RG Alex L Coelho 141116 8 2

 

A jornalista e escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho foi correspondente no Brasil pelo jornal português Público entre 2010 e 2014. Deste período, nasceram a coleção de crônicas Vai, Brasil (Tinta da China) e o romance Deus-dará (Bazar do Tempo), ambos ambientados em um Brasil (entre euforia e a possível vertigem do caos) à espera da Copa do Mundo e das Olimpíadas.

Alexandra não pretendia escrever um terceiro livro luso-brasileiro. Quando, sobre a leitura do Deus-dará, Caetano Veloso lhe disse que “falta Bahia no seu livro”, a escritora decidiu escrevê-lo. E o fez em dois meses. Tudo já estava sendo marinado, de certo modo. As memórias de sua moradia no Brasil, as visitas à Bahia, as fotografias... A partir desse processo de autocriação e reconstrução, nasceu Cinco voltas a Bahia e um beijo para Caetano Veloso (Bazar do Tempo), o arremate de sua trilogia transatlântica. Um livro que finda a trinca por onde tudo começou, na Bahia. 

Nessa entrevista ao Pernambuco, Alexandra falou sobre o processo de escritura do livro, sobre os aspectos coloniais que são evocados por ser uma portuguesa escrevendo sobre o Brasil e sobre as impressões do país nas suas diferentes “voltas”. Ao final, aproveitamos sua experiência como correspondente em territórios do Oriente Médio para falar brevemente sobre a tensão que temos visto se agravar nesse início de ano. 

 

A Bahia, como você bem pontua, é o primeiro lugar entre Brasil e Portugal. E você termina a sua trilogia sobre o Brasil por esse “primeiro ponto”, após a frase de Caetano “falta Bahia no seu romance”. E, lendo o livro, a impressão é que se trata de uma obra que surgiu de uma demanda natural do seu percurso. Você pode falar um pouco sobre esse processo? 

Não pensei em escrever esse livro, não o planeei, nem ele se foi formando como ideia. Então, ao contrário do que costuma acontecer, não nasce de uma demanda do meu processo. Nasceu de repente, por causa de Caetano Veloso, creio que de outro jeito nunca existiria. Mas, afinal, eu precisava ter escrito, foi o que descobri. Detalhando. Um dia, cheguei à Casa Ninja Lisboa para uma sessão sobre Deus-dará, meu romance luso-brasileiro, e Pablo Capilé tinha a surpresa de um vídeo de Caetano falando do livro. Nesse vídeo, Caetano repetiu algo que dissera anos antes, quando lera as crónicas de Vai, Brasil, que faltava Bahia. Isto aconteceu numa segunda-feira. Levei uns dias a recuperar do acontecimento que era essa leitura de Caetano, algo prodigioso, meio mágico — sendo ele o artista vivo mais importante para mim; sendo esse romance a coisa mais transformadora que escrevi; e algo que requer tanto tempo do leitor. Até que no sábado, em casa, tive a ideia de um livrinho baiano: título, índice, estrutura. E domingo comecei a escrevê-lo. Eu ia só contar de memória, porque não tinha notas, as quatro vezes em que estivera na Bahia, deixando uma quinta vez em aberto com tudo o que faltava, e sempre faltará. Apenas como se reunisse o pouco que tinha, o que conseguisse extrair da lembrança, para retribuir algo a Caetano. Era isto: reconstituição, retribuição e remate. Escrevi em menos de dois meses, o livro foi publicado logo. O que aconteceu ao escrever, sim, foi descobrir que Caetano tinha duplamente razão. Não só faltava Bahia nos livros que eu publicara — porque Vai, Brasil cobre um período em que não estive na Bahia, e Deus-dará se passa só no Rio de Janeiro — como me faltava a Bahia para atar as pontas. Para rematar a minha história transatântica. O que confirmou como o título, que nascera naturalmente, só podia ser esse, estava certo. Caetano, que é a minha madalena de Proust, neste caso, o meu dendê, deu-me o remate de que eu precisava. Além de tudo o que já me dera.

