A escritora Nara Vidal, até o romance Sorte (Editora Moinhos), se voltava à produção de contos. O texto curto, a quebra pela brevidade, é também parte da identidade de Sorte (finalista do Oceanos). Apesar do opção pelo abrupto, a autora logrou em condensar no romance (de apenas 100 páginas e capítulos que raramente ultrapassam duas) uma cadeia de temáticas diversas. O livro reflete a falta de pertencimento do corpo, da terra e das decisões em meio à diáspora irlandesa para um Brasil que ainda vivia sob o leme escravocrata. É, sobretudo, uma história sobre sortes perdidas.
Nessa conversa com o Pernambuco, Nara falou um pouco sobre a sua trajetória literária, sobre o recorte histórico que ambienta o novo romance e explorou algumas nuances da “sorte” que intitula o livro.
Até Sorte, além dos livros infantis, você se debruçou em suas produções contísticas, com A loucura dos outros (Editora Reformatório) e Lugar comum (Editora Pasavento). No que ganha Sorte no formato de um romance?
Acho que isso tem a ver com a história a ser contada e para quem eu quero contá-la.
Os infantis, dificílimos de escrever, vieram por causa dos meus filhos. Claro, isso é completamente pessoal e específico para mim, mas eu sei que não teria escrito infantis se não tivesse passado pela experiência da maternidade. Eu escrevi dois livros para adolescentes (o segundo saindo agora neste mês pela Editora Dimensão) e esse eu sei que não dependeu dos meus filhos, mas com a reminiscência que ainda aflora daqueles anos e que ainda não foram apagadas. Quando coloco qualquer referência da minha própria infância na minha escrita, os trabalhos não são infantis, são adultos com uma característica melancólica e até romântica. O Lugar Comum foi isso. Eu acredito que escrever seja diferente de continuar a escrever e continuar é difícil. Para mim, o livro que se seguiu, A Loucura dos outros era praticamente a rejeição do enredo de Lugar Comum. Não vejo qualquer sentido em ter uma escrita uniforme com características repetitivas de tema. Aí a ideia de continuar que significa criar e não se enquadrar, mas recusar categorias e padrões. Talvez um leitor mais vigilante consiga ver características comuns na técnica narrativa. Por exemplo: eu busco sempre simplificar a minha escrita. Detesto o uso da erudição por esnobismo, gratuita. Se há uma palavra simples ou difícil para falar a mesma coisa, eu prefiro a simples. Mas eu não gostaria de ver meu trabalho em categorias óbvias de tema e muito menos gênero. Aí entra a questão do romance. Sorte não funcionaria como conto. Havia uma estrutura que eu quis manter e um romance com características de novela me pareceu a forma mais natural de contar aquelas histórias. Eu gosto muito de escrever e ler contos. Diferente do que o leitor menos experiente possa imaginar, o romance para mim não foi nenhum tipo de desenvolvimento a partir do conto. Os dois gêneros têm desafios muito grandes e distintos, e vez ou outra precisam ser abandonados ou abortados. No A Loucura dos outros, o conto "Maria Dulce" era para ser um romance. Mas foi ficando feito um plástico que você estica tanto que fica raso, transparente, sem nada por baixo. Abandonei o que teria sido um romance muito ruim e o conto no qual a ideia se transformou, virou um dos que eu mais gosto no livro. Aliás, ele acaba de ser traduzido para o inglês e em breve vai ganhar publicação na Inglaterra. Algo parecido teria acontecido com Sorte. Apesar de ser um romance bem curto, não teria sido possível contar a história em um conto. Mas tudo depende do que se conta. Os gêneros devem servir esse propósito. Por exemplo, agora eu estou escrevendo um romance que tem como tema central o movimento eugenista no Brasil e sua associação com o nazismo, o fascismo, o racismo e distúrbios mentais. É uma história longa e em torno de um tragédia que acontece, três narradores detalham seus pontos de vista. Nesse caso, o gênero romance me serve para passar essa história adiante da forma mais completa que eu consiga.
Sorte é um romance enxuto – é perceptível a escolha pela concisão. O que representa a brevidade do livro dentro da história que você quer contar?
Você está certo ao observar que foi de fato uma escolha a concisão da narrativa. Sorte tem alguns elementos que talvez escapem a algum leitor, mas eu usei alguns recursos propositais para provocar quem lê com mais atenção. A irlandesa Margareth que conta a primeira e segunda partes tem uma narrativa ingênua. Eu quis que ela falasse ao invés de eu falar por ela. A Mariava que só é ouvida raríssimas vezes e em segredo quando fala com a Margareth não conta a história dela. Ao invés, o final, quando Margareth já morreu e Mariava passa a ser a personagem principal, um narrador conta sobre o destino dela. O que não nos falta são livros de História escritos por homens, durante muito tempo, os únicos que tiveram acesso à publicações oficiais de testemunho. A brevidade em Sorte é a minha forma de falar da história de quem nunca teve a oportunidade de contá-la. É claro que eu poderia ter aumentado a narrativa, escrito o dobro talvez. Mas não é frustrante imaginar o quanto aquelas mulheres poderiam ter sido, as glórias que não viveram, o silêncio que foram obrigadas a carregar, as reivindicações caladas? A Margareth morre depois de ter tido um filho e não ser mãe. A Mariava não tem voz, não tem nada. Ainda assim é um personagem riquíssimo, perturbador e que me toca muito. Ela nunca contou a sua versão. Exatamente como o desconhecimento que nos assola sobre as história dos negros no Brasil, capítulos e capítulos fabricados por elites que não têm qualquer preocupação com a igualdade de oportunidades ou uma narrativa justa. Uma elite que há séculos se empenha em nos fazer esquecer e ignorar os crimes cometidos contra os negros que foram forçados a servir o Brasil e que resultam no racismo evidente que ainda predomina e se propaga no país. O silêncio dessas mulheres na história vazias de referência e futuro resultou de forma concreta numa narrativa curta. A mesma coisa acontece com Ciço e Mané. Passam a representar a população pobre, em Sorte viram o louco e o mendigo. São os moradores de rua que são tratados como anônimos e cujo passado não interessa a ninguém porque não têm futuro. Eu quis fazer uma história que trouxesse potência, mas sem uma conclusão possível, algo que pairasse de forma pesada como a História do Brasil.
