Raul Seixas (1945-1989) foi um dos artistas mais influentes da música brasileira. Escreveu de tudo um pouco. Teve 312 músicas registradas em seu nome e sua discografia transita entre gêneros diversos como country, baião, marchinha, forró, folk, brega, xote, xaxado, rock. Ícone contracultural, o “Raulzito” tinha essa imagem transgressora, que é trazida de volta à luz pela biografia Raul: não diga que a canção está perdida (Todavia), de Jotabê Medeiros (foto).
Nesta entrevista por email ao Pernambuco, Medeiros pensa a retomada da figura contestadora de Raul no atual contexto político, comenta a possibilidade de Raul ter denunciado Paulo Coelho à ditadura e fala de suas pretensões ao lançar o livro.
Jotabê Medeiros é formado em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina e a biografia de Raul Seixas é a sua terceira obra. Escreveu também Bisbilhoteiro das galáxias (Editora Lazuli) e a biografia Belchior: apenas um rapaz latino-americano (Todavia). Atuou como jornalista na Folha de S. Paulo, n’O Estado de S. Paulo, revista Veja.
Nos dois livros mais recentes você optou por biografar figuras emblemáticas que se relacionam de certo modo. Belchior e Raul tiveram vidas marcadas por rupturas, por conflitos geracionais, pela contracultura, ficaram fora do circuito do “tropicalismo adocicado” e “inverossímil” à realidade que o país vivia – como dizia Belchior – que existia na época. Por que biografar esses artistas, especificamente?
Foi um tipo de coincidência, eu diria. Belchior era um artista pelo qual eu nutria grande afeto pessoal, tinha me alimentado emocional e intelectualmente pelas suas canções na adolescência. Raul foi um desafio que surgiu. Eu sabia, obviamente, que suas trajetórias tinham se roçado, que chegaram a ser antagonistas, de certa forma. Mas a admiração pelos dois não é diferente da que eu alimento por uma série de outros artistas: Roberto Piva, Arnaldo Dias Baptista, José Agrippino de Paula, Torquato Neto, Jeff Buckley. Artistas que exploraram limites de uma forma que arrastou suas próprias existências. Também me interessava abordar a forma como Raul e Belchior falaram às grandes multidões coisas que só eram reservadas, tradicionalmente, às elites intelectuais: Nietzsche, concretismo, cinema neorrealista, Kurosawa. Eles traficaram grande informação para públicos massificados.
Você disse em outra entrevista que existem mais de sessenta biografias de Raul. Houve, da sua parte, a intenção de trazer um olhar novo para Raul Seixas ou para sua obra?
Sim, tive essa pretensão. Todos os livros que foram escritos são importantes de alguma forma, mas eles tratam de aspectos da obra e da vida do artista, não de sua totalidade. Então, eu tentei escrever um livro que abarcasse toda a complexidade de sua trajetória. Outra intenção foi que não ficasse restrito ao universo dos admiradores e fãs, mas que pudesse ampliar essa compreensão para outros públicos leitores.
Para escrever sobre Belchior, você disse em entrevista ter pesquisado sobre ele durante um ano e meio. Quanto tempo durou a pesquisa sobre a vida e obra de Raul? Quais foram os seus maiores impasses na reconstrução da vida do Raulzito?
Belchior foi uma pesquisa de dois anos. Raul, de um ano e quatro meses, aproximadamente. Para mim, chegar a uma conclusão sobre as canções e os discos foi a parte mais difícil, porque exigiu que eu os visse em um tipo de inserção histórica, compreendesse o período em que foram feitos, as mensagens, os artifícios tecnológicos. A parte biográfica foi muito facilitada pela excelente memória dos personagens que circundaram Raul durante sua vida.
Em Raul: não diga que a canção está perdida, há o caso relacionado a Paulo Coelho, que teve forte repercussão. Em uma rede social, Paulo ora falou desse “segredo”, depois disse suspeitar das provas e que você “só queria vender o livro”. Na minha leitura do seu trabalho não vi acusação contra Raul, mas sim uma possibilidade que se apresentou na sua apuração. Pode comentar essa possibilidade e a repercussão dessa história?
Claro. Paulo Coelho foi o mais importante parceiro de Raul. Mas, após o incidente de sua prisão, em maio de 1974, essa parceria foi minguando, foi sendo recheada de confrontos e culminou com o afastamento dos dois. Li os livros nos quais Paulo menciona o episódio, e também fui atraído pelo artigo que ele escreveu para o Washington Post este ano. Havia ali vestígios de uma mágoa que era preciso equacionar. Paulo então chamou minha atenção para um documento que havia numa tese de doutorado. Mas não tinha certeza de sua existência, supôs que era falso. Eu me dispus a ir atrás e o encontrei no Arquivo Público do Rio de Janeiro, em Botafogo, entre os documentos da Polícia Federal da época. Fotografei e o enviei a Paulo. Naquele momento, eu fiquei tocado por aquela possibilidade estar se materializando. Paulo então abriu sua suspeita, foi sincero como não tinha sido antes. Mas, na avaliação final que fiz do documento e dos outros documentos que encontrei, não achei que pudesse sustentar uma afirmação dessa dimensão, era uma coisa inconclusiva. Entretanto, a suspeição era real e era preciso revelá-la.
Para você, “retomar” a imagem de Raul enquanto figura transgressora traz algum sentido político em relação ao período assombroso em que vivemos?
Sim, faz total sentido. Raul é um dos artistas mais coerentes da música brasileira, jamais se distanciou dos princípios que nortearam seu trabalho. Mesmo sendo eclético, era sempre sarcástico e crítico, sempre independente e livre. Isso é mais que um exemplo, é um manual inteiro de como se portar em tempos de estrangulamento das liberdades, de cerceamento dos direitos.