O livro foi escrito a partir de memórias e de fotografias e “contaminado” pela imediatez do que vivenciou em suas viagens mais recentes. Como pensa essas  influências na criação da forma do texto, que se mexe em várias direções, como crônica e diário de viagem? 

Todo o livro foi escrito a partir da memória, com fotografias como auxiliar, e sem notas, porque não existiam. É o único dos meus livros de não-ficção em que eu não tinha cadernos, porque é o único em que as viagens não foram pensadas para serem escritas. Antes, em todas as viagens de que resultaram livros, havia o propósito de escrever. O que faço em Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso é incluir, no meio de algumas páginas, com uma diagramação distinta do texto central, quatro crónicas que eu publicara no meio das estadias baianas, quando ainda era cronista semanal no Público. Nenhuma dessas estadias foi em reportagem, eu já não fazia reportagens para o jornal sequer, mas um cronista semanal escreve onde está, 50 semanas por ano. Portanto, por acaso, eu tinha quatro crónicas antigas que coincidiram com essas viagens, e decidi anexá-las, cada uma no momento a que se refere, como mais um complemento da memória. Depois lembrei-me de uma crónica sobre Jorge Amado, e também a incluí, com a mesma distinção gráfica, no ponto em que falo do Rio Vermelho. São como recortes de jornal guardados no meio do texto. De resto, todo o livro foi escrito de raiz, cronologicamente, trabalhando a memória de quatro estadias. A quinta volta funciona como uma espécie de epílogo que em vez de fechar abre para o todo, todas as hipóteses, e por isso no lugar da data aparece “promessa”. Um livro planeado sobre a Bahia seria com certeza muito diferente, eu teria ido ao Sertão, passado mais tempo no Reconcâvo, etc. Mas neste não planeei o que incluir ou não, onde viajar ou não. As viagens já tinham acontecido, sem intenção de escrita. Escavei o que ficara delas, cruzando-as com tudo o que levara a elas, dando um beijo a Caetano, e amarrando as minhas pontas. Só isso. E só foi possível escrever o livro em tão pouco tempo porque boa parte marinara na cabeça sem que eu tivesse noção, vinha de trás, da longa pesquisa que eu fizera para Deus-dará, e tudo o que se seguiu à publicação desse livro, incluindo os silêncios ou desconfortos que ele terá gerado. Aliás, tirando a primeira e muito fugaz passagem baiana em 1997, quando eu trabalhava na rádio, todas as minhas voltas à Bahia foram peregrinações pessoais ou viagens ligadas a Deus-dará. Vêm desse romance, que é a peça central da trilogia. Em suma, não pensei escrever esse livro mas ele estava por escrever, no que diz respeito ao meu processo. E, retrospectivamente, tenho pensado: creio que não havia um livro não-académico sobre a Bahia, agora escrito por alguém português. O que terá um significado, dos dois lados do Atlântico. Ache-se o que se achar do que ele diz, este livro abre o seu próprio lugar. Ou redefine, completa um lugar aberto pelos dois livros anteriores.

No livro, o leitor acompanha quatro de suas passagens pela Bahia – a quinta é uma idealização/promessa/retratação, como você mencionou –, que passam por 1997 (primeira década democrática, início do governo FHC), 2016-2017 (segunda e terceira voltas, ambientadas no Brasil pós-golpe) e 2019 (“Bolsonaro presidente”, como você abre o capítulo). Como você pensa essas perturbações/oscilações políticas com que se deparou no decorrer de suas passagens pelo Brasil para a produção do livro e o que elas podem nos dizer sobre o país hoje, tendo em vista que você sempre acompanha o Brasil de perto?  

A quinta é uma promessa, mesmo na brincadeira da retratação do acarajé. Tudo em aberto, como o Brasil. Mudei-me para o Brasil em 2010, morei aí até 2014, continuei a ir e vir. Faz uma década agora, uma década alucinante, euforia e apocalipse, os livros que escrevi são sobre esse arco. Mas a história vem de muito antes e, como portuguesa, foi isso que tive diante de mim, ao relacionar-me com o Brasil. Foi o que procurei escavar, atravessar, até esse livro baiano. Uma história da violência, porém de resistência na alegria. Da invenção prodigiosa da alegria, mesmo. Temos de lembrar isso a cada hora, como uma força, uma presença. O Brasil é uma laranja no Inverno, a cor no frio, o sol no escuro. Não o país do futuro, um futuro que seja nosso. Um planeta.

