Reunião de ensaios de Italo Moriconi (foto) escritos ao longo das últimas duas décadas, Literatura, meu fetiche vem a público pelo Selo Suplemento Pernambuco/Cepe Editora em setembro. O livro se divide em duas partes, “pedagogia | valor de fetiche” e “orgia | no corpo a corpo da leitura”, nas quais se faz presente o modo engajado de o autor pensar o literário. Ítalo se dividiu entre docência e pesquisa durante mais de trinta anos na UERJ, além de, posteriormente, desempenhar o papel de tensionar e dialogar com o mercado produtor e receptor de livros como editor da EdUERJ.
Além de ensaios sobre autores como Clarice Lispector, Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu e Torquato Neto, dentre outros do contemporâneo, Literatura, meu fetiche aborda o debate sobre a vida cultural literária em sua relação com a ideia de “valor” e a própria academia, como questionamento do significado hegemônico do literário em si. Segundo as organizadoras, Ieda Magri (UERJ) e Paloma Vidal (Unifesp), o livro traz uma “proposta de remodelação do pensamento sobre literatura produzido na universidade e uma crônica de um momento da vida literária brasileira”, ratificando o poder catalisador que a literatura ainda tem na cultura e no espaço público.
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A primeira frase do seu livro é “O literário é fetiche”. Um fetiche mais barthesiano (da fruição, do corpo a corpo com o texto) do que como categoria de consumo — que se liga muito à ideia de vida literária fetichizante. Esta pressupõe (pressupõe?) lançamentos de livros, assinatura, fila na livraria (e os encontros nessa fila), mesas de bar, leituras. Como se dá essa mistura de fetiches, fruição do gozo intelectual em relação ao objeto físico?
Eu só não posso dizer que tenho uma visão integradora ou harmônica das dualidades que analiso, porque no meu pensamento as dualidades são sempre assimétricas, conflitivas, agonísticas, seguindo leituras formativas de Lyotard, Foucault e Deleuze. O fetiche é o objeto sobre o qual investimos, obsessivamente, valor afetivo. A dualidade vem do fato de que, por um lado, esse valor afetivo já é dado, a priori, pelas instituições e, por outro, ele pode ser o produto de um investimento de leitura singular ou desviante. Acredito que é essa dualidade que Roland Barthes expressa através dos polos prazer e gozo na leitura da literatura. Prazer é aquilo que sentimos ao ler como leitores apaixonados de uma literatura canônica, que buscamos porque sabemos a priori que ela será amada. Já o gozo é a relação fetichista que o leitor estabelece como uma espécie de deriva perversa em relação ao prazer institucionalizado do cânone.
O meu grande impulso com os textos que compõem este livro diz mais respeito ao fetiche institucional que ao fetiche desejante do Barthes. Na verdade, não dá para separar um do outro, eles estão sempre intercomunicantes. O gozo é deriva, acentuação, segmentação do prazer. O prazer está no cânone, na convenção. O gozo está no anticanônico, no anticonvencional.
O interesse por restaurar o valor positivo do literário como puro fetiche institucional que, na verdade, molda nossos desejos mais perversos e singulares tem a ver com a constatação de que a leitura de obras literárias só consegue despertar o interesse de alunos e das pessoas em geral se houver uma boa e prévia contextualização sobre o autor, sobre a época da obra etc, e não apenas a leitura fetichista limitada à textualidade em si. Ou seja, para que a literatura não morra, é preciso resgatar o suporte narrativo histórico e biográfico que confere valor apriorístico àquele autor ou autora. Sempre digo que é melhor um calouro de Letras que leu adaptações e ouviu falar de assuntos literários, mesmo sem ter lido nada com mais substância, do que um calouro com zero informação. Nem pensar um calouro ou caloura que já tenha formação literária mínima; são poucos. Poucas pessoas vão ler Machado ou Borges ou Kafka pela primeira vez, ou qualquer autor, se não for como obrigação escolar ou como parte de uma formação cultural ampla.
A revalorização do valor de fetiche vinha, também, de um grande interesse meu, nas décadas de 1990 e 2000, em promover a ideia da pós-graduação em Letras como formadora de quadros de altíssimo nível para o mercado editorial, que é um lócus no qual a literatura é trabalhada como puro fetiche.
Na verdade, a desfetichização do literário era o que orientava a era da teoria literária (quando o Estruturalismo dominava produções e discussões). A teoria literária desfetichizava o literário como valor cultural evidente por si mesmo (ou seja, como modelo canônico). A trajetória do Barthes caminha inexoravelmente nesse sentido ambíguo: eu desfetichizo o prazer “papai-mamãe” da grande literatura, mas com isso fetichizo a deriva e o desfazimento da literatura contemporânea ou da releitura radicalmente contemporânea de clássicos.
Nesse sentido, o fetiche que mais me move no livro não é nem tanto o fetiche da epígrafe — “O texto é um objeto fetiche e esse fetiche me deseja”, retirada de O prazer do texto, de Barthes —, mas o sentido de tê-la colocado é mostrar o elo nessa dualidade.
Seu livro é dividido entre as partes “pedagogia | valor de fetiche” e “orgia | no corpo a corpo da leitura”. Como essas duas partes se relacionam?
Os textos da primeira parte são intervenções conