Entrevista Carmem Negreiros Lucas Benevides abr20

 

 

Em seu tempo, Lima Barreto (1881-1922) era reconhecido por uma “inadequação” da palavra que, longe de um purismo parnasiano, buscava tocar no osso de uma realidade que sentimos e geralmente nos recusamos a pensar. No tempo presente, a obra barretiana ganhou muita visibilidade com a homenagem feita ao autor pela Flip 2017, que criou ambiente para a publicação/republicação de vários trabalhos sobre ele. É um escritor marcado por tratar de temas sociais importantes, mas que também importa por suas inovações estéticas.

Conversamos com Carmem Negreiros (UERJ), autora de Lima Barreto em quatro tempos (Relicário Edições) e uma das maiores especialistas na obra do criador de Policarpo Quaresma. A relevância do livro parece estar no acerto da pesquisadora em lançar, de forma muito acessível, olhares ao como – isto é, que recursos estéticos tornaram únicos os trabalhos do escritor carioca e potencializam a força de suas ficções. Nesta entrevista, Carmem fala sobre a ruptura que Lima Barreto causou no início do século XX e que o torna tão atual: toca em assuntos como feminicídio, patriotismo, urbanização e tensões formais entre literatura e jornalismo.

 

O livro perpassa a obra de Lima em quatro tempos – crônicas, contos, romances e retalhos. É perceptível que as escolhas dos textos do autor aludem sua escrita que punha o social sob juízo constantemente, uma espécie de escrita de acusação. Como chegou nessa classificação dos “tempos” e na escolha dos textos específicos que trabalha no livro?

Este livro nasceu de uma conversa com estudantes do Diretório Acadêmico Lima Barreto, da UERJ, no ano passado. Ali vi a necessidade de apresentar parte da obra do escritor carioca dividindo-a por gêneros e, depois, por temas e aspectos estéticos mais frequentes em diálogo com as tensões da época. A essa divisão chamei de "tempos" por duas razões. Primeiro porque os temas e estratégias estéticas se interpenetram e, segundo, podem ser lidos separadamente. Daí serem “tempos”, crônicas, contos romances e os cadernos Retalhos, formados por recortes de jornais colecionados pelo autor sobre assuntos dos mais diversos que dialogam com as obras literárias, além de esboços de contos, romances e coleção de críticas recebidas a cada publicação de um livro, cuidadosamente separadas e coladas nesses cadernos. Formam, portanto, uma interessante coleção e sugerem o método de trabalho do intelectual e escritor.

Lima Barreto em quatro tempos quer chamar a atenção para os textos do escritor carioca, na variedade de sua forma, na intensidade do embate entre linguagem e novas tecnologias e no diálogo crítico com a tradição literária e cultural.


Sobretudo em suas crônicas, Lima Barreto direcionava seu olhar crítico para o processo de modernização do Rio e para as discrepâncias entre os centros europeizados e as comunidades periféricas que a cidade exibia no início do século XX. É interessante pensar na visão que o autor tinha ainda naquela época, sobretudo quando vemos no que descambou o Rio de hoje. Pode comentar sobre isso?

Lima Barreto explora bem a tensão entre os discursos literário e jornalístico do início do século XX, num cenário de efervescência editorial e intensa vida literária. A crônica foi vitrine e palco desse embate extremamente produtivo que reconfigura o lugar do escritor e da literatura. Tratou de incorporar as novas tecnologias e as tensões da experiência urbana à linguagem literária. Os jornais apresentam aos leitores as inovações que alteram o cotidiano de homens e mulheres e as crônicas atuam como guia para as novas práticas sociais no espaço da cidade. Um misto de leitura agradável com futilidade, absurdo, violência e conversa ao pé do ouvido que produz o efeito dúbio de fascinar e, ao mesmo tempo, produzir um mal-estar e temor social, especialmente frente a indivíduos e lugares. Como seus contemporâneos, Lima Barreto apresenta nas crônicas diferentes modos de ver a cidade, sua gente, sua história.

Soube interpelar o leitor de diferentes maneiras, das provocações à conversa informal; de confissões e revelações pessoais a extravasamento de lirismo; de polêmicas a reflexões sobre filosofia, literatura, política, sobre a imprensa e a vida cultural.

