A América Latina passa por um momento desalumiado. Assolada por semânticas neoliberais e pelas contradições que carregam cada vez mais presentes em maior parte dos aspectos de nossa vidas, vivemos em meio a um contexto ensejante de ascensão de autoritarismos e microfascismos. Essas questões são representadas em ficções no sentido mais comum, como as da literatura, mas também em outros tipos de ficções: jurídicas, econômicas, acadêmicas.
Sobre esse cenário, entrevistamos Raúl Rodríguez Freire (foto), professor da Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso (Chile). Doutor em literatura pela Universidade do Chile, Rodríguez pesquisa, entre outras questões, o papel das diferentes formas de ficções no jeito como concebemos o presente e o porvir.
Nessa entrevista, vamos de como a literatura e outros discursos podem nos ajudar a pensar o nosso contexto, passamos por uma espécie de genealogia dos momentos de ascensão da lógica neoliberal que vemos descambar hoje e refletimos suas formas (destrutivas) de operar sobretudo dentro dos espaços universitários.
Vivemos um momento de forte tensão política. E fico pensando como a literatura contemporânea nos ajuda a lidar com esse cenário. Livros como A literatura nazista na América, de Roberto Bolaño, por exemplo, ampliam a nossa visão do que são distopias. Como o senhor acha que obras desse gênero nos provocam sobre o cenário quase distópico que vive a América Latina atual?
A literatura nazista na América é um livro maravilhoso e assustador. É o livro mais borginiano de Bolaño e talvez um dos mais políticos. É um dos trabalhos que contam com uma erudição que poucos escritores podem se gabar hoje. Ao mesmo tempo, é um romance que explora o famoso ditado de Walter Benjamin: “todo documento de cultura é, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”. Em A literatura nazista na América, a cultura não é um refúgio dos horrores do mundo; nem pode nos impedir de qualquer catástrofe. Mas eu arriscaria que os escritores que povoam suas histórias assumiram a literatura como entretenimento, não como profissão, e nisso, em Bolaño, existe uma diferença fundamental.
Por razões diferentes, todo e qualquer escritor de A literatura nazista na América entra e sai da literatura como se fosse um produto de consumo e, como tal, descartável. No entanto, a literatura como profissão também não é suficiente. Archimboldi – personagem que atravessa o romance póstumo de Bolaño, 2666 – é um escritor que assume a literatura como um modo de vida. Mas… lembremos que ele alugou uma máquina de escrever, aquela com a qual escreveria seus primeiros livros, a um escritor ou ex-escritor para quem a guerra abriu os olhos, e o fez entender que “escrever era inútil” e que “toda obra que não é uma obra-prima é… um pedaço de vasta camuflagem”. Aponto isso porque 2666 é um romance que procurava tornar o presente desconfortável. De certa forma, ele tem um ar perto de O homem do castelo alto. Aqui, Philip K. Dick conta uma história pós-Segunda Guerra Mundial muito diferente daquela que conhecemos: a Alemanha vence a Segunda Guerra e divide os EUA com o Japão. No entanto, esse mundo que não conhecemos e que Dick inventa completamente é muito semelhante ao que conhecemos.
O que quero salientar é que as distopias de Bolaño são, como em Dick, interpelações do presente horrível que vivemos e, muitas vezes, sem perceber. As mais de mil mortes em Juárez [cidade na fronteira do México com os EUA] refletem essa preocupação. A fronteira de Juárez está cheia de fábricas que montam muitos dos produtos eletrônicos que usamos no dia a dia e isso não parece ser importante para nós, porque, juntamente com o lugar marginalizado que a literatura ocupa no mundo contemporâneo, também perdemos, devido à sua falta, a capacidade de imaginar ou nos colocar no lugar de outra pessoa, e até de nos imaginar daqui a alguns anos, acreditando ilusoriamente, por exemplo, que a mudança climática não é um problema sério e que podemos continuar vivendo como mais ou menos fizemos até agora, sem perceber que estamos esgotando o mundo e a nós mesmos com ele. Porque, embora grandes empresas estejam destruindo recursos naturais, somos nós que compramos os produtos que fabricam.
