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Para Gabriel Giorgi (foto) — crítico, pesquisador e professor da New York University (NYU) —, as ''escritas tecnológicas'' reconfiguram os modos de fazer a vida pública, bem como a própria ideia de esfera pública. Dessa forma, são objetos de análise centrais das democracias contemporâneas, que marcam não só uma insurgência de formas de subjetivação política até pouco tempo inéditas, também um processo de transformação da própria escrita. 

No livro Ódios políticos e políticas do ódio (Bazar do Tempo), Giorgi — que assina coautoria com a pesquisadora Ana Kiffer (PUC-Rio) —, aponta que o início dessa reconfiguração no campo do ‘‘fazer público’’, no Brasil, pode ser percebido a partir dos agenciamentos de direitas que investiram em ataques ao governo Lula, no golpe a Dilma Rousseff e na ascensão de Bolsonaro. É verdade que, em cenário mais recente, é possível perceber também a insurgência de numerosas vozes emancipadoras que configuram algo como uma ‘‘pedagogia de resistência’’ de nosso tempo.

Em entrevista ao Pernambuco, Giorgi — autor do ensaio Arqueologia do ódio: apontamentos sobre escrita e democracia — fala, entre outras questões, sobre esse processo de reconfiguração da vida pública a partir das escritas eletrônicas e discute sobre como potências dessas escritas transformam os circuitos de afetos políticos das democracias contemporâneas; afinal, pensar essas escritas nos permite não só interpelar o universo público contemporâneo como, de certa forma, elaborar formas de intervir sobre ele.


No seu ensaio, as “escritas tecnológicas” são lidas como ferramentas de guerra pela dicção do democrático, reivindicação do público e são atravessadas pela palavra e pela performance. Como podemos pensar esse marcador de uma nova configuração do “público democrático” a partir dessas escritas insurgentes que atravessam as democracias contemporâneas?

Acho que temos duas questões decisivas para pensar essa reformulação do “público democrático.” Por um lado, uma questão muito evidente, mas que precisa ser mencionada: a crise da ideia de democracia como “consenso”, como a busca por consensos. No contexto presente, de instrumentalização da violência como estratégia política, a ideia de que a democracia é sobretudo uma procura de consenso deve ser interrogada criticamente. É uma ideia que, nas transições pós-ditatoriais teve um sentido, mas também um custo muito alto. No caso do Brasil, e também em outros países, como a Argentina, permitiu uma neoliberalização do social, que garantiu as bases das desigualdades brutais de nosso presente.

Por outro lado, a transformação das tecnologias de escritura tem uma importância maior, já que reconfigura os modos de fazer (e desfazer) a vida pública, e a própria ideia de esfera pública. Novas enunciações, disputas pelo dizível, a luta pelo que é válido dizer numa sociedade democrática: eu acho que tudo isso tem a ver com esse momento em que as escritas eletrônicas operam sobre a fronteira entre o oral e o escrito, escrevem o que antes “só” se falava (a meia voz, em rumor, em fofoca, etc) e abrem novas possibilidades culturais, de legitimação e validação desses enunciados.

Ao mesmo tempo, e segundo uma genealogia política das plataformas eletrônicas que ainda devemos fazer, esse momento Twitter, Whatsapp ou Facebook marcam também um momento em que, quiçá, podemos falar, parafraseando o Cildo Meireles, de “inserções em circuitos afetivos” [nota 1]: escritas que, geradas dentro de laboratórios de intervenção públicos, como o “gabinete do ódio” do governo bolsonarista, operam ocupando circuitos de afetos e proximidade; grupos de família, amigxs, igrejas, a sociabilidade mais ou menos próxima das redes sociais, Whatsapp, etc. Então, essas narrativas e imagens paranóicas, constantemente falsas, conspiratórias, são repassadas por pessoas de nossa confiança, que têm nossa credibilidade, e acabam ganhando estatuto de verdade pública, disputando a autoridade dos meios de comunicação em massa, já muito desacreditados. Então, essas “inserções” mobilizam os afetos para produzir “verdades” públicas. Acho que essa transformação é essencial para pensar o presente das democracias.

Aqui no Brasil, as manifestações dos entregadores de aplicativos — que demandam direitos essenciais, sobretudo em tempos de pandemia —, têm organizado essas escritas de forma interessante. No perfil do Twitter @galodeluta (do fundador e porta-voz dos Entregadores Antifascistas), elas são publicadas a partir de citações dos próprios manifestantes, inclusos aspas e indicação de autoria. Pode comentar sobre isso?