Denunciou muito a desigualdade na distribuição de recursos durante as reformas urbanas que abandonaram subúrbios e periferias. Enquanto alguns cronistas associavam a imagem das favelas ao sertão, como lugar arcaico, bárbaro, ligado ao passado colonial, Lima Barreto aponta os efeitos das reformas urbanas para a sobrevivência dos cidadãos mais pobres, sobretudo a especulação financeira, a carestia e a inflação que impossibilitavam a moradia no centro da cidade e bairros adjacentes, empurrando a população para os morros. Para o cronista, na ótica do poder público o bem-estar social não é prioridade. “Fala-se, por exemplo, na vergonha que é a Favela, ali, numa das portas de entrada da cidade – o que faz a nossa edilidade? Nada mais, nada menos do que isto: gasta cinco mil contos para construir uma avenida nas areias de Copacabana” (Marginália). Questiona também a rápida e violenta substituição de monumentos, valores, costumes e tradições culturais banidos do espaço urbano feito para a circulação do luxo, das novas tecnologias, da moda, da educação para o consumo. Ler suas crônicas nos faz lembrar como reformas, remoções, derrubadas, muitos “bota-abaixo” incorporaram-se à memória da cidade do Rio de Janeiro.

As crônicas apresentam ainda os múltiplos modos de ver a cidade a partir dos deslocamentos do escritor a pé, de bonde ou de trem, registrando a alteração de sensibilidades e sociabilidades. O Rio do início do século XX já experimentava a mediação de imagens vindas do cinema, da fotografia, dos cartazes publicitários, da velocidade dos automóveis e do encanto das mercadorias nas vitrines e nos corpos a desfilar nas principais ruas da cidade. E Lima incorpora nas crônicas o ritmo das reportagens, traz ao leitor a experiência sensorial da velocidade percebida da janela de um trem em movimento, permite que o passado e traços da memória cultural apareçam subitamente na cena observada na banalidade cotidiana; apropria-se das estratégias da imagem para renovar a linguagem e a crônica como gênero. Problematiza o conteúdo e formato dos jornais, reclamando do excesso de notícias policiais, folhetinescas e sensacionalistas e critica a projeção a primeiro plano da vida íntima de anônimos, cujas ações, emoções e opiniões tornam-se públicas, tratadas com relevância por revistas e jornais. “Tipos ricos e pobres, néscios e sábios, julgam que as suas festas íntimas ou os seus leitores têm um grande interesse para todo mundo”, afirma nas crônicas ao lado das críticas à presença de muitas colunas sociais.

Ler as crônicas de Lima, portanto, permite acompanhar o nascimento da cultura midiática no Rio do Janeiro, do começo do século XX, ao lado da carência de moradias, dificuldades e problemas não resolvidos de saneamento, esgoto, abastecimento de água, enchentes gigantescas com as chuvas de verão, alugueis altos, inflação e abandono das periferias à própria sorte ao lado da violência policial. Nada que pareça estranho ao carioca do século XXI.

Muito já se falou sobre as contradições de Lima Barreto quando se fala do papel da mulher na sociedade. Ainda no início do século XX, num Brasil recém-saído do leme escravocrata, o autor já tratava o tema do feminicídio (a exemplo da crônica Não as matem). Pode falar mais sobre essa nuance específica na obra de Lima e de como ela pode nos propor algo em termos de um fazer literário? 

Essa é uma questão complexa e interessante na obra de Lima. Há muita delicadeza no traço de personagens femininas, sobretudo para acentuar aspectos que mostram a educação sentimental de jovens direcionada apenas ao casamento e maternidade, a falta de qualificação para o trabalho e de oportunidades para a educação formal, restrita ao magistério, ao cuidado de crianças e serviços domésticos, especialmente para as mais pobres. Numa das crônicas do volume Feiras e Mafuás, afirma que nas escolas de música “só têm talento musical as moças ricas e bem aparentadas”.

Questiona fortemente a ideologia do amor disseminada em folhetins e melodramas que também aparecem no cinema, as “tais fitas americanas” que, segundo Lima, seriam “ignóbeis fantasias de uma pobreza de invenção de causar pena”. Nessa linha há uma galeria de personagens nas crônicas, contos e romances que interrogam o que é o amor, o que é ser mulher (e como sobreviver!) num contexto cultural extremamente restritivo. São elas Lívia, Olga, Cló, Alice, Clara dos Anjos e a doce Ismênia, que, no mutismo de sua dor, enlouquece aos poucos por não saber responder à pergunta: “Então, quando te casas?”. A cena da morte de Ismênia é emblemática e reveladora da voz oprimida da mulher na sociedade patriarcal. A jovem morre tão silenciosamente quanto vivera, tendo à cabeça a coroa e véu de seu traje de noiva. Imagem do romance Triste fim de Policarpo Quaresma que vai ecoar em muitas outras cenas da literatura brasileira.