Bolaño era um grande leitor de ficção científica, mas o que aprendeu com esse gênero não foi, paradoxalmente, a capacidade de criar distopias. Pelo contrário, a força de seus romances reside no que Foucault chamou de “heterotopias”, que seriam maneiras de alterar o mundo em que habitamos hoje. A universidade, em sua forma política e de trabalho, deve então continuar com seus próprios meios, como Bolaño fez na ficção. Dessa maneira, poderá ajudar a inventarmos mundos para além deste que o capital nos impõe.
Em sua linha de pesquisa, o senhor aborda as ficções possíveis (literárias, jurídicas, econômicas) para refletir não somente um mal-estar social, mas também o papel da literatura — uma ficção de certo modo “escanteada” em relação às outras citadas — para o nosso porvir. Como seus estudos dialogam com as recentes inquietações políticas da América Latina?
O interesse pela ficção surge de uma preocupação dupla e concreta: por um lado, temos o que podemos identificar como uma crise nas condições de vida, ou melhor, nas condições que tornam uma vida digna de ser vivida. Aqui é encontrado tanto a ascendência do que passou a ser chamado de neofascismo (embora seja mais apropriado falar em microfascismo) quanto às mudanças climáticas. Nomes como Trump e Bolsonaro surgem imediatamente. Ambos são personagens que governam explicitamente contra a democracia e contra a vida, e para além da vida humana.
Por outro lado, essa crise é ampliada pela dificuldade de pensar ou imaginar um futuro além do capitalismo, um problema que enfrentamos em nível global. Sobre isso o cinema é um bom indicador, pois nos oferece um fim do mundo ficcional induzido por meteoritos, invasões zumbi, aquecimento, resfriamento, ataques alienígenas etc. E se, após um desastre, a vida conseguir continuar a existir, ela se encontrará atravessada por um mundo apocalíptico, do tipo A estrada, de John Hillcoat (baseado no romance homônimo de Cormac McCarthy) ou Mad Max, de George Miller. Agora, esses filmes, por sua vez, configuram um outro fenômeno: o cinema, como uma “cultura do entretenimento” hipermassiva e dominante, é uma pura repetição do mesmo, não como forma, mas como fórmula. É o que explica o sucesso de Velozes e furiosos, assim como das séries e sagas. Em outras palavras, grande parte (há sempre, é claro, valiosas exceções) das produções da indústria cultural atual visa reduzir a contingência e a ansiedade que, dada a globalização, recriam o mundo em que habitamos em uma escala não humana, e o faz nos paralisando diante da brutalidade da intrusão de forças que estão destruindo o mundo, forças humanas e não humanas.
Pensar que lugar a ficção tem nesse cenário é o que me interessa. Mas não entendo por ficção aquilo que é falso, e sim o que significa etimologicamente: fazer, produzir, articular a imaginação com a mão. Aristóteles via a poesia como aquela arte (no sentido técnico) preocupada com o que poderia existir, enquanto a história supunha o que já havia acontecido como um objeto. Agora, essa arte também faz uso, embora não o reconheçam, do Direito e do capital financeiro — este, graças a certas leis, imagina futuros que não beneficiam mais do que os milionários, expropriando-nos da riqueza que produzimos como trabalhadores.
Meu objetivo é mostrar que a ficção literária, completamente golpeada não apenas pelos governos de direita, poderia ajudar a nos livrar do impasse em que nos encontramos. Como o paleontólogo André Leroi-Gourhan (1911-1986) e a cognitivista Maryanne Wolf demonstraram por diferentes caminhos e tempos, a literatura (oral e escrita) desenvolve o cérebro e expande seus poderes. “Podemos nunca voar em um balão de ar quente ou ganhar uma corrida para uma lebre ou dançar com um príncipe até meia-noite”, diz Wolf, mas através dos livros aprendemos que sensações essas coisas produzem. E ao fazê-lo, esquecemos de nós mesmos e começamos a entender o “outro”, imaginando e repensando mundos diferentes dos nossos. Se fazemos isso, aumentamos as chances de um futuro não apocalíptico, não capitalista e nem patriarcal. Por isso, acredita que sem a literatura, a humanidade não terá um porvir.