Acho que o impacto dos entregadores de aplicativos na reconfiguração do público e das lutas políticas são enormes para um “futuro imediato”. Os Entregadores Antifascistas, no Brasil, são um exemplo claro, mas também tem as lutas dos entregadores em países como Argentina, Colômbia, etc. Eles e elas são a encarnação das reconfigurações do trabalho não somente pela abrangência dos aplicativos, mas na própria reconfiguração do espaço público. O momento da pandemia de COVID-19 deixa isso muito claro. Os entregadores são a rede de circulação num momento de privacidade/privatização muito intensa: são os corpos da exposição ao risco e também os que habitam e mantêm o entre-corpos do social. Por isso, acho, ganharam essa visibilidade política tão intensa e imediata: brutalmente precarizados e essenciais ao mesmo tempo. A figura tão contraditória (e por isso mesmo potente) do “trabalhador essencial.” Mas essa rede e essa circulação depende da rede de escritas onde tem lugar a exploração e a luta: o telefone celular, que é a referência de localização e conexão é também a tecnologia da escritura. No Twitter da @galodeluta, lemos: “meu discurso não é discurso, é um flow”. Esse flow tem a ver com um circuito da escrita, com novas formas de interpelação, com outros modos de inserção da escrita entre os corpos, que neste caso são corpos em movimento, nos circuitos traçados pelo algoritmo, disputando o que acontece nesses circuitos, ressignificando e reclamando que esse flow tem que ser condição para uma nova dignidade, para novos modos de imaginar as formas de habitar e de fazer vida pública a partir desses corpos. São esses trabalhadores que mantêm viva a nossa sociedade em plena pandemia.

 

As potencialidades discursivas que surgiram com esses novos planos de enunciação foram ferramentas primordiais nas eleições de Trump e Bolsonaro. Em cenário mais atual, surgem vozes emancipadoras, capazes de condensar afetos políticos de corpos sociais em escritas que abalam pactos discursivos hegemônicos intelectuais mulheres, negras/os, LGBT’s etc. Como essas escritas nos ajudam a pensar as facetas do ódio político nessa, digamos, "pedagogia de resistência" em nosso presente?

Acho que as direitas e os novos fascismos entenderam muito bem como operar dentro dos circuitos afetivos no momento em que o neoliberalismo já tinha corroído muitas formas de vida coletiva e também as formas de autoridade pública. Os novos fascismos estão reagindo a muitos avanços prévios do feminismo, das lutas antirracistas, das lutas pelos direitos LGBTs, etc. É um momento, nesse sentido, formidável na disputa pelo dizível, quando muitos movimentos subterrâneos, periféricos e latentes emergem à superfície e redefinem isso a que chamamos de público e de comum. E nessa disputa, o afeto emerge como uma categoria central. A direita mobiliza o medo, a insegurança, as memórias falsas sobre momentos de certezas e segurança das classes médias. O ódio como afeto aglutinador é composto desses traços. Mas os movimentos emancipadores têm outras ferramentas afetivas a que devemos nos atentar: a capacidade para transformar afetos negativos e reativos em possibilidades afirmativas. Por isso estou tão interessado nas escritas feministas que trabalham muito bem com as ambivalências dos afetos, sua opacidade, seus pontos cegos, para construir linguagens e imagens de formas inclusivas na vida coletiva. Sempre com conflitos, claro. Mas acho que também é importante evitar certa idealização do sujeito democrático como sujeito “livre de ódio.” 

O ódio pode ser um afeto importante, uma ferramenta vital para muitas lutas democráticas, precisamente porque pode ajudar a reconhecer os verdadeiros inimigos (o patriarcado, o racismo, as formas de exploração, etc). Como fala Ana Kiffer [nota 2] , pode ser descentralizado de seus impulsos letais. Essa pedagogia afetiva é, acho, uma das tarefas fundamentais da cultura em nosso tempo.

Como você aponta no seu ensaio, emojis fazem parte do chamado affective capitalism; funcionam como forma de materializar emoções em uma escrita tecnológica que busca condensar fluxos afetivos, padronizando a inscrição de afetos gestuais no enunciado em escritas permeadas por semânticas bolsonaristas, emojis comumente figuram algo como um desejo pelo extermínio e apagamento do outro. Pode falar sobre isso? 

