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“A luta contra uma doença deve começar com uma guerra contra os maus governos”, escreveu certa vez Michel Foucault. No Brasil, a gestão bolsonarista tornou o vírus de SARS-COV-2 em um dispositivo de extermínio de corpos indesejáveis. Quando o sistema de saúde entrou em colapso, muito se falou sobre os protocolos técnicos que definem um “direito à respiração”. Fato é que quando um sistema de saúde colapsa, faz-se morrer. E os alvos dessa lógica necropolítica ― que já existe de forma estrutural no Brasil, mas é elevada ao extremo pelo estado de exceção ― são corpos pretos, pobres, indígenas, idosos; o vírus se torna ferramenta de um projeto eugenista. 

Sobre essas questões ensejadas pela pandemia no Brasil, conversamos com Daniela Lima, pesquisadora do Núcleo de Filosofia Francesa Contemporânea da UFRJ com ênfase no pensamento de Michel Foucault e autora do ensaio Corpo-vetor e corpo-utópico (coleção Pandemia crítica, da N-1 Edições). A conversa abaixo é um investimento na filosofia como diagnóstico de nosso obsceno presente e como ferramenta emancipatória para nosso assustador porvir; uma tentativa de fuga da desumanização e da "nadificação" dos corpos.

 

No ensaio Corpo-vetor e corpo-utópico, você fala sobre algo como uma reconfiguração do corpo ― vivo, portanto, (bio)político ― no atual contexto de pandemia. Penso em como esses afetos sobre o corpo se materializam no corpo social já combalido por uma crise, pela iminência do adoecimento e do apagamento. Pode falar um pouco sobre isso?

Escrevi o ensaio partindo da obra de Michel Foucault, em especial, da conferência O corpo utópico, de 1966. Um diálogo marcado pelo hífen, que não existe na grafia original de “corpo utópico” – é como uma ponte que, como recurso estilístico, marca uma possibilidade de aproximação, que não necessariamente se realiza. Dessa aproximação, surge a ideia do corpo-vetor: com a pandemia de SARS-COV-2, todo corpo representa a possibilidade de contágio. Contaminado ou não, todo corpo vivo se torna um corpo-vetor, o que pode transmitir a falsa ideia de igualdade, quando é precisamente o contrário: no risco do contágio, são as desigualdades que se afirmam. 

Para o poder político, há corpos que precisam ser protegidos e corpos que devem ser expostos ao vírus. Portanto, a guerra não é contra o vírus: o vírus se tornou uma arma de guerra contra os corpos indesejáveis, como pretos, pobres, indígenas, idosos. Há menos de um mês, falávamos em processos de desumanização, já que essas vítimas representavam apenas números. Hoje, com a dificuldade de acessarmos o número de mortos, o que se vê é algo além: a nadificação. Trata-se de um projeto eugenista.


Em O direito universal à respiração, Achille Mbembe pensa esse “direito de respirar”, enquanto algo aparentemente acessível à todos, mas que é negado, desde muito antes da pandemia, no sentido mais objetivo (biológico) ― aplicação de uma necropolítica ―, mas também como asfixia de sonhos e liberdades a corpos determinados. Como podemos pensar a gestão política da pandemia especificamente na gestão bolsonarista, visto que a lógica necropolítica é direcionada para esses corpos ― periféricos, para o povo preto, para os territórios indígenas etc?

Com o colapso do sistema de saúde na Europa, teve início um debate mundial sobre “protocolos técnicos de acesso aos respiradores”. Em maio deste ano, a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro apresentou um protocolo com base em sistema de pontos, que mediriam quem teria melhores condições de saúde. Apenas aqueles com maior pontuação teriam acesso aos respiradores. Esse jogo mórbido colocaria pacientes idosos, imunodeprimidos e com alguma comorbidade no fim da fila. Em decorrência disso, veio à tona o debate do direito à respiração e do contínuo processo de asfixia sobre corpos vulnerabilizados pela ação do poder. 

Segundo relatório da amfAr publicado no mês passado, 58% do total de mortos pela covid-19 nos Estados Unidos são negros: um dado alarmante, visto que a população negra representa apenas 18% dos estadunidenses. No Brasil, segundo um levantamento da Agência Pública, o número de mortes cresce mais entre a população negra: “para cada morte em Moema, quatro morrem na Brasilândia”. O que torna esses corpos mais vulneráveis ao SARS-COV-2 não são apenas as comorbidades, mas os processos de pauperização e vulnerabilização impostos à população negra. Que cuidado é possível com condições precárias de moradia, de transporte, de trabalho, de acesso ao sistema de saúde?

Em O direito universal à respiração, Achille Mbembe mostra que a questão do direito de respirar não diz respeito apenas ao cenário da pandemia: é uma ferida muito mais antiga, que segue aberta. Em fevereiro de 2019, Pedro Gonzaga foi sufocado até a morte pelo segurança do supermercado Extra da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Mesmo desacordado, Pedro continuou sofrendo estrangulamento. Nos vídeos que circularam na internet, vozes alertavam: “vai matar o menino, está sufocando o menino”. Mais recentemente, outro vídeo mostrou um policial sufocando George Floyd até a morte, nos Estados Unidos. Floyd morreu dizendo: “eu não consigo respirar”. Pedro e George eram negros. 

Não é possível falar sobre o direito de respirar, em seu sentido amplo, sem falar de racismo. Para Foucault, é o racismo que assegura a função assassina do Estado. Ou seja, ele é a condição para que o Estado exerça seu poder de morte. Quando Bolsonaro diz “e daí?”, sobre o aumento de mortes, é nessa lógica assassina que ele se apoia. Como eu disse anteriormente, a covid-19 se tornou uma arma de guerra contra os corpos considerados indesejáveis – não por acaso, o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, diz que é preciso aproveitar a pandemia para “ir passando a boiada”. Neste momento, o que impede a “boiada” de passar é a população indígena. 

