Entrevista FernandaAreas Acervo SESC SP maio2020

 

 


Organizado por Fernanda Arêas Peixoto, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, e Adrián Gorelik, professor da Universidade Nacional de Quilmes (Argentina), o livro Cidades sul-americanas como arenas culturais (Edições Sesc) é resultado de um amplo projeto coletivo a respeito da história cultural urbana na América do Sul. Tendo como guia a figura da “arena cultural”, os 23 ensaios presentes na obra realizam importantes reflexões sobre cidades como Buenos Aires, Santiago, Lima, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Montevidéu, dentre outras, analisadas a partir das relações inextricáveis entre cidade e cultura.

Neste momento de tantas incertezas, é praticamente impossível prever os desdobramentos futuros no continente. Ainda assim, sabemos que os desafios não serão pequenos, e demandarão de nós mirada ampla, compromisso ético e postura política radical. Por isso, tomando o livro como inspiração, parece-me possível afirmar que (re)pensar a América Latina e o Caribe numa perspectiva de larga escala nos ajudará na construção de novos projetos coletivos — desta vez mais justos e igualitários.

A inspiração para o livro veio de um dos últimos textos que o historiador Richard Morse (1922-2001) dedicou às cidades latino-americanas. De que maneira o conceito de “arenas culturais” ajudou a analisar as cidades sul-americanas como lugares de germinação, experimentação e combate cultural?

De fato, a figura das “arenas culturais”, como formulada por Morse em um texto de 1982 e que foi utilizada para pensar as cidades como lócus de criações e embates, funcionou como imagem guia para os ensaios reunidos no livro, por isso a colocamos no título do volume. Mais do que uma inspiração, a ideia forneceu régua e compasso para que todos nós ensaiássemos interpretações que conseguissem capturar as relações íntimas entre cidades e culturas, enfrentadas como relações de dupla mão, de retroalimentação recíproca. Claro está que o texto do Morse contém outros argumentos; dele retiramos apenas uma de suas sugestões como instrumento de trabalho, de modo a tentar escapar de certas armadilhas correntes, por exemplo as que se verificam em análises nas quais a cidade é cena ou pano de fundo, e a cultura aparece ora como derivação, ora como uma espécie de superestrutura que termina por se descolar dos seus “substratos”. Morse nos ajudou, assim, a descartar certas chaves analíticas e a apostar na ideia de que cidade e cultura se produzem mutuamente. Além disso, ele nos auxiliou a conferir uma “perspectiva urbana” à história cultural, como Adrián Gorelik e eu dizemos na introdução do livro; perspectiva que permite evidenciar episódios nos quais as cidades e suas representações intensificam formas de ativação mútua. Retomando ainda os termos de sua pergunta, gostaria de sublinhar a palavra “combate” que você usou, central na sugestão morsiana. Quer dizer, a análise cultural ensaiada de uma perspectiva urbana, como dizemos, é inseparável das lutas, tensões e dissensões que se expressam de formas variadas: seja nas instituições e construções, seja nas diferentes formas de expressão artística (teatro, cinema, literatura), como também nas práticas coletivas e nas políticas, nas linguagens e vida diária.

O livro é resultado de um projeto de história cultural urbana que reuniu 25 pesquisadores de diferentes especialidades e países da América do Sul. Como foi o processo de construção e articulação dessas pesquisas?

O livro é fruto de um trabalho coletivo realizado ao longo de muitos anos. Se bem me lembro, a primeira reunião do projeto foi realizada em julho de 2010 na Universidade de Quilmes, na Argentina, proposta e organizada pelo Adrián Gorelik, e da qual participamos como um grupo pequeno. A partir daí fomos desenhando o plano, que ganhou concretude em alguns seminários realizados em Buenos Aires e São Paulo, e nos quais a equipe foi se constituindo e se ampliando. Ao longo desses encontros os autores foram testando seus argumentos e submetendo as primeiras versões dos textos aos demais. A partir das reações e sugestões dos colegas, cada qual reformulava o seu artigo e produzia uma nova versão. Foi de fato uma dinâmica viva de construção coletiva, algo muito raro. É bom lembrar ainda, porque isso tem a ver com o sucesso do projeto, que as cidades, os períodos e episódios analisados no livro foram sendo definidos em função das pessoas convidadas, que já conhecíamos de outros projetos. Em suma, um verdadeiro empreendimento coletivo, marcado por aprendizados mútuos e ancorado em confiança e amizade. A reunião de pesquisadores de áreas diferentes — História, Arquitetura, Antropologia, Sociologia, Estudos Literários e Culturais — também conferiu um ritmo muito interessante aos debates, do qual todos nós nos beneficiamos. Tudo isso faz com que o volume, lindamente editado pelo Sesc, seja muito mais do que uma coletânea de circunstância.

No seu ensaio, realizado em parceria com Alexandre Araújo Bispo, é possível perceber a enorme importância simbólica do edifício Martinelli no momento de modernização da cidade de São Paulo. Como foi o processo de escrita do texto, da escolha do tema à metodologia aplicada na pesquisa?