Sua trilogia foi gestada a partir de viagens ao Brasil. Sendo uma portuguesa, isso traz dimensões coloniais, que estão inevitavelmente marcados nos imaginários atravessados nos dois países. Como pensa essa questão?

Mais do que viagens, ter morado aí quase quatro anos. Uma decisão que tem a ver também com ter passado muito tempo como repórter cobrindo lugares colonizados por outros, do Oriente Médio ao México. Mudar-me para o Brasil, como correspondente, então, foi também querer morar no maior território colonizado por Portugal durante mais de três séculos, um território onde milhões de indígenas foram exterminados, ou escravizados e para onde depois foram trazidos à força entre 4 a 5 milhões de africanos escravizados. Ser diariamente atravessada pela experiência dessa herança. Atravessá-la eu mesma. Se todos os impérios são uma história da violência  — e são — qual era essa história? Que também é a minha, porque se não escolhemos de onde vimos, se não escolhi ser mulher, branca, portuguesa, europeia, posso escolher o que fazer com isso, isso tem um significado. E o que fazer com isso, com a herança, já é a luta de cada um, já é a liberdade. Não estamos condenados a ser o que recebemos, o que não escolhemos. Podemos lutar para fazer algo com isso, em que direcção vamos, para onde vamos. Identidade em movimento, algo que para mim, no Brasil, intersectou a antropofagia ameríndia e Oswaldo de Andrade. Transformação através do outro, o outro como algo que acrescenta, que varia, e não que retira. Movimento. Tudo o que para mim pode ser mais do que pós-colonial, transcolonial. Esta trilogia de livros luso-brasileiros é um caminho. Livros de uma portuguesa no Brasil, sim, mas uma portuguesa que já fora transformada por outros lugares antes de chegar ao Brasil, e que foi transformada pela experiência do Brasil. "Trans" é o prefixo chave, tanto no conteúdo como na forma. O romance, aliás, interessa-me não como um género mas como um transgénero, em que muitos géneros podem confluir, transformando o objecto de cada vez.

Em 2007, você publicou Oriente próximo (Editora Relógio D’Água), resultado de sua experiência como jornalista em territórios do Oriente Médio. Mesmo estando longe do fazer jornalístico propriamente dito, não pude deixar de pedir para que falasse, nesta última pergunta, sobre a tensão entre Oriente e Ocidente – marcada por um “novo medievalismo” e por disputas territoriais em que Estado e “forças de desordem” se confrontam – agravadas nesse início de ano.

O mundo do Médio Oriente/Ásia Central ocupa um espaço longo na minha vida, desde 2001 (depois de Oriente Próximo, publiquei Caderno Afegão, E a Noite Roda e Tahrir). No próximo romance, Levante, voltarei a esse mundo. O dito Ocidente cristão tem no Médio Oriente um berço. É uma relação muito funda, cheia de zonas cegas, e cada vez mais surdas num tempo em que o jornalismo cada vez tem menos dinheiro para ir e contar, e voltar, e ficar. E com isso contam os Trumps, os senhores da guerra, do gás, do petróleo, do minério, das armas, da droga, os burocratas do status quo, e os ayatollahs. Todos eles vivem de largas partes do mundo não terem cara nem voz, lucram quanto menos se souber, e quanto menos souber quem manda. Trump e Bolsonaro são também resultados disso. De como aos buracos escuros da humanidade interessa que eles estejam no poder. Aí entra a arte, sim. Entra a literatura. Não porque substitui o jornalismo ou com ele se confunde (não deve confundir, o jornalismo tem e deve ter regras pré-estabelecidas, a arte, não). Não porque é militância (não é: os militantes tem fidelidades, obrigações, obediências, limites, a arte, não). Mas porque toda a arte está no mundo, age nas zonas cegas e surdas. Toda a arte é recomeço. Toda a arte é uma liberdade.

SFbBox by casino froutakia