No entanto, também podemos ver nos jornais o escritor batendo-se contra o feminismo e suas várias correntes. Quando criticado, defende-se dizendo: “Nunca neguei capacidade alguma na mulher. O meu anti-feminismo não parte do postulado da incapacidade da mulher para com isto ou aquilo; é baseado em outros motivos, mais de ordem social do que de natureza fisiológica ou psicológica”. Na sua concepção, a luta feminista do período não atendia a demanda de mulheres de diferentes classes sociais. As mais pobres não reivindicavam o direito a trabalhar. Deveriam trabalhar para sobreviver como costureiras, cozinheiras, balconistas lavadeiras, operárias em condições extremamente difíceis.

Vale lembrar aqui que as trabalhadoras feministas dividiam-se em dois grandes grupos: as pertencentes às camadas médias, interessadas em maior acesso das mulheres à educação superior, que algumas já frequentavam; e as pertencentes às camadas populares, boa parte delas operárias, mais voltadas para a denúncia dos maus tratos e abusos que sofriam nas fábricas. Estes grupos dialogavam mas, em geral, as pautas sufragistas relacionadas ao feminismo estavam mais voltadas para a ampliação das possibilidades da mulher escolarizada de classe média do que à igualdade de oportunidades para a mulher periférica. Desnível ao qual Lima parecia se atentar.

Muitas vezes posicionava-se de forma absolutamente depreciativa ou indiferente à produção artística, cultural e científica de autoria feminina. E não eram poucas as mulheres atuantes em seu tempo, desde Julia Lopes de Almeida, Albertina Bertha, Chrysanthéme, Bertha Lutz, Chiquinha Gonzaga e tantas mais. Porém, como nada que se refere a Lima Barreto é linear, em 1915 o escritor envia uma carta a Gilka Machado, a poeta mais duramente atacada pelos diferentes grupos intelectuais, afirmando a profunda admiração “a sua completa independência e moldes, dos velhos “cânons” e a sua audácia verdadeiramente feminina”.

Também é interessante lembrar que Lima corajosamente expôs aos leitores o remorso e lamento por ter absolvido em júri popular um uxoricida, nome dado à época ao autor de feminicídio. Daí em diante passa a lutar muito contra o sentimento masculino de posse, que nega às mulheres o direito de escolherem a quem amar, ou desejar (o que justificaria o assassinato em nome da “honra”), e a importância de serem respeitadas na sua individualidade como premissa básica de civilização e humanidade.

Portanto, vemos o intelectual contraditório e polêmico em meio à atmosfera turbulenta de tantas mudanças. Entre idas e vindas, vale observar o embate de Lima Barreto com seu tempo, no confronto entre as novas sensibilidades e a tradição patriarcal na qual fora criado. E, sobretudo, os resultados literários produzidos por tais impasses.

Uma questão marcante em Triste fim de Policarpo Quaresma é o patriotismo “não malicioso” do major e o descaminho – o triste fim – a que esse ideal o levou. A ideia de patriotismo atual no Brasil de hoje, como sabemos, parte de outros princípios (como uso excessivo de bandeiras e hinos nacionais, golpes de Estado, discursos de ódio, negação de identidade cultural etc.). Que paralelo podemos traçar para tentar refletir essa questão a partir desse clássico barretiano no Brasil de hoje? 

Triste fim de Policarpo Quaresma é obra incontornável no conjunto das obras de Lima Barreto e merece leitura e releitura nos dias de hoje. No romance, o escritor chama a atenção para a forma como o nacionalismo se constitui e se apresenta: por meio de narrativas e estratégias discursivas (e isso vale tanto para a Primeira República quanto para o contemporâneo). No começo do século XX, muitos intelectuais idealizaram projetos de nação, tendo a ciência como forte aliada na defesa do sanitarismo, eugenia e branqueamento como soluções para o país. Poucos como Lima Barreto e Manoel Bonfim explicavam os problemas por razões sociais e não por causas biológicas. Toda uma geração de perfil cientificista procurava argumentar junto à sociedade que a experiência republicana representava o momento histórico de “fundação” ou “refundação” do país, junto à regeneração do povo. Num diálogo tenso com o passado histórico, os intelectuais propunham “novas técnicas”, “novo saber”, “nova sociedade” além de “novo governo”. A atmosfera cientificista reunia tendências díspares entre si – de modelos biológicos e etnográficos a naturalismo evolucionista e positivismo francês –, além de organização de institutos e lugares de saber e espaços de poder (como quartéis, prisões, asilos, hospícios) para enquadrar os sujeitos, controlar os riscos na cidade e desenhar um perfil de brasilidade.