Eu e Alexandre Bispo, meu parceiro de trabalho há alguns anos, respondemos ao desafio do projeto pela escolha de um edifício, o Martinelli, que nos pareceu um caso interessante para pensar São Paulo como arena cultural nos anos de 1930. O edifício foi um marco em uma paisagem urbana ainda horizontal, incontornável ao passante, como mostram as fotos do antropólogo Claude Lévi-Strauss, à época um jovem professor da Universidade de São Paulo. A construção nos interessou por condensar as tensões de um momento de transição, expressando ao mesmo tempo apogeu e declínio, já que a obra se conclui no momento em que o centro da cidade se deslocava, e desenhava-se uma nova centralidade em torno da praça da República. O Martinelli se mostrava assim, aos nossos olhos, símbolo de um momento paradoxal; retrato de uma época, era simultaneamente passado (ruína) e flecha em direção ao futuro, concentrando temporalidades e sentidos diversos. E o esforço de nosso ensaio foi acompanhar os usos do edifício, o modo como ele se ofereceu ao consumo cultural, transformado pelos usuários, pelas modificações da cidade e pelos caminhos da imaginação.

Episódios da vida intelectual e artística atravessam do primeiro ao último ensaio. A produção literária, por exemplo, desponta como elemento fundamental em diferentes análises, oferecendo sofisticados recursos para pensarmos os processos de modernização das cidades. Nesse sentido, seria possível tratar a obra — e o projeto de maneira geral — como uma tentativa de renovação do ensaísmo latino-americano?

Eu diria, de saída, que seria preciso tentar pensar o que entendemos por ensaísmo latino-americano, pois há vários, de diferentes épocas e feitios. Mas para responder de modo breve a sua pergunta complexa, diria que a nossa intenção não foi renovar o ensaísmo latino-americano de modo mais amplo, mas estabelecer interlocuções com uma tradição de estudos das cidades na América Latina, de modo a ampliar certos horizontes teórico-metodológicos — e nesse percurso Morse foi também uma inspiração. Como dizemos na introdução, o fim das visões planificadoras nos anos 1980 coincide com um giro cultural que marcará os estudos urbanos a partir de então. Estes estudos tendem a abandonar os amplos marcos comparativos latino-americanos e a assumir a forma de estudos monográficos de cidades específicas, fundamentais para o adensamento da compreensão das urbes, sem dúvida, mas que terminam por deixar de lado certa dimensão latino-americana, que está presente nos trabalhos de Morse e em outros. O nosso projeto recupera uma preocupação latino-americana, é verdade, mas o faz de outro modo, lançando mão de outras escalas de análise e ensaiando novas modalidades de comparação, que convidam o leitor a colocar, lado a lado, cidades distintas em um mesmo período, assim como períodos diferentes em uma mesma cidade, ou ainda a aproximar formas de expressão cultural (cinema ou teatro por exemplo) em cidades e épocas diferentes. A ambição foi, assim, identificar afinidades e contrastes, cruzar experiências, períodos e regiões, sem um compromisso com a formulação de sínteses.

Embora o livro não pretenda construir um relato temporal articulado, a disposição dos textos oferece um panorama que se desenvolve na longa duração, convidando o leitor a refletir sobre permanências e rupturas históricas. Quais as contribuições que um trabalho deste tipo, notadamente transdisciplinar, pode oferecer para um estudo mais complexo dos “laboratórios urbanos”?

O livro não busca oferecer uma história das cidades latino-americanas, e se há um fio cronológico que o organiza — do final do século XIX aos anos 2010 — esse andamento temporal é perturbado por outros ritmos e temporalidades, o que tem a ver com a atitude comparativa por nós ensaiada, como eu dizia antes. Se lidos na ordem das sucessões históricas, os ensaios auxiliam a compor, na longa duração, a vida cultural ao sul do continente. Mas é possível realizar saltos temporais com a ajuda de afinidades que encontramos entre cidades distantes no tempo e no espaço, em função de temas e perspectivas. Em outras palavras, e recuperando uma vez mais o que dizemos na introdução ao volume, a linha diacrônica horizontal é cruzada por outras, verticais e transversais, projetadas pelas comparações, as mais variadas, que os ensaios propõem ao leitor. E, ao fim e ao cabo, uma cidade termina por funcionar como espelho através do qual a outra pode ser vista, sempre de novos ângulos. A experimentação foi deliberadamente o caminho escolhido para o trabalho: experimentamos a figura da arena, testando-a de modos diversos; experimentamos também na própria forma ensaio escolhida para os textos, forma afeita a testes e tateio, abrindo-se a indagações. Cada um dos autores realizou os seus experimentos com o auxílio dos instrumentos fornecidos por suas tradições disciplinares de origem, mas sempre tocados pelas experiências dos colegas, partilhadas nos encontros periódicos. Creio que são estas algumas das principais contribuições da obra.

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