O senhor acha que as representações de ditaduras em livros clássicos do boom como O eu supremo (Augusto Roa Bastos), O outono do patriarca (Gabriel García Márquez) e A festa do bode (Mario Vargas Llosa) ainda nos ajudam a entender os processos fascistas atuais ou essas obras estariam de certa forma anacrônicas?
Esses romances figuram um contexto do qual estamos bastante distantes, embora eu valorize neles, e muito, sua construção formal, sua estrutura, já que hoje, em geral, há pouca brincadeira ou experimentação com a escrita, além de pouca fuga e excessiva “realidade”. César Aira disse muito bem: “O que não daríamos para recuperar a antiga evasão, em vista do romance atual, ou daquilo que tenho mais em vista do romance atual. Romancistas, e isso se acentua com quanto mais jovens são, ou seja, com o passar do tempo, eles encontram cada vez menos razões para promover uma fuga, apaixonados por suas próprias vidas, contentes e satisfeitos com seus destinos e seu lugar no mundo”. É claro que há certos artifícios na autoficção e na crônica, mas, como acontece no cinema, quando se tornam fórmulas (daí o sucesso de Leila Guerriero [jornalista e escritora argentina], por exemplo), elas estagnam. Eles podem vender muito, mas vender muito não é sinônimo de êxito.
Voltando, há algo nesses romances que é importante resgatar, e isso não tem nada a ver com o que eles narram, mas com a maneira como fazem. A figura do ditador deve dar lugar à figura de um poder descentralizado, articulado ao mercado e ao capital transnacional. O ditador, como ficcionalizado por Roa Bastos, García Márquez e Vargas Llosa, figurava um contexto local, nacional, dominado por uma lógica capitalista que ainda tinha um caminho a percorrer, dissolvendo os obstáculos que os acordos de Bretton Woods [que estabeleceram, nos anos 1940, as relações comerciais e financeiras entre os países mais industrializados do planeta depois da Segunda Guerra] ainda lhes impunham. Quando esses acordos são rompidos durante a Guerra do Vietnã (1955-1975), são criadas as condições para o capital operar, graças às estratégias desenvolvidas pelo neoliberalismo, de maneira deslocalizada ou global, e não mais nacionalmente. O capital deve expandir-se para abranger o máximo possível e, ao fazê-lo, produz espaços que na Sociologia são chamados de “anomia”, cenários nos quais a lei e o Estado de Direito simplesmente desaparecem e, em seu lugar, surgem outra ordem, outra lei, outra moral etc. Isso explica, por um lado, o fato de que hoje crianças e animais de estimação, para dar dois exemplos bastante óbvios, são objetos de consumo.
Por outro lado, a decolagem transnacional do narcotráfico, pirataria (como na Somália ou na Rússia) e exércitos privados (como Academi ou Defion Internacional), que trabalham para Estados e empresas privadas, independentemente de onde eles se encontram. Que romance é capaz de explicar, mesmo que moderadamente, tudo isso? 2666, de Roberto Bolaño, um romance monstruoso, heterocrônico e mundial. Em Santa Teresa (transcrição de Ciudad Juárez), o capital deslocalizado que opera através das centenas de assassinatos não resolvidos pelo governo, o narcisismo e o vazio da academia, o declínio das militâncias, também se encontra na ascensão de um escritor medíocre como Benno von Archimboldi.
Em resumo, juntamente com 2666, romances como Los obras del reino, de Yuri Herrera, ou El arma en el hombre, de Horacio Castellanos Moya, parecem mais apropriados para pensar sobre o presente latino-americano. Em A parte dos críticos [um dos capítulos de 2666], há uma cena em que Pelletier (acadêmico francês) e Espinoza (acadêmico espanhol), em nome do feminismo e da literatura, batem quase até a morte em um taxista paquistanês que, depois de ouvi-los conversar com Liz Norton (acadêmica de inglês), tratou-os como cafetões. Essa cena mostra um microfascismo que hoje faz parte de um cenário em que também vemos neofascismos preocupantes surgindo. Mas é preciso lembrar que o fascismo é um fenômeno de massa, com um partido nacional forte e autoritário vinculado a um estado centralizado, enquanto o chamado neofascismo é mais flexível, plástico e, felizmente, não é majoritário. Assim, seguindo Gilles Deleuze, prefiro falar em microfascismo, pois esse corresponderia a medos e ansiedades individuais, que nos levam a desejar poder, independentemente da tendência política.
As centenas de milhares de feminicídios em todo o mundo nos fazem prestar atenção a essa violência descentralizada. Uma violência cotidiana que, como diz Deleuze, reúne “todos os pequenos medos, todas as pequenas angústias que nos tornam microfascistas encarregados de reprimir o mínimo gesto, a menor coisa ou a palavra menos discordante em nossas ruas, em nossos bairros e até nos nossos cinemas”. É possível ser um antifascista em um nível macro, sem perceber o fascista que somos por dentro. O microfascismo, portanto, pode ocorrer a qualquer momento e lugar, mesmo em militantes revolucionários ou em acadêmicos letrados e cultos, como Pelletier e Espinoza.
A extrema-direita chilena reivindica a figura de Pinochet como um grande defensor da “pátria”, inconsciente de que o ditador deu espaço e incentivou o neoliberalismo transnacional — razão pela qual reivindica um estado nacional inexistente — e ignora também que, em defesa do nacional, utiliza-se de meios cujas peças são fabricadas entre Coréia, Peru e Austrália, são montadas no México e compradas na Alemanha pela Amazon. E eles levantam bandeiras fabricadas na China, o principal parceiro comercial do Chile e quase toda a América Latina. Esse fascismo, portanto, opera como um microfascismo ignorante de suas próprias condições.
Quando se fala nos desmontes das universidades para a implantação de modelos reféns da iniciativa privada, Brasil e Chile passam por cenários semelhantes. Afinal, o nosso atual ministro da Economia, Paulo Guedes, é abertamente a favor de um projeto ultraliberal inspirado nas reformas dos “Chicago boys” de Pinochet. Como essa (res)significação do espaço universitário pode se reverberar de modo prático em um país como o Brasil?
A universidade é um meio fundamental para o neoliberalismo, bem como para sua resistência. É uma droga, veneno e remédio ao mesmo tempo. Em parte, a ascensão, nos anos 1980 — e mais fortemente desde os anos 1990 — de um modo de gestão propriamente neoliberal na universidade deve ser vista como uma contrarrevolução. Esse modo de gestão considera a educação como um investimento econômico pessoal, e a universidade como uma empresa. Portanto, o conhecimento, sob essa lógica, nada mais é do que um produto de consumo.
No Chile, o atual presidente, Sebastián Piñera, fez sua tese de doutorado sobre o que os neoliberais chamam de “capital humano” (um conceito, aliás, indistinguível do que o sociólogo Pierre Bourdieu chama de “capital cultural”). Graças à teoria da rational choice, da “escola de Chicago” o trabalho foi pensado como uma atividade que gera lucro quando entra em ação. Para isso, reintroduziram o trabalho em análise econômica, dividindo-o em renda e capital; dessa maneira, um salário agora é o resultado de um investimento, a renda do capital que pode ser aumentada ao longo do tempo se eu conseguir investi-lo (me vender) adequadamente. O capital foi incorporado ao nosso próprio corpo.
