Entrevista Carmen Isabela Dias Benassi

 

Carmen Silva é líder do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), integrante da Central de Movimentos Populares (CMP) e da Frente de Luta por Moradia (FLM). Foi conselheira municipal de Habitação e de Políticas para as Mulheres, conselheira estadual de Habitação e conselheira gestora da região da Cracolândia. Nascida na Bahia, mora em São Paulo há mais de 20 anos, cidade em que construiu sua trajetória política. Carmen, assim como seus filhos Preta Ferreira e Sidney Ferreira, vem sofrendo intenso processo de criminalização pela sua atuação no Movimento de Moradia. Com desdobramento das investigações sobre a tragédia do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em São Paulo, foi decretada a sua prisão sob acusações de extorsão e envolvimento com o crime organizado, mesmo não possuindo qualquer vínculo com o movimento responsável por essa ocupação. Hoje, Carmen tem seu Habeas Corpus concedido pela justiça, mas ainda possui restrições para sair de casa e conduzir sua vida normalmente. Essa entrevista se dá nesse contexto, mas também diante da publicação do seu cordel Terra Prometida (2019), publicado na Caixa Pandemia de cordéis (Rexistir), da n-1 edições. Carmen também é autora do cordel Cem dias de exílio, publicado em novembro de 2019, pela mesma editora.


Você quer que eu me apresente?
Sim!
Eu sou Carmen Silva e sou líder do MSTC, Movimento Sem Teto do Centro.

Carmen, pensando na sua vivência e trajetória, como que se deu a sua relação com a escrita?

A minha atuação com a escrita não se dá de agora. Quando Os Jornalistas Livres estavam em fase de criação, eu publiquei vários textos sobre a questão religiosa. Eu fiz um texto no qual tracei um comparativo da Bíblia, em dois momentos, com o passado e nosso tempo atual. E eu fiz essa reflexão naquele período justamente porque essa movimentação religiosa de ódio que estava surgindo no Brasil vinha se aprofundando em 2013, onde as igrejas falavam em nome de um Deus hipócrita, capitalista e que não existe. E eu expliquei sobre isso, já em 2013, quando estouraram as passeatas pelo Brasil e a gente viu a direita tomar conta das ruas.

Então, sobre o nome do cordel ser Terra Prometida, há alguma relação com essa questão religiosa?

Isso. Foi a partir dessa situação da religião ser colocada acima de tudo em 2013 e 2014, durante um impeachment baseado numa bancada que abriu a boca para dizer “em nome de Deus!”, que surge o Terra Prometida, num momento em que eu queria dizer que a religião estava afastando o homem do verdadeiro Deus, pregando uma ideologia de exclusão – repressão e opressão. Depois disso, em 2016, a gente acaba ocupando o prédio da 9 de Julho, pela sua 4ª vez (a primeira foi em 1997, onde eu surgi como liderança), já com uma experiência da Ocupação do Hotel Cambrigde, sabendo que se o movimento de moradia, sozinho, trouxesse cada um para o processo a sua ideologia, nada iria pra frente – ideologia só é boa no início –, porque ela só funciona acompanhada de um objetivo. Então o Terra Prometida vem desse contexto também, onde eu começo a abrir a porta da ocupação e dizer que eu nunca mais queria ser encarcerada, parecia que eu tava adivinhando, porque as pessoas fora do movimento, em volta da sociedade, nos rotulavam do que queriam e nós nunca conseguíamos nos defender. A partir disso, também em 2016, eu faço uma parceria com o Aparelhamento, que juntou diversos artistas, mas também pessoas com caráter técnico e da área da saúde, em uma série de almoços junto à cooperativa da Cozinha 9 de Julho, de onde também começa a surgir a possibilidade de debater a questão dos livros dentro da ocupação e expandir a atuação do movimento. Foi assim que o Peter Pal, da n-1, propôs que a gente realizasse os lançamentos dos livros da editora e também alguns debates durantes os almoços da cozinha. E eu falava muito pra ele sobre os meus textos no JL, onde eu dizia que todos nós tínhamos esse sonho da terra prometida, e aí veio o cordel, numa linguagem justamente para que todos pudessem entender.


Ao longo do cordel, você fala sobre o que foi essa transformação no funcionamento das ocupações, e nos parece que a 9 de Julho é uma das experiências mais exitosas. Como se deu essa construção, já que ela não é uma ocupação convencional?

Foi muito duro, todos acharam um absurdo! Essa ideia começou em 2014 no Abril Vermelho, durante um período de luta consecutiva onde todos os movimentos se mobilizaram pra defender suas reivindicações. Mas eu agi da seguinte forma: convoquei a mídia e abri o nosso maior segredo, os nossos horários, nossa concentração, onde eu iria… E, obviamente, todos falaram que não daria certo e que eu seria presa. Mas não foi o que aconteceu. Com a abertura da mídia começaram as residências artísticas e todos os artistas passaram a frequentar a ocupação, resultando inclusive no filme Hotel Cambridge, da Eliane Caffé. Não tem jeito, é a diversidade que vai nos unir, é o que nos salva.