Um balanço divulgado pelo Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas na América Latina, também publicado no mês passado, mostra que 700 povos indígenas correm o risco de extinção na América Latina, em decorrência de políticas de morte agravadas pela covid-19. Se a política é, como apontou Foucault, a guerra continuada por outros meios, o bolsonarismo já criou inimigos a serem eliminados em sua necropolítica, que funciona no interior de uma aparente paz civil. 


Por ser um vírus de alto poder contagioso e de evolução rápida, o SARS-COV-2 faz com que os infectados sequer possam se organizar em torno de um “direito de saber” (como você bem cita o exemplo de Daniel Defert, sobre os últimos dias de Foucault no hospital). Como você acha que isso afeta o corpo social no caso brasileiro, um dos países que menos realiza testes no mundo?

Assim como aconteceu na epidemia de HIV na década de 1980, a dificuldade de acesso aos testes para SARS-COV-2 impede que o doente tenha uma relação de verdade com a própria condição e com a possibilidade da morte. A maioria dos doentes morre sem saber o que atravessou seu corpo e, ao mesmo tempo, a população não tem acesso ao número de contaminados e de mortos. Portanto, o “direito de saber” está relacionado aos poderes sobre o corpo-indivíduo, sobre corpo-população, sobre a vida, sobre a morte. Por sua vez, esses poderes produzem um discurso de verdade sobre o avanço da covid-19, com base em dados não confiáveis. É precisamente esse discurso que cria condições para a reabertura da economia sem que haja um controle efetivo do avanço do vírus. Dessa forma, o discurso médico é ajustado para que o corpo-população sirva às demandas econômicas. Evidentemente, o resultado dessa mecânica dos poderes é a morte de milhares de pessoas: o vírus, como arma de guerra, elimina os corpos mais fragilizados e economicamente improdutivos.

No entanto, Foucault nos lembra de que “lá onde há poder, há resistência”. Neste momento, a resistência parece se organizar justamente em torno do direito de respirar e do direito de saber: seja em manifestações antirracistas ou nos consórcios de imprensa para o acesso às informações sobre o número de contaminados e de mortos. Em uma recente entrevista, Silvio Almeida se lembra do jornalista sul-africano Steve Biko, que dizia ter se tornado mais perigoso quando descobriu que sua vida não valia nada. Para Almeida, quando as pessoas descobrem que “sua vida não vale nada e tem que decidir entre morrer de fome, de doença ou de tiro, obviamente elas vão se levantar”. Ele continua: “não pense que a miséria não se levanta, não pense que a pobreza não se levanta, não pense que a indignidade não se levanta para se tornar digna”. Essas questões me parecem estar no centro das manifestações nos Estados Unidos e no Brasil. 

Em outra frente, a Folha de S. Paulo fez um levantamento sobre as mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave em capitais que apresentavam baixos índices de contágio e de mortes por covid-19. O aumento de mortes era de até doze vezes, o que jogou luz sobre as tentativas de usar a baixa testagem para promover uma falsa redução do número de mortos. A imprensa também agiu contra a iniciativa de Eduardo Pazuello, ministro interino da saúde, de modificar a forma de divulgação de dados sobre o número de contaminados e de mortos. Neste ponto, surge um alerta importante: mais do que impedir as informações sobre a covid-19, o poder político pretende produzir desinformação.
 

“Estamos em guerra. Não saiam de suas casas e teletrabalhem”, disse o presidente francês, Emmanuel Macron. Pensando nisso, a partir da ideia de uma reconfiguração biopolítica, marcada, entre outros pontos, pelo fim da separação entre o trabalho e lar (ideal fundador da sociedade industrial), nossos corpos são, nesse sentido, objetos diretos de transformação das técnicas de biopoder, com as nossas residências e aparelhos digitais como novas plataformas de vigilância. Como podemos pensar em estratégias de emancipação antagonistas à iminência desses novos dispositivos?

Primeiramente, acredito que seja importante dar um passo atrás e pensar nas diferenças entre Brasil e França. Na França, o poder político adotou medidas rígidas de confinamento, enquanto no Brasil houve, desde o início da pandemia, um combate a essas medidas e a maioria da população não pode trabalhar de casa. Consequentemente, há uma diferença entre os mecanismos e tecnologias do poder. Contudo, há uma pergunta que me parece importante, independentemente das diferenças entre os dois países: por que respeitamos as medidas adotadas pelo poder político? Não estou debatendo se essas medidas são, em si mesmas, boas ou ruins, eficazes ou não, mas tentando compreender o porquê de as respeitarmos, visto que isso fala diretamente sobre a ação do poder sobre os nossos corpos.

Como nos aponta Foucault, não existe um fora do poder (o que não é algo ruim em si mesmo): as correlações de força são instáveis e móveis, portanto essas transformações podem suscitar outras estratégias de resistência e, consequentemente, de emancipação. Não se faz resistência apenas em torno do não, de dizer não a alguma coisa, mas em torno do sim, das formas criativas de resistência. Talvez, as utopias tecnológicas do corpo, esse corpos-utópicos que surgem dessas mudanças, sejam um lugar para experienciar essas formas criativas de resistência. O corpo-utópico é o corpo que existe para além de si mesmo, em seus rastros, imagens, memórias; e que, nesses processos de expansão, atua contra a morte e a nadificação.

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