A tentativa do atual governo brasileiro de privatizar a universidade pública [com o programa Future-se, do MEC, apresentado em 2019] baseia-se na lógica do capital humano e do conhecimento como produto de consumo, cuja compra/investimento supostamente gerará lucros em algum momento. Tudo isso, é claro, é uma ótima ficção. E não é porque é falso, mas porque opera e produz um certo modo de subjetividade. O que os neoliberais não enxergam, ou ignoram, é a questão de quem é o dono dos resultados do capital humano. A figura do escritor fantasma — ghostwriter — nos dá um bom exemplo desse “impasse”, embora também possamos considerar milhares de pessoas dedicadas às chamadas indústrias criativas, que em condições precárias fabricam produtos em suas casas ou oficinas que empresas como Zara, Sony ou Ikea aproveitarão ao máximo. O sujeito que atua nas indústrias criativas assume a lógica do capital humano, que a universidade dissemina em seus alunos. Daí a sua relevância para o governo da vida pelo neoliberalismo.
Agora, gostaria de lembrar, como contraponto, que a universidade surge tendo como modelo os grupos de artesãos, que na Idade Média eram politicamente organizados. Até uma carreira como a do Direito tem seu antecedente no tempo em um discípulo que aprendeu com um professor, por exemplo, a trabalhar com madeira. Não são poucos os elementos das primeiras universidades que ainda são mantidos nas universidades contemporâneas. Um exemplo não menos importante é que o reitor, ou seja, a mais alta autoridade de uma universidade, continua sendo um acadêmico escolhido por seus próprios colegas, pelo que, em princípio, qualquer professor poderia ocupar esse cargo. As universidades nas quais isso não é possível [privadas ou as públicas em que o governante desconsidera a eleição feita pela comunidade acadêmica, por exemplo] têm pouco do que define uma universidade, que é possibilitar autonomia à sua estrutura e organização. O acadêmico é um trabalhador, um trabalhador que o neoliberalismo deseja transformar em empreendedor. Essa tensão é o que querem replicar hoje no Brasil e em muitos outros lugares, e é o que deve ser evitado, porque os resultados mostram que esse não era o caminho indicado para a universidade, que hoje está sujeita a forças que buscam se apropriar dela.
A propósito, não é a primeira vez que a universidade enfrenta inimigos que buscam reduzi-la dessa forma. A religião tentou alguns séculos atrás, sem sucesso.
Nessa linha, o uso do vocabulário neoliberal dentro do espectro universitário (“eficiência”, “inovação”, “modernização”, por exemplo) alude a uma espécie de mercantilização fordista nos espaços universitários. Como o senhor pensa essa questão?
Existe toda uma gramática com a qual se tenta transformar a universidade, fazendo com que sua forma, que emergiu da indústria, do mundo dos trabalhadores, dê lugar a um formato gerencial, típico do mundo dos negócios. A chamada New Public Management, Nova Gestão Pública (NGP), é encarregada de realizar esta tarefa. Foi o Banco Mundial que forneceu dinheiro a vários países latino-americanos para “modernizar” suas universidades, com base no NGP — um dispositivo de “especialistas” que estão substituindo os acadêmicos em relevância e obliterando a função intelectual. Seu telos não é mais, como no modelo weberiano, o controle de regras e procedimentos, mas dos resultados, de modo que o conhecimento é cada vez mais irrelevante, uma vez que a ênfase está no procedimento, no cumprimento das metas medidas, tecnocraticamente, não em conteúdo ou atributos. Essa nova gestão foi totalmente introduzida em grande parte do sistema universitário global, embora de maneiras diferentes, e o fez a partir de um conjunto conceitual geralmente usado sem tradução, talvez como uma maneira de seduzir os provincianos: benchmarking (avaliações comparativas ou sistemas de referência), outsourcing (subcontratação), downsizing (reorganização ou reestruturação, redução de tamanho), reengineering (redesenho, para aumentar a eficiência e a produtividade), etc.