Em meio a essa efervescência política, Lima Barreto cria o personagem Policarpo Quaresma, mostrando que a literatura estava entre os discursos fundadores da ideia de nação. A literatura ensinou aos brasileiros em qual espelho eles deveriam se mirar para se reconhecerem enquanto compatriotas, mas nesse espelho não estavam representados os negros, os indígenas, os pobres, as mulheres. Essas são categorias vistas como inferiores e, portanto, deveriam ser higienizadas, tuteladas, embranquecidas e submissas. No contexto da produção do romance, o componente mais forte do discurso nacionalista girou em torno da ideia de raça, argumento pretensamente de saber técnico para justificar exclusão, violência, degradação. A ciência, por meio da medicina, ganha estatuto de instrumento normalizador do Estado (e não era privilégio da realidade brasileira). Hospícios e prisões são reveladores dessa prática, que marca sobretudo corpos negros, como analisa o escritor em Cemitério dos vivos. “Na Seção Pinel, num pátio que ficavam os mais insuportáveis, dez por cento deles andava nu ou seminu. Esse pátio é a cousa mais horrível que se pode imaginar. Devido à pigmentação negra de uma grande parte dos doentes aí recolhidos, a imagem que fica dele, é que tudo é negro. O negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma porção de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem em nosso pensamento”.

Então, no auge dessa euforia nacionalista, com tintas de ciência, Lima Barreto apresenta o seu “doce, bom e modesto Policarpo,” que paga com a vida por concluir que “a pátria era um mito” e expõe ao leitor onde assimilara essas narrativas de nação: nos livros de literatura, de história, nas narrativas de viagens, nas canções e lendas etc. Todos dispositivos discursivos que plantaram “palmeiras e sabiás”, símbolos de uma natureza “exuberante” em nosso imaginário. Discursos que negam a questão estrutural que atravessa a cultura brasileira e trinca a imagem homogênea de brasilidade: a escravidão (indígena e negra), matriz da violência, do autoritarismo no controle de corpos e sujeitos excluídos, estigmatizados, recolhidos compulsoriamente ou expulsos da pátria amada.

Ao expor, nos anos iniciais da República, que a imagem de nação é formada por dispositivos discursivos, Lima Barreto ilumina nossa compreensão da revivescência do sentimento nacionalista hoje. Assistimos a volta dessas narrativas nacionalistas para, em nome de um pretenso interesse coletivo, expulsar, proibir, alienar, subjugar aqueles que não podem figurar como protagonistas no espelho da nação. O elo entre Policarpo Quaresma e nosso presente está nas perguntas – o que é pátria; de que é feita a brasilidade; com qual discurso; pátria para quem – que o protagonista do romance insistia em fazer, cujas respostas mostram a permanência, ainda hoje, de valores herdados da sociedade escravocrata excludente, autoritária e violenta.

A obra de Lima Barreto é marcada por uma “inadequação” da palavra, que, ao contrário de um purismo parnasiano, aludia muito mais uma irreverência no desvio da norma. Como podemos pensar esse rompimento na linguagem que Lima desenvolveu como sua? 

Em geral, a crítica chama a atenção para a “irreverência” e “desvio da norma” como se, no período, essa fosse marca exclusiva do escritor e apenas houvesse o rigor gramatical e estilístico bem definidos de um lado e a rebeldia de outro. Vale pensar que desvio e de qual norma.

É certo que o escritor carioca ficcionaliza os processos de subjetivação e estende os limites entre os gêneros literários para expor as tensões da subjetividade moderna. E dizia: “O que vai de pessoal nos meus pobres livros interessa a muita gente e isso, penso eu, me desculpa”. Introduz na literatura brasileira do início do século XX a problematização da autoria, a apresentação da escrita como experiência tensa e angustiante compartilhada com o leitor, a reflexão sobre a transitividade do real e ficcional, os impasses do narrador/escritor diante de novas tecnologias e complexos processos de subjetivação.

