaram do porão do paquete Pátria. Goza ainda as vistas.”
O filho olhou pela janela para as cordilheiras de areia e extensas planícies a perder de vista. O avião parecia planar sem combustível num éter luminoso. Coçando a perna esquerda com nervosismo, o miúdo desejou em silêncio que a imagem esfumada se tornasse nítida, enquanto as hospedeiras iam e vinham nos seus carrapitos despachados passando as unhas vermelhas pelas costas dos assentos sempre a contar quantos passageiros iam a bordo. Sentiu um nó na garganta. Mas, virado para o lado, Cartola já ressonava de novo, arqueando os lábios num sorriso apatetado.
Ninguém os esperava no aeroporto, mas era Portugal. Cartola tinha em Lisboa um ou dois conhecimentos com quem se cruzara no passado. Fora um deles, um dr. Barbosa da Cunha, obstetra de Coimbra com quem trabalhara em Moçâmedes havia duas décadas, que intercedera junto da Embaixada por um quarto na Pensão Covilhã, à saída do Hospital Ortopédico do Alvor, onde se iniciariam os tratamentos ao calcanhar de Aquiles daí a um mês.
Dentro de um táxi, com o olhar curioso de duas crianças, viram Lisboa pela primeira vez. Pareceu‐lhes pequena e escura. Caía uma chuva miudinha. Aquiles colou o nariz à janela do banco de trás e um coração feito com o dedo apareceu no vidro embaciado.