O trabalho do sociólogo italiano Vincenzo Susca pensa os processos de midiatização do cotidiano, os novos usos do corpo no mundo contemporâneo e as atuais formas de estar juntos na vida em rede. Para ele, mídia torna-se um espaço amplo, que inclui todo o aparato tecnológico que permite a comunicação humana e a transmissão de símbolos, seja literatura, cinema, televisão, artes visuais, internet etc. Susca defende que as tecnologias não operam mais apenas a dominação política, mas antes tornam-se criadoras de mundos possíveis, de espaços de sociabilidade, com práticas de convivência efêmeras e de grande potencial político.
Vincenzo Susca é professor na Universidade Paul Valéry (França). Entre seus trabalhos mais recentes traduzidos no Brasil estão As afinidades conectivas (2019), Pornocultura (2017), este em parceria com Claudia Attimonelli, e Nos limites do imaginário (2007).
A ideia de pornocultura, discutida no seu penúltimo livro, mostra uma mudança em relação à noção de pornografia. Enquanto esta tem a ver com a cultura escrita e o consumo individual, a pornocultura aparece como um “espírito do tempo” contemporâneo, quase como uma tensão entre o privado e público. Que mudanças políticas você identifica nessa passagem da pornografia para a pornocultura?
A pornocultura indica para nós o fim ou, pelo menos, a crise de um paradigma cultural marcado pelo poder do verbo sobre corpo, sobre a carne. No começo era o verbo, e o verbo se tornou carne. Hoje, experimentamos a inversão dessa dinâmica. A pornocultura – metáfora e dispositivo do carnaval generalizado da existência – indica que é a carne que se torna verbo: a carne é a mensagem. É um retorno exacerbado, em um contexto marcado pela cultura eletrônica e pela estetização da vida cotidiana, às emoções e às paixões comuns e sensíveis, contra a abstração prescrita pela cultura alfabética do mundo do livro. Isso acompanha a mudança da opinião pública burguesa e moderna para a emoção pública, na qual a razão não é mais a direção, mas, sim, os sentidos. Ainda não conseguimos conhecer as consequências políticas deste passo. Por enquanto, estamos apenas percebendo uma série de obscenidades manifestadas pelo aparecimento do grotesco na política. A pornocultura está sacrificando o corpo e o modelo no qual nossa cultura se baseia para apoiar o advento de uma nova carne. Este é o resultado tanto do extremo prazer quanto do excesso de violência. A pornocultura é o laboratório mais evidente de uma espécie de matadouro do humanismo, do qual, no entanto, algo está nascendo, para além do indivíduo moderno.
Você afirma que o modo pelo qual os museus são estruturados no Ocidente é responsável por retirar a beleza do mundo, distanciando o cotidiano da estética. Mas o museu também oferece outra relação com as imagens: um tempo mais lento, um consumo menos apressado, menos utilitarista. Vê isso como algo inconciliável?
Claro que se trata de uma provocação. O museu cristalizou no Ocidente a diferença entre beleza e vida cotidiana, elites e massas, obra de arte e público. Funcionou como uma arma leve, mas poderosa, para integrar o corpo social aos valores dominantes, por meio da contemplação estética, e por meio da beleza. Todo prazer experimentado no museu é pago pelo público e reafirma o modelo político--cultural estabelecido. A organização das nossas exposições é feita de tal maneira, que o corpo adora o fetiche artístico, sacrificando seus prazeres sensíveis. Hoje, as instituições culturais estão em crise na medida em que não conseguem mais ser as fontes de beleza. De fato, devem procurá-las em novos lugares: subúrbios, ruas, redes sociais ou onde é celebrada a arte de viver o mundo, no reino do prazer. Enquanto no passado os museus mantinham a vanguarda – eram os principais vetores de valores e códigos estéticos –, hoje eles os perseguem. Paradoxalmente, em uma cultura orientada pelo consumo, pela aceleração e pelo efêmero, os museus nos remetem a formas de experiência mais lentas, abstratas e duradouras. No entanto, é inútil nos enganarmos neste ponto: os museus são governados pelos princípios da indústria cultural, constituem sua última fronteira. Estamos cientes da maneira pela qual lojas de suvenires, bares, restaurantes, eventos festivos e exposições temporárias adquirem valor e espaço. Tudo leva a garantir que até os últimos templos da cultura moderna estejam orientados para os princípios dominantes.
Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda fala de uma herança personalista na política brasileira como característica muito mais afetiva do que racional em relação às figuras políticas, algo aproximado do que entendemos como populismo. Como pensar uma relação com o fenômeno do telepopulismo – que explora a espetacularização do corpo e das paixões, em vez da linguagem austera do político tradicional?
A personalização da política, a lembrança de tradições perdidas, a centralidade das emoções em vez do raciocínio lógico, e a promoção de um relacionamento direto entre o líder e a ultidão são as características fundamentais do populismo. Os elementos inovadores do telepopulismo e, de maneira mais geral, do populismo eletrônico, são, por um lado, a espetacularização da política, ou a encenação de discursos divertidos, lúdicos ou teatrais para o público criado pela indústria cultural; por outro, também é a simulação das formas de participação pública na construção do programa político e dos próprios movimentos sociais. É uma simulação, pois, na realidade, o poder nas mãos dos usuários é sempre limitado ou bem-sugerido, se não diretamente manipulado.
No livro As afinidades conectivas você identifica que a técnica não existe mais para solucionar problemas ou modificar a História, pois ela agora se torna um tipo de linguagem. A esse novo totem contemporâneo você dá o nome de tecnomagia. Pode explorar essa mudança de paradigma?
Hoje, a técnica deixa de ser a arte do logos, o instrumento da lógica, a ação no mundo. A tecnologia torna-se tecnomagia, totem em torno do qual tribos, nuvens e redes contemporâneas experimentam um tipo de êxtase místico que é ao mesmo tempo pura vibração ao redor da comunidade e foge para algo maior que ele próprio. A conexão nascente dessa condição não se baseia mais em um contrato racional e abstrato – o contrato social –, mas em um pacto no qual emoções, paixões e símbolos compartilhados se tornam as novas matrizes do estarmos juntos. Aqui, nasce uma sensibilidade cultural em que o equilíbrio entre razão e significado é revertido para o benefício do segundo, sendo um golpe mortal no paradigma do pensamento racional e abstrato que tem sido o propulsor da modernidade ocidental. A experiência desenvolvida gradualmente na cultura digital revela, de fato, o advento de uma sensibilidade que inaugura uma sinergia original entre a mente e os sentidos, entre a ação racional e o pensamento mágico. A adoração dos vários fetiches tecnológicos e simbólicos que sustentam o cenário cultural contemporâneo envolve um alto grau de êxtase e encantamento, mas também uma consciência dotada de memória e conhecimento altamente refinados.
Sua formação é ligada à Sociologia e seus livros têm um viés interdisciplinar que dialoga com política, comunicação social e estética. Como foi seu percurso acadêmico até chegar nos seus atuais interesses, como internet e redes sociais? E qual a contribuição da Sociologia do Imaginário para pensarmos os fenômenos contemporâneos?
Minha formação interdisciplinar inclui o curso de Ciências da Comunicação, em Roma, e estudos no programa McLuhan Fellow, em Toronto, abordagem que foi fortalecida no doutorado na Sorbonne. Em todas essas ocasiões de sorte, fui ensinado que a abordagem monodisciplinar é limitada, se não cega. A interseção entre a Comunicação e a Sociologia do Imaginário nos permite apreender o elo contemporâneo, mais forte do que nunca, entre paisagens midiáticas e simbólicas, entre a mídia e o vivido. Nossa existência está midiatizada – por isso vivemos na mídia antes mesmo de estar no aqui e agora. Isso implica a conscientização de uma prevalência do elemento técnico sobre o humano, mas também o triunfo da imaginação sobre o princípio materialista da realidade. Trata-se de uma realidade mais real do que a realidade de fato, na qual a verdade universal é substituída por miríades de verdades locais, intersticiais e temporárias, cada uma delas dotada de seu próprio poder e eficácia. A comunhão de um grupo em torno de uma comunicação. São essas as formas transpolíticas que substituem a política representativa à qual estamos acostumados.
Um dos fenômenos mais curiosos da internet hoje é a ideia de cancelamento, quando grupos promovem a reavaliação de figuras públicas por conta de divergências morais, éticas ou políticas. Como vê esse fenômeno?
Vivemos uma fase em que a hierarquia entre o material e o imaterial, o visível e o invisível, o princípio da realidade e a imaginação a favor dos segundos elementos estão mudando. Nesse novo paradigma, a imaginação compartilhada, as imagens conectivas, ou aquelas que chamo “afinidades conectivas”, valem como uma experiência vivida, baseiam a experiência vivida como nunca antes; são o mundo em que habitamos. Isso significa que a proliferação de narrativas e identificações associadas aos vínculos estreitos entre a vida e a internet é, diretamente, a fundadora das formas de existência. Sentir uma emoção, compartilhar um sonho, rirmos juntos, celebrarmos juntos, dançarmos ou simplesmente brincarmos – tudo isso empurra o reino da imaginação para transformar a realidade material à sua própria imagem e semelhança. Significa aplicar a fantasia à vida física, como fizeram as vanguardas artísticas do século XX, mas também apagar o que eles não gostam ou não estão de acordo com a afinidade de conexão que prevalece sobre todos em um certo momento, ou sobre o ambiente em que vivemos, sobre a situação vivida, o instante eterno em que estamos imersos.
A partir do regime contemporâneo da tecnomagia, conseguimos traçar perspectivas para o futuro das tribos que estão conectadas digitalmente?
Não sou clarividente, só posso tentar indicar para onde algumas dinâmicas estão nos levando. Tenho a impressão de que a interconexão com as redes crescerá exponencialmente. Isso implicará, no geral, um retrocesso do ser humano; mas trata-se de um passo de dança, no qual a crise do indivíduo será compensada, ou superada, pelo retorno a formas de participação mágica, de dependência do outro, caracterizadas por novas comunhões, novos erotismos e também por violência. Conviver com o outro implica muitos laços que discordam. Também espero o surgimento e proliferação de formas cada vez mais relativas, situacionais e temporárias de verdade, narrativa e governo.