Mas Lima Barreto não está sozinho nesses processos de experimentações literárias. Os primeiros anos republicanos, no Rio de Janeiro, foram extremamente ricos e intensos no debate de projetos, ideias e utopias de matizes diversas (anarquistas, socialistas, comunistas, católicos, nacionalistas extremos, eugenistas, sanitaristas, positivistas, grevistas), na coexistência de tendências estéticas variadas (decadentistas, simbolistas, impressionistas, naturalistas, jornalistas) e numa vida literária marcada por conferências, vesperais, salões, saraus, reuniões em editoras e nas muitas livrarias, além de encontros em confeitarias e botequins para discutir os artigos, polêmicas e notícias veiculados por muitos jornais diários e bom número de revistas semanais.

Talvez a ebulição literária seja a resposta, ou a busca de resposta, dos poetas e escritores ao desafio de produzir literatura diante de formas de entretenimento como a música (modinha nos subúrbios), os primeiros filmes, inventos ópticos diversos, ruas e vitrines; frente à disputa de poder entre vários discursos, a rapidez da informação e impacto das imagens, assim como a luta por funções – e espaço – no interior dos jornais e revistas. Além disso, é preciso considerar a profunda mudança na experiência perceptiva e os paradoxos do incremento da vida urbana. Como reconheceu João do Rio, em A alma encantadora das ruas, nada havia que não tivesse sido tocado pelas emoções da modernidade, “o exibicionismo, a vaidade estas coisas que enlouquecem Sarah Bernhardt e talvez a todos nós, enlouquecem também os presos”. E é o mesmo João do Rio que chama a atenção dos seus contemporâneos para a necessidade de os cronistas incorporarem as novas tecnologias porque a crônica já “evoluiu para a cinematografia”. Nessa mesma direção argumentava Lima Barreto: “Os gêneros que herdamos e que criamos estão a toda hora a se entrelaçar, a se enxertar, para variar e atrair”.

E o que dizer das inovações formais de Gilka Machado ou das crônicas de estilo fragmentário e quase imagético de Orestes Barbosa? Ou ainda da exploração psicológica profunda nos contos de Adelino Magalhães que radicalizam o esgarçamento de espaço e tempo? Da sofisticação de Euclides da Cunha, do diálogo com o mercado de Benjamin Costallat, enfim. Todos à sua maneira buscavam respostas à questão: Pode a literatura resistir e inovar frente à modernização? Escrever qual país e qual linguagem? Quem é e o que é ser brasileiro? Questões que perpassam as escolhas estéticas, densas e problematizadoras, que não podem mais ser enfeixadas em clichês como “literatura sorriso”.

Enfim, a rebeldia às normas não é uma questão exclusiva de Lima Barreto. E em paralelo não se pode mais ignorar ou reduzir a força, irreverência, inventividade e riqueza da produção literária das primeiras décadas do século. Investigá-las e compreendê-las é tarefa a que se dedicam os pesquisadores do Labelle – Laboratório de estudos de literatura e cultura da Belle Époque – sediado no Instituto de Letras da UERJ. 

Lima foi um homem que escreveu contra os nossos equívocos como nação, apesar das contradições. Hoje, o que vemos nas militâncias, nos gritos de denúncias, via-se – mas não se reconhecia como hoje – na obra barretiana ainda no início do século XX. Como podemos pensar no estabelecimento de diálogos que propôs em seu tempo e agora em termos de um fazer literário no Brasil?

Lima Barreto sempre problematizou questões estruturais da cultura brasileira, muitas vezes deixando à mostra seus receios e contradições, mas sem deixar de ser um bom escritor. A denúncia ou a militância, somente, não são garantia para a qualidade literária.

Acho muito proveitoso observar em Lima, e em seus contemporâneos, a coragem para tomar de assalto os espaços da cultura midiática nascente, a audácia para incorporar as novas tecnologias, a disposição para expor-se a novas experiências – em presídios, redações de jornais, cassinos, hospícios cabarés, os vários recantos e horários das ruas – e medir a temperatura das novas sociabilidade e sensibilidade para ampliar os recursos da linguagem literária. Não se intimidaram frente aos desafios e impasses do novo. Nesse contexto, atrair o leitor e oferecer-lhe uma experiência que abalasse os nervos (já tão intensamente abalados pela modernização) junto com o mapa – físico e sensorial – da cidade não era tarefa fácil. Mas escritores e poetas não fugiram do desafio.

Talvez seja esse desafio – de lidar com o novo e, também, fazer falar os silenciados pela tradição literária e cultural – a inspiração que a obra barretiana pode legar aos escritores hoje.

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