Daniela Fernandes Alarcon é doutoranda em antropologia social (Museu Nacional/UFRJ) e mestre em ciências sociais (UnB). Desde 2010, investiga o processo de recuperação territorial realizado pelos Tupinambá [nota 1] da Serra do Padeiro, no sul da Bahia. Sua dissertação de mestrado, orientada por Stephen Grant Baines e premiada pela Sociedade de Antropologia das Terras Baixas da América do Sul (Salsa), deu origem ao livro O retorno da terra: as retomadas na aldeia tupinambá da Serra do Padeiro, Sul da Bahia. Numa definição preliminar oferecida pela autora, pode-se dizer que as retomadas de terras consistem em processos por meio dos quais coletividades indígenas recuperam áreas tradicionalmente ocupadas que se encontram em posse de não indígenas.
Em 2004, os Tupinambá principiaram às retomadas de suas áreas. No mesmo ano, o Estado brasileiro deu início à demarcação da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, que se estende por porções dos municípios de Buerarema, Ilhéus, São José da Vitória e Una. Entretanto, até o momento, o processo demarcatório não foi concluído, e enfrenta uma brutal oposição dos poderosos locais. [nota 2]
A obra de Daniela Alarcon – que também realizou pesquisas junto a povos indígenas e ribeirinhos no oeste e sudoeste do Pará, analisando tanto formas de esbulho como a mobilização desses grupos em defesa de seus territórios e modos de vida –, soma-se ao competente trabalho que a editora Elefante vem apresentando nos últimos anos, dividindo o catálogo com nomes de peso como Silvia Federeci e bell hooks. A publicação de O retorno da terra é um irrecusável convite para que mais pessoas conheçam – e se engajem – na inspiradora luta dos Tupinambá da Serra do Padeiro.
Sua graduação foi em comunicação social, com habilitação em jornalismo, na USP. No curso, você desenvolveu uma pesquisa frequentemente citada sobre a fotógrafa Alice Brill. Como a Serra do Padeiro entrou na sua trajetória acadêmica?
Em 2010 eu morava em Brasília e trabalhava na Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Pela Secretaria eu participava de algumas instâncias relacionadas aos direitos das mulheres indígenas. A primeira pessoa que conheci da Serra do Padeiro foi a Glicéria Tupinambá, que se tornou uma interlocutora importante na minha pesquisa. Eu a conheci em Brasília, numa reunião da Comissão Nacional de Política Indigenista em que ela denunciava as violações que o seu povo vinha sofrendo. Nos encontramos em algumas outras reuniões, e eu fiquei muito impactada com esses relatos. Até então, aquele era o momento auge da criminalização dos Tupinambá. (Depois viriam outros ainda piores!) A própria Glicéria seria presa pouco tempo depois de nos conhecermos. A partir desse primeiro contato e da percepção de que aquela era uma situação dramática, de uma luta muito aguerrida por recuperação territorial que estava sofrendo uma brutal repressão, achei que poderia me aproximar dos Tupinambá e contar essa história de alguma forma.
Em outubro de 2010 eu visitei pela primeira vez a Serra do Padeiro, que é uma das aldeias do território tupinambá. Até ali, minha relação com a luta indígena era muito indireta. Antes de me mudar para Brasília estava fazendo uma segunda graduação, dessa vez em história (mas que acabei interrompendo com a mudança). No curso, eu participava de grupos de pesquisa relacionados ao período colonial e pré-colonial, principalmente sobre Mesoamérica e Andes. Era uma literatura totalmente diferente, mas que tinha relação com o universo indígena. E eu sempre tive muito interesse pela situação contemporânea desses povos. Em todo caso, não tinha uma entrada acadêmica até então. Foi nesse período em Brasília, sobretudo por estar envolvida profissionalmente nesse cenário, que percebi que gostaria de estudar com povos indígenas na intersecção entre história e antropologia, numa perspectiva contemporânea. Ou seja, gostaria de estudar as lutas e os enfrentamentos que esses povos travam no presente.
Na visita à Serra do Padeiro, manifestei aos Tupinambá meu interesse em desenvolver a pesquisa. Eu ainda não tinha me inscrito na seleção do programa de pós-graduação, mas sabia que, de alguma maneira, gostaria de narrar o processo de retomada. Com a aprovação por parte deles, saí da Serra do Padeiro muito convicta de que era possível fazer uma pesquisa interessante, rigorosa do ponto de vista acadêmico e que se comunicasse com o que eles estavam fazendo em termos de ação política.
Pode apresentar de forma bastante resumida o que são as retomadas? Para as pessoas com pouco (ou nenhum) contato com as lutas indígenas que lerão esta entrevista.
Primeiro, é preciso ter em mente que os Tupinambá tinham um território tradicionalmente ocupado, pelo qual circulavam de acordo com suas próprias noções de territorialidade. Esse território foi esbulhado com o avanço das fronteiras. No caso dos Tupinambá, isso ocorreu principalmente no final do século XIX. Conforme eles foram sendo expulsos de suas terras pelos fazendeiros, alguns ficaram ilhados nos pequenos sítios que conseguiram manter, ao passo que outros foram para a diáspora. Nos anos subsequentes à Constituição de 1988 – um documento importante por resguardar uma série de direitos dos povos indígenas –, os Tupinambá iniciam um processo de reorganização. É quando eles pleiteiam que o Estado reconheça os seus direitos territoriais. Em 2004, constitui-se um grupo de trabalho, iniciando os primeiros estudos da Funai para o processo de demarcação da TI. Em 2009, o Estado publica o relatório, reconhecendo uma área de cerca de 47 mil hectares, com mapa delineado e fronteiras definidas. Desde 2012, o processo está parado no Ministério da Justiça. E já houve a fase conhecida como contraditório, que é quando qualquer indivíduo ou grupo que tenha algo contra a demarcação pode se manifestar. Isso já ocorreu; as contestações já foram analisadas e todas foram indeferidas. Então, já não restam dúvidas de que a área é de ocupação tradicional dos Tupinambá. Mas o próprio recurso legal, por meio do Estado como garantidor de direitos, viola o ordenamento dos prazos. Por isso, os Tupinambá decidem agir, entendendo que só pela ação direta recuperarão o território que lhes é de direito. No livro, eu dou maiores detalhes de como acontecem as retomadas; que são retomadas não apenas territoriais, mas também de muitas memórias, já que as áreas remetem aos troncos velhos, ou seja, aos antepassados. Com o retorno da terra eles podem voltar a viver de acordo com seus modos de vida, praticar sua religiosidade, produzir e organizar sua vida em várias frentes. Se antes eles passavam fome ou trabalhavam em condições análogas à escravidão, espalhados por todo o país, agora os parentes começam a voltar. Voltar e se organizar para ter melhores acessos à saúde e educação.
É um amplo processo social que eles põem em marcha quando passam a retomar as fazendas. Por isso é tão difícil explicar em poucas palavras o que é uma retomada. Porque se pode dizer: “ah, eles ocupam o território e passam a viver e produzir ali”. Mas isso é apenas uma parte da história, já que cada ação de retomada tem repercussões muito profundas, envolvendo um processo político com muitas camadas. De maneira geral, é pensar um projeto coletivo que tem o território como condição básica de existência; um projeto para uma coletividade que é unida por laços de parentesco e de compadrio, unida com os mortos e também com os encantados, as principais entidades da cosmologia tupinambá (e que eles entendem como os donos da terra). As relações que eles estabelecem com os encantados é capaz de quebrar uma ideia muito disseminada na esquerda e em alguns outros setores da sociedade: a de que a religião imobiliza e impede a ação social, quando para eles é justamente a religião que empurra para ação. Tudo na Serra do Padeiro é atravessado por essas entidades. Numa retomada, por exemplo, os encantados são os primeiros a entrar nos territórios que serão ocupados.
Como é estudar um tema de tamanha relevância social que muitos ainda tratam com preconceito e objeção? Em O retorno da terra você analisa a nefasta atuação da imprensa em relação aos Tupinambá. Deveria dizer que os textos analisados por você são surpreendentes, mas a prática jornalística levada a cabo em nosso país – com as honrosas exceções de sempre – dispensa maiores cerimônias.
Sabe-se muito pouco sobre os povos indígenas, mas todo mundo tem uma opinião para oferecer. Então, às vezes é um pouco aflitivo apresentar os resultados desse trabalho. Por outro lado, por ser um tema que mobiliza paixões, acaba abrindo algumas outras possibilidades, porque as pessoas têm curiosidade e querem saber mais. Já participei de debates que duraram horas, e mesmo assim as pessoas não paravam de levantar a mão para fazer mais perguntas. De certa forma, eu sempre optei por não partir para um embate direto, mesmo quando as pessoas apresentam visões que considero totalmente equivocadas. A gente precisa ter em mente que a historiografia brasileira e o sistema de ensino contribuíram – e ainda contribuem – para uma constelação de visões estereotipadas dos povos indígenas. Eu me lembro de um debate na Universidade Estadual de Santa Cruz em que uma estudante de graduação, moradora de uma área pobre do sul da Bahia, levantou a mão e disse que mesmo percebendo que seu bairro era sempre apresentado de forma estereotipada pela imprensa, ela comungava absolutamente das imagens preconceituosas que essa mesma imprensa veiculava dos indígenas da região. E, segundo ela, aquela conversa lhe ajudara a perceber que o mesmo processo de estigmatização que ela enfrentava enquanto jovem periférica, os povos indígenas enfrentavam também. Isso é sensacional para um pesquisador. Não como uma forma de iluminar as pessoas – de maneira alguma! –, mas de comunicar sua pesquisa para ajudar a desarranjar certezas, estimulando o interesse das pessoas em buscar informações mais acuradas.
A imagem pública dos Tupinambá sempre passou pela imprensa. A Época e a Veja publicaram matérias totalmente problemáticas nesse sentido. Nos veículos locais chegaram ao ponto de convocar a população para um enfrentamento armado. Na minha pesquisa, quando pensei em abrir uma das vias de investigação para o que era publicado na imprensa sobre os Tupinambá, e mais especificamente sobre as retomadas, foi justamente por perceber que as pessoas da região não iam até a Serra do Padeiro, mas formavam sua visão pela imprensa. Hoje, isso mudou bastante, uma vez que as lideranças têm mais alcance e circulam mais. Um dos exemplos é o cacique Rosivaldo Ferreira da Silva, o Babau, que se tornou uma liderança bastante conhecida.
Ao longo do livro, é possível perceber o uso de diferentes estratégias de pesquisa. Embora a etnografia seja o seu elemento central do trabalho, você realiza uma análise documental de grande fôlego. Como foi o processo de encontrar a metodologia necessária para narrar essa(s) história(s)?
Parti, em primeiro lugar, do fenômeno social que eu queria analisar. Um fenômeno profundamente complexo e que ainda está se desenvolvendo. Desde o início, eu percebi que estava se formando uma enorme quantidade de fontes, com matérias de jornais e documentação cartorial, judicial, policial etc. Entendi que seria preciso trabalhar com fontes heterogêneas porque, combinando essas fontes, eu conseguiria de alguma maneira cercar o meu objeto de pesquisa. Por um lado, a etnografia foi o método central, procurando entender os conceitos e as noções dos próprios Tupinambá para pensar e descrever sua atuação política, através dos sentidos de história e luta empregados por eles. Durante o processo, foi ficando claro para mim que o trabalho demandaria cruzar essas informações com outras fontes.
Um exemplo que gosto de citar é o uso de documentação judicial. Esses dias mesmo eu estava olhando o processo de uma fazenda que foi retomada pelos Tupinambá. No processo eu tenho uma descrição detalhada de como, ao longo de quarenta anos, o fazendeiro formou suas terras, alienando terras de terceiros e inclusive do próprio Estado. Procurei ainda fazer um extenso levantamento dos mapas e da literatura local. Então, atirando para vários lados, foi emergindo uma representação muito complexa. Fui até mesmo no fórum pedir acesso às iniciais das ações possessórias movidas pelos fazendeiros, porque assim não poderiam me acusar de usar apenas “documentação ideológica” a favor dos Tupinambá. Só que mesmo nesses documentos eu encontrava brechas que corroboravam aquilo que os Tupinambá me contavam. Tem um cronista que é muito importante para o Sul da Bahia, o Silva Campos. E ele, que nunca poderia ser pensando como alguém de orientação de esquerda ou qualquer coisa do tipo, conta dos indígenas que andavam “errabundos” nas imediações de Itabuna na década de 1930, em um livro canônico sobre a região. Então, se no cronista que embasa a história oficial eu encontro relatos sobre a incômoda presença de indígenas, como os fazendeiros podem alegar peremptoriamente que os Tupinambá foram extintos no século XVIII (ou no XIX)?
Tem outro exemplo que é ótimo. Durante o processo de demarcação da Terra Indígena, sujeitos contrários a ela produziram alguns contralaudos. Eles contrataram especialistas para produzirem pareceres questionando os estudos da Funai. Uma das pesquisadoras que produziu o contralaudo fez uma dissertação de mestrado muito boa na UFBA, no final da década de 1970, documentando como a formação da propriedade cacaueira envolveu uma série de manobras e mecanismos de esbulho, com a conivência dos cartórios. Ela mostra, de forma bastante robusta, algo que concorda em absoluto com aquilo que os Tupinambá me narraram e que os documentos da Funai exibem. Mas essa mesma pessoa, décadas depois escreve avalizando as propriedades de terra que ela havia constatado que eram problemáticas. Então, o que fiz? Nada além de contrapor ela a ela.
No prefácio ao livro, a Glicéria Tupinambá escreveu algo que considero bastante especial. Ela conta que os encantados tinham avisado que os Tupinambá passariam por tempos difíceis, mas que encontrariam pessoas em quem confiar. Por isso, enquanto você escrevia seu trabalho sobre os costumes e vivências do povo dela, os encantados escreviam a sua história junto a dos povos indígenas. Como é para você, enquanto antropóloga, saber que as pessoas com as quais você pesquisa te consideram como parte da história do povo delas?
Particularmente, não vejo outra antropologia possível. A antropologia tem uma história longa de colonialismo. Uma história bem feia em muitos aspectos. Mas, ao mesmo tempo, tem um potencial crítico enorme, com relação muito próxima e muito íntima com grupos que talvez sejam os mais vulneráveis da sociedade brasileira, e de outros lugares também. Como uma pesquisadora não indígena, poder de alguma maneira colocar as minhas competências a serviço de contar essas histórias é uma realização enorme – acadêmica, política e pessoal. Admiro muito os Tupinambá e tudo aquilo que eles fazem. Esse foi um encontro muito feliz e que já dura quase dez anos, praticamente um terço da minha vida. Se estamos vivendo um processo político em que nos acostumamos com as frequentes derrotas, é muito importante perceber como a estratégia dos Tupinambá é bem-sucedida.
Eles conseguiram muita visibilidade, e com isso atraíram a ira de pessoas muito influentes regional e nacionalmente, pessoas que têm terras naquela região e são muito conectadas às principais lideranças do agronegócio. Pelos sobrenomes, percebe-se que são os descendentes dos coronéis do cacau. Grande parte do Judiciário e do poder público local é ocupada por esses descendentes. Alguns dos meus interlocutores foram torturados com choques elétricos pela Polícia Federal. Isso foi comprovado pelo Instituto Médico Legal. Em 2017, fui indiciada por minha atuação acadêmica numa Comissão Parlamentar de Inquérito, destinada supostamente a investigar desvios e crimes cometidos por antropólogos e servidores públicos, principalmente da Funai e do INCRA. A bancada ruralista e outros setores do parlamento levaram adiante essa iniciativa. Segundo a CPI, esses pesquisadores inventaram indígenas e quilombolas, criando territórios de forma artificial. Então, eu fui dormir numa noite como antropóloga e acordei como criminosa. Meu indiciamento foi por calúnia, esbulho possessório, incitação ao crime, associação criminosa, falsidade ideológica e até mesmo improbidade administrativa, sendo que nem funcionária pública eu era. A CPI acabou arquivada, mas essa resposta virulenta mostrou o quanto estávamos incomodando.
Como pesquisadora, eu não tive outro jeito a não ser seguir em frente. Poder contribuir para que a luta dos Tupinambá seja conhecida e documentada é um imenso privilégio. Então, o que eu posso te responder é que eu não vejo outro modo de fazer antropologia, porque é esse o potencial desestabilizador da disciplina.
NOTAS
[nota 1] O emprego de “Tupinambá” com maiúscula é um etnônimo, usado para referir-se às pessoas. Com minúscula (“tupinambá”) é um adjetivo, referindo-se a situações, objetos e outros elementos não humanos relacionados a esse povo.
[nota 2] Em matéria divulgada no último dia 28, após o fechamento da edição de novembro do Pernambuco, o site Intercept Brasil revelou que o Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) fez pressão de forma oficial (o que é inédito) para que a Funai encerrasse o processo de demarcação da TI de Olivença, território ancestral dos Tupinambá da Serra do Padeiro, para construção de um hotel de luxo pelo grupo português Vila Galé (veja mais informações aqui). Autoridades estaduais e municipais da Bahia apoiam esse processo de espoliação dos indígenas. Mais informações também nestas matérias dos sites do Conselho Indígena Missionário (Cimi) e do jornal português Expresso.