Desses dispositivos, o benchmarking é essencial, uma vez que promove a competição como modelo de relacionamento e a própria competição no final de qualquer organização. E a universidade é ideal para ela, dado certo egocentrismo de nós da comunidade acadêmica. Agora, todo esse conjunto de conceitos está subordinado à ideia de qualidade ou excelência (qualidade total, diz a Toyota), típica do mundo do comércio. Como você pode ver, a universidade deixa de ser um espaço operado por trabalhadores, de modo que começa a ser administrada por empresários. Tudo isso acompanhado por uma maneira dominante de escrever e apresentar os resultados de nossa pesquisa, incluindo a presença em mídias como o Twitter ou o Instagram, pois agora também devemos “socializar” os resultados em mídias não acadêmicas. Isso, em princípio, é bom, mas o que acontece na prática é que o que um acadêmico deve fazer hoje é vender-se da melhor maneira possível.
O passado é cheio de novidades, portanto não seria má ideia investigar como surgiram as primeiras universidades, que tinham comunalidade e trabalho coletivo em seu eixo, e ver o que podemos aprender com elas hoje.
No artigo Ficciones académicas: Imágenes de una institución en ruinas, o senhor propõe um esclarecimento dos desmontes das universidades que seguem lógicas mercadológicas, e se debruça em “ficções acadêmicas” e em sua importância nesse processo de entendimento. Como essas produções nos provocam sobre a atual situação dos espaços acadêmicos no Chile? É possível, também, comentar algo sobre o caso brasileiro?
Existe todo um gênero literário chamado novela de campus. Esse conceito não me interessa muito, pois se restringe a histórias que ocorrem em uma universidade imaginada como um espaço fechado, como Oxford. O que chamei de ficções acadêmicas, pelo contrário, aborda a relação fluida da universidade com o mundo ao seu redor e, principalmente, a forte intromissão do mercado no espaço acadêmico. O que me surpreendeu foi “descobrir” que existem romances que já nos anos 1950 e 1960 do século passado estavam observando a transição da universidade para a lógica do mercado. Isso coincidiu com a expansão das matrículas estudantis e a necessidade de padronizar o ensino, razão pela qual a noção de crédito acadêmico foi inventada. E essa lógica não se importa com o conteúdo, mas com o tempo e o custo de uma aula. Essa expansão das matrículas com a padronização do conhecimento é exatamente o que vemos hoje em toda a América Latina. São necessários mais estudantes para que a universidade, gerenciada como empresa, seja um projeto sustentável. Em outras palavras, foi criado a partir de um princípio democrático, uma oportunidade de mercado.
Mas era a noção de ficção que eu queria explorar ainda mais no espaço acadêmico, e além do que é tradicionalmente considerado como tal, pois a ideia da universidade como um espaço privilegiado, fechado e até elitista ainda permanece. No entanto, o que acontece quando o neoliberalismo toma conta da universidade e a transforma em uma fábrica de subjetividade? O que acontece quando são promulgadas leis (ficções legais) que, como no caso do Chile ou dos Estados Unidos, farão com que os estudantes dependam de bancos e capital financeiro (que Marx chamou de “capital fictício”) para ingressar na universidade? A ficção, portanto, é mais do que literatura. O dicionário Houaiss refere-se por fing, raiz da palavra “ficção”, da seguinte forma: “antepositivo, do verbo latino pretendido fictum, fingère, modelando corretamente na argila; você pode moldá-lo com qualquer substância plástica, esculpir”. E depois, lemos: “figura, configuração, forma”. A ficção, portanto, consiste em trabalhar em um assunto que é modelado à mão. O que me interessa então é como, da universidade, conseguimos capturar um mundo diferente; como, a partir da ficção literária, podemos enfrentar as ficções legais e o capital fictício.
Quanto ao Brasil, embora tenha um sistema universitário muito diferente do chileno, vejo com pavor como eles estão sendo homogeneizados, graças à ficção neoliberal, que nos faz acreditar que a universidade pode ser um espaço lucrativo para o capital, com vista para o fato de que o conhecimento é incomensurável, não pode ser medido sem esvaziá-lo completamente de sua singularidade. Felizmente, as diferenças ainda são muito evidentes entre as universidades dos dois países e espero que continuem sendo. Caso contrário, teremos uma universidade sequestrada pelas forças do capital. Porque não se deve ignorar que existem faculdades que estão ligadas ao mundo dos negócios há décadas.
–