Como você acha que esse formato das ocupações alterou a perspectiva de quem mora na ocupação? De que maneira a presença dos artistas, dos movimentos, influencia na vida dos moradores?

Alterou a perspectiva porque a autoestima dos moradores foi lá para cima. Eles viram que não eram mais vistos como um zoológico. A gente começou a fazer visitas guiadas e a trazer a academia para dentro da ocupação, principalmente com as faculdades de Arquitetura. E, então, eu comecei a dar aulas no Insper, na Escola da Cidade, depois que eu saí do meu exílio, eu dei aula magna pra juiz, para defensor público... A sociedade já começou a ver o que o Movimento de Moradia realmente deseja: a gente quer levar propostas claras e trabalhar lado a lado com o governo, não ficar à parte do governo. O governo nos teme achando que nós queremos criar um Estado paralelo, mas quem nos obriga a criar um Estado paralelo é o próprio governo. O problema do Estado é falta de escuta. Sempre foi falta de escuta.


Você tem falado bastante sobre o seu exílio, e a gente não pode deixar de falar sobre a criminalização dos Movimentos Sociais, mas em específico da sua criminalização, da sua luta. Como você tem se articulado diante dessa situação?

Essa criminalização também não se dá de agora. A gente nunca deu muita importância, mas em 2008 sofri a mesma coisa: eu fui acusada pelo GAECO (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) junto com o Manoel del Rio, de sermos uma “organização”. Depois, eu sofri o mesmo processo e, em 2018, eu fui absolvida em segunda instância. É aí que vai caindo a ficha – primeiro como um amadurecimento, depois vem a reflexão: “eu estou agindo certo ou agindo errado?”. A primeira coisa que eu tive que fazer no meu autoexílio foi fazer uma autocrítica, e isso eu sempre discutia em seminário: a justiça brasileira incrusta na gente que estamos sempre fazendo algo errado. Aquilo que a gente reivindica como certo é incrustado que está errado. Por exemplo, lutar por moradia da forma que a gente luta, eles dizem que está errado. Mas não estamos. Dentro dessa autocrítica, também vi qual era a minha atitude, qual era a bolha que eu tinha que furar, se eu estava só saindo da bolha e retornando para ela, ou se ela tinha que romper de vez. Então, eu rompi a bolha de vez: abracei as causas e esse é o verdadeiro Deus, é o amor. A minha revolução é o amor. Mas um amor às causas, não aos indivíduos. São várias as causas que a gente tem que pautar, mesmo sem poder abraçar todas. Então comecei a ampliar: pensar no encarceramento das mulheres, como está a família dessas mulheres. Essa vivência que passei me dá maturidade para assumir outros fronts que eu nunca quis. Talvez porque eu furava a bolha e retornava para bolha. Agora a bolha se abriu de vez, rompeu. Outra coisa que me deixava muito apreensiva era a reação dos meus filhos, da minha família. Minha filha Liliane – da qual também pediram a prisão – é pastora da Sara Nossa Terra e aí a gente engaja também um grupo de evangélicos de esquerda. E aqui digo esquerda enquanto luta pela justiça. Se alguém tinha alguma dúvida do que é ser de esquerda, essa dúvida para nós não existe mais. Nessa minha autocrítica a ter um entendimento muito mais amplo do nosso papel como cidadãos. É ter o reconhecimento de que existe um Estado falho e que nós precisamos ter um programa de Estado, e não um programa de governo.

Como você acha que a presença de vários coletivos contribuiu para a articulação do movimento? São várias pessoas no processo, mas quem conseguiu melhor romper a bolha e demonstrar a criminalização que estava acontecendo foi você, a Preta, sua família.

Nós sempre trabalhamos com transparência. Quando a gente formou os coletivos, cada um tinha sua autonomia, ninguém interferia em ninguém. Para todo mundo prevalecia uma devolutiva. Sempre trabalhamos com devolutiva – tanto para o povo e nossas bases, quanto para quem está conosco. Não adianta vir ordem de cima para baixo. Se a gente está em um coletivo, todos do coletivo têm que saber o que está acontecendo. Nunca tive medo de expandir outras lideranças – tanto que o movimento tem outros coordenadores –, tanto que a peteca não caiu, todo mundo se levantou. Nunca tivemos medo de perder esse cooperativismo, essa congruência de coletivos. Todo mundo tem sua autonomia e uma devolutiva entre nós. Essa questão da gente ter uma diversidade horizontal ajudou muito. Sempre fomos abertos: como agimos, como é a nossa forma de luta, quais os locais onde temos que ir. As pessoas do coletivo hoje dizem “minha cabeça é outra”. Um dos exemplos foi o último resultado da eleição do Conselho Tutelar. Pessoas que nunca tinham votado antes, agora foram votar para o Conselho Tutelar, para o Conselho do Parque Augusta. A gente tem discutido, formado vários outros coletivos, estamos levando para dentro do movimento o que discutíamos nas Conferências de Habitação, mostrando para as pessoas que elas têm direito, independente de cor, de sexo. Temos que nos reconhecer como humanidade.

SFbBox by casino froutakia