Eu acho que o emoji, e em geral as escritas eletrônicas, dão uma nova intensidade, uma nova espessura a esse umbral entre o corpo e a linguagem que está sempre operando na escrita, mas que agora obtém um peso maior. É precisamente nesse umbral onde se operam muitas linhas de politização em nossa época; o bolsonarismo é um exemplo nítido. Por um lado, é um hiperindividualismo que quer “transgredir tudo”, as normas institucionais mais básicas, o respeito mais elementar entre as pessoas. E por outro, é hiperexpressivo, cênico, teatral, cheio de gestualidade, de vontade de exibição. Essa dupla configuração encontra nos territórios eletrônicos uma configuração única. Acho que o bolsonarismo aprendeu como operar nesses territórios, precisamente, como falava antes, ocupando, se inserindo, trafegando nos circuitos dos afetos, num contexto social e global de medo e incerteza. Os fascismos sempre foram micropolíticas afetivas, mas no caso do contemporâneo, são fascismos do hiperindividual, que podem invocar as velhas referências de raça, de nação, de fé, mas sempre de forma vazia, porque em última instância, a substância da guerra e do ódio é o indivíduo como valor único, como horizonte único, final, paroxístico. Por isso, sua última síntese, seu símbolo final, não é o símbolo religioso, a bandeira nacional, nem sequer as simbologias da raça: é, isso sim, a arma. Os emojis da arma e o morto (que aparecem, por exemplo, na formidável Odiolândia, de Giselle Beiguelman) são sua escrita mais representativa: jogo e ameaça, riso e morte, infantilidade e letalidade. Nesse umbral de sentidos colapsados é onde o bolsonarismo opera.

Por último, é possível pensar que uma arqueologia dessas escritas implicaria também numa arqueologia do nosso tempo presente?  Pode comentar essa ideia? 

A ideia de uma “arqueologia do ódio” tem ao menos, penso, duas dimensões. Por um lado, tomo a ideia, naturalmente, de Foucault na Arqueologia do saber, fundamentalmente a ideia da arqueologia como análise das mutações do discurso e das disputas pelo dizível como metodologia para pensar as vidas dos enunciados e suas políticas. Isso ajuda a pensar o ódio não só como expressão de um tipo de personalidade, um rasgo psicológico, mas como uma configuração coletiva e política, que passa pelos discursos compartilhados e trabalhados em sua circulação. E, ao mesmo tempo, a ideia de arqueologia indica também que nesses deslizamentos do discurso, nesses deslocamentos das formas do dizível, nesse olhar “sísmico” sobre as linguagens, emergem temporalidades, estratos, sedimentos que reacomodam os imaginários coletivos e as disputas públicas. Que memórias se ativam, se mobilizam, se articulam, e quais se interditam para fazer um pacto democrático sustentável? 

A diferença entre Brasil e Argentina no que diz respeito às suas experiências ditatoriais e suas legitimidades é bastante sugestiva nesse sentido: na Argentina, a memória da ditadura sustenta a ideia da democracia como “nunca mais” ao genocídio de um modo muito mais intenso, acho, do que no Brasil. Mas na Argentina também existem setores políticos que procuram corroer de modos bastante sistemáticos e deliberados esse pacto. Porque o ódio é sempre, também, uma disputa pela memória. E aí, mais uma vez, as memórias das lutas antirracistas, as memórias das mulheres (onde os feminismos trazem outras políticas da memória, dos abusos, mas também das lutas), as memórias dos LGBTs podem operar como uma potência afirmativa contra essa memória falsa de um fascismo que só lembra do que nunca existiu: o “Mito” (justamente!) do Macho, do Branco, da Família, de uma nação mitologizada, mas nunca realmente vivida.

 

NOTAS

¹ Cildo falava da “inserções em circuitos ideológicos”, claro, como prática vanguardista crítica. Aqui  essas “inserções” tem um signo oposto e uma modalidade diferente.

² Ana Kiffer, coautora do livro Ódios políticos e políticas do ódio, é escritora, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC -Rio. É autora, entre outros, dos livros Do desejo e devir: o escrever e as mulheres (Lumme Editora) e Antonin Artaud (EdUERJ).

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