Em A loucura dos outros, os contos passeiam pelas vidas de mulheres em seus diferentes desatinos. Em Sorte, pelos olhos da protagonista, vemos também mulheres com seus destinos fadados. Como você pensa essa premência em dar voz às mulheres que explora em suas narrativas?
Honestamente, não faço isso de maneira premeditada. Quando me sento para trabalhar não planejo falar de misoginia ou qualquer injustiça de gênero, mas isso acontece naturalmente. Isso talvez seja a parte mais alarmante. As minhas personagens sofrem abuso, humilhações, preconceitos. Elas também tentam quebrar essa cultura, mas estão expostas e são julgadas. Isso é narrado de forma natural, quando traço uma personagem feminina ela vem com essas camadas porque ainda somos feitas disso tudo contra o qual estamos dispostas a lutar. Mas, eu tento escrever sobre mulheres que são personagens esféricos. Há muito por trás delas. Não são coitadas, apesar de serem vítimas em muitas instâncias. Tenho um romance já pronto, mas que ainda não saiu que é narrado por uma mulher que sofre repressão materna, além de abuso e violência física e psicológica de um homem. Como consequência ela se torna promíscua e psicopata. Ela não deixa de ser vítima também. Eu gosto de explorar esses obstáculos com a profundidade merecida porque há essa complexidade em todos nós.
Quando as personagens, as mulheres falam ou são caladas nas minhas histórias, claro há essa referência à inquestionável urgência de abertura para o nosso discurso de gênero. Em tenho minhas convicções e lutas em comum com a grande parte das mulheres que conheço. Mas a arte, a literatura não podem ser exclusivamente emblemáticas. Há de existir uma sutileza que é muito potente para abrir e mexer em feridas além do óbvio. É preciso utilizar a liberdade que o escritor tem para criar e aí sim, gerar o desconforto do qual a arte é capaz. Em Sorte, por exemplo, cheguei a receber um email de um leitor dizendo que havia na narrativa equívoco de algum fato histórico. Isso é possível, já que eu não escrevi nada mais que ficção. A vantagem de poder escrever é brincar com a verdade e a mentira e passar uma borracha na linha que separa as duas provocando ideias.
O romance tem um pé na Irlanda assolada pelas fomes do século XIX e um Brasil colônia que estava na Guerra da Cisplatina (1825-1828), contra o atual Uruguai. A narrativa passeia pela diáspora irlandesa para o Brasil – história pouco conhecida por aqui –, e discute as “sortes” das mulheres dentro da história – a falta de pertencimento da terra, do corpo e das decisões. Como chegou a esse recorte histórico específico?
Sorte ia se chamar "A casa da vergonha", (e talvez se chame assim em holandês - o romance será lançado pela Nobelman, a mesma editora que publica João Almino na Holanda) um bom título para se referir ao Brasil, além das várias casas na narrativa: a da Margareth, a do Dom Vaz Peixoto, o convento. Mas acho que Sorte envolve o sentido mais amplo dessa ideia de destino, fado como você bem diz. A palavra "sorte" aparece em vários momentos da narrativa e a relação com a questão da falta de pertencimento da terra, do corpo e das decisões está diretamente relacionada à escolha da palavra. Ainda é comum aceitarmos essa cultura de destino no Brasil. Quem nasce pobre, mulher, negro têm a sorte traçada se dependermos de representantes preconceituosos e criminosos que se proliferam pelo país atuando de forma irresponsável ao promover uma nostalgia por tempos sombrios e duros. Como se uma sorte não pudesse ser mudada. Mas, claro, enquanto não houver acesso à Educação de qualidade, essa percepção é alimentada, ganha força e é conveniente a muita gente.
Originalmente, a história não atravessava o Atlântico. Eu me concentrei durante alguns anos apenas na questão dos crimes de sequestro cometidos pela igreja católica na Irlanda. Mas assim que li sobre a imigração irlandesa no Brasil - acredito que apenas dois navios fizeram essa travessia- encontrei um elemento que me fez rever o romance. Quando eu encontrei algumas escrituras de compra e venda de escravos que uma tia-avó passou para o meu pai porque ele trabalhou como professor de História, eu fiz a ligação imediata das mulheres, o racismo, o silêncio das vítimas. Agora era só trazer os personagens da Irlanda até Guarani, em Minas, de onde sou, passando pelo Rio e pela serra em Itaipava.
Ainda na epígrafe, tive uma ideia da “sorte” você reflete no livro. A sorte é o fado; o destino incontornável. Me parece que esse é o fio que liga todas as personagens do livro – os seus destinos irrefutáveis. Apesar dos infortúnios, a sorte, para a protagonista, parece estar no próprio ato de narrar – única escolha possível para ela. Considera isso uma forma de “escrever contra” a história oficial a partir de sua ficção?
Sem dúvida. Essas mulheres foram violentadas, caladas, apagadas da História. Mas eu sei disso e por isso eu escrevo sobre elas.