Em outubro, a coluna do jornalista Ancelmo Gois (O Globo) anunciou que a poeta americana Elizabeth Bishop (1911-1979) seria a primeira homenageada estrangeira da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Chegamos a compartilhar a notícia nas redes sociais do Suplemento Pernambuco. No dia, a assessoria de imprensa do evento pediu que apagássemos a postagem. A assessoria não confirmava a informação do colunista. Mas acabou que Bishop será a homenageada da festa, que ocorre de 29 de julho a 2 de agosto do próximo ano, com curadoria de Fernanda Diamant.
Conversamos com o poeta, tradutor e professor Paulo Henriques Britto (PUC-Rio), responsável pelas traduções mais famosas da autora no Brasil, sobre a homenagem da Flip, a relação entre Bishop e João Cabral de Melo Neto, e também o cenário político brasileiro.
Elizabeth Bishop é a primeira autora estrangeira a ser homenageada na Flip. O anúncio da homenagem chega num momento de forte tensão política e Bishop é uma autora que viveu no Brasil em momentos também tensos, como o da ditadura militar. Bishop não era muito interessada em política, mas tem a sua famosa frase famosa sobre o golpe de 1964, de que havia sido “uma revolução rápida e bonita”. Como você observa essa homenagem para a autora dentro desse momento do país?
Como você mesmo observa, Elizabeth Bishop não era uma pessoa ligada em política, e sua adesão ao regime militar se deve exclusivamente ao fato de que ela estava casada com uma pessoa muito próxima a Carlos Lacerda [nota da edição], um dos líderes civis do golpe. Imagino que seja apenas uma coincidência infeliz a homenagem vir justamente no ano em que assumiu o poder no Brasil um governo de extrema-direita, que só não é tão truculento quanto a ditadura militar, ou até mais, porque existem hoje, na nossa precária democracia, instrumentos que impedem nossos atuais governantes de dar total vazão a seu ressentimento doentio e seus instintos sádicos e destrutivos.
O próximo ano é marcado, também, pelo centenário de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), poeta que Bishop chegou a traduzir. É possível traçar um paralelo da obra desses dois autores?
Sim, há de fato algumas semelhanças entre Bishop e João Cabral. Os dois pertencem à primeira geração de poetas que, em seus respectivos países e idiomas, se formou sob o impacto da primeira geração modernista, na época já canonizada até certo ponto. Bishop teve como principal mentora intelectual — e “mãe” que foi preciso assassinar — Marianne Moore, enquanto Cabral teve que conviver com a presença esmagadora de Drummond. Ambos conseguiram enfrentar o desafio de formar suas vozes autorais sem se deixar sufocar pelos gigantes que os haviam antecedido. Podemos inclusive encontrar paralelos na obra dos dois: Bishop reagindo a The fish, de Moore, com um poema de título idêntico mas de sentido profundamente diferente, como já apontei num artigo; Cabral produzindo Os três mal amados em resposta à famosa Quadrilha drummondiana.
Bishop tem no poema Uma arte algo como uma assinatura poética. Trata-se de um poema sobre perda, que reflete muito a vida nômade e de tragédias pessoais que viveu. Quais seriam as melhores chaves para se entrar na obra da poeta?
Há muitas maneiras de se ler a obra de Bishop. A chave autobiográfica é sem dúvida uma delas, muito embora ela não seja de modo algum uma poeta confessional; e a relação dela com o Brasil é, para nós brasileiros, um ponto de partida quase inevitável. O diálogo com a geração de Eliot e Moore é uma outra possibilidade, como já comentamos. Em particular, interessa-me o modo como ela trabalha formas poéticas tradicionais sob o impacto direto do Modernismo, utilizando uma linguagem absolutamente atual e coloquial mesmo ao trabalhar com formas fixas tão antigas quanto o soneto, a vilanela e a sextina.
* [nota da edição] Britto refere-se à arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (1910-1967), com quem Bishop foi casada nos anos 1950 e 1960. Lota trabalhou com Carlos Lacerda quando este foi governador do antigo estado da Guanabara (1960-1965).