Por que regulamentar uma profissão? Estabelecer parâmetros legais é impor formas de controle que, se abrem espaço para exercício do poder estatal sobre quem deseja exercer uma atividade, são também encaradas, sob outra perspectiva, como forma de garantir certas condições de trabalho em um período precarizado como o que vivemos hoje.
Na última segunda-feira (27), foi publicado no Diário Oficial da União o veto integral do presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei (nº 368/2009 no Senado e nº 4699/2012 na Câmara) que defende a regulamentação da profissão de historiador no Brasil. Aprovado por Câmara e Senado, o projeto propõe que a atividade de historiador seja exercida por aquelas e aqueles com diploma de graduação ou pós-graduação em História ou em programa de pós-graduação reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com linha de pesquisa dedicada à História. Também poderiam exercer a profissão os diplomados em outras áreas que comprovarem ter exercido o ofício de historiador por mais de 5 anos.
O veto foi recomendado pelo Ministério da Economia e pela Advocacia-Geral da União sob justificativa de que o projeto ofende a “expressão da atividade intelectual [...] independentemente de censura ou licença”, atentando, segundo esta visão, contra normas constitucionais. Agora, a interdição será votada pelos parlamentares e somente uma maioria absoluta de votos pode derrubá-la.
“Ao vetar nossa profissão, Bolsonaro, às avessas, nos deu visibilidade”, pontua a presidenta da Associação Nacional de História (Anpuh), Márcia Maria Menendes Motta (foto), em conversa com o Pernambuco por email. Motta é professora do Departamento de História da UFF e autora de, entre outros, O rural à la gauche: campesinato e latifúndio nas interpretações da esquerda.
Proposto em 2009, o projeto de lei feito pelo senador Paulo Paim (PT-RS) é avaliado pelo Executivo em um momento de precarização do ensino e de revisionismo histórico descarado: o veto ocorre uma semana após o STF autorizar investigação das manifestações pró-AI-5 ocorridas no último dia 19 – Bolsonaro esteve presente em uma delas. Além disso, há o longo histórico de ataques à educação promovidos pela atual gestão do MEC e por vários integrantes da coalizão que elegeu o atual governo, e há as notórias defesas da ditadura de 1964 empreendidas por Bolsonaro ao longo de sua trajetória política.
Por que regular a profissão de historiador? A Anpuh planeja algum tipo de ação a respeito do veto?
A Anpuh considera que a regulamentação nos fortalece como profissão, permite maior visibilidade e espaços de trabalhos a todos os profissionais de História.
A Anpuh no momento conta com atuação do Senador Randolfe Rodrigues, líder da oposição no Senado, historiador e associado da Anpuh. Ele tem somado esforços para que os senadores decidam por derrubar o veto presidencial. Não há palavras para agradecer todo o seu empenho.
Profissões como sociólogo (1980) e geógrafo (1979) são regulamentadas pela lei desde os tempos da ditadura civil-militar (1964-1985). A profissão de historiador não foi regulamentada naquela época, mas agora a proposição de regulação vem a lume e sofre veto de um presidente que evoca a memória da ditadura de forma positiva. Por que a ditadura regulou, por exemplo, a profissão de sociólogo (de alto teor crítico, também) e não a de historiador? Os motivos para o veto atual seriam os mesmos que motivaram a não-regulação da História na época da ditadura?
Penso que o maior temor de Bolsonaro é como ele será visto pelos brasileiros no futuro. Sua ilusão é a de que é possível controlar o curso da história e o papel da História como ciência. Ele pode vetar nossa profissão, sem nenhum argumento plausível, mas não é preciso ser nenhum gênio para afirmar que os historiadores que escrevem hoje e os que escreverão a história do bolsonarismo no Brasil não vão propriamente colocá-lo na altura de um Getúlio Vargas, JK, FHC, Lula. A História do Brasil é composta por presidentes de várias matizes políticas, mas nenhum conseguiu expressar tanta ignorância e má-fé. As escolhas dos homens que comandam seus ministérios não resistem a nenhum critério minimamente técnico. Ao contrário, a chave de leitura do seu governo é destruir e é assim que ele entrará para a História: "Bolsonaro: o demolidor”.
Na visão da associação, o projeto, nos moldes em que passou pelo Parlamento, contempla as necessidades da categoria? Há ressalvas?
Há algumas críticas ao projeto, mas o que a Anpuh sempre desejou era que a História se tornasse uma profissão regulamentada. Como qualquer lei, ela pode ser ampliada, discutida, revisitada. O importante, a nosso ver, é que agora temos um texto escrito, pois como já dizem os populares: "palavras o vento leva".
O projeto, originalmente proposto em 2009, só agora recebe apreciação presidencial. Considera essa demora fruto da morosidade do Estado? Ou o veto, ao ser realizado neste momento, se deve mais ao projeto bolsonarista para a educação?
É difícil responder esta questão. Acho que ainda levaremos tempo para entender o longo e tortuoso processo de nossa regulamentação. E é claro que eu não acredito que algum Historiador digno desse nome fique particularmente feliz por ter a oportunidade de ver sua profissão regulamentada num contexto bolsonarista. Mas isso certamente, produzirá excelentes trabalhos de pesquisa.
O veto aguarda nova votação no Congresso Nacional. Somente a maioria absoluta dos votos de deputados e senadores poderá derrubá-lo. Quais as expectativas para essa votação?
Para dizer a verdade, não sei. O que posso afirmar é que ao vetar nossa profissão, Bolsonaro, às avessas, nos deu visibilidade e estamos muitos felizes de ver o engajamento de historiadores e historiadoras de todo o país em defesa da História. A máxima da Anpuh está mais atual do que nunca: “o conhecimento nos liberta, o sofrimento nos mobiliza e a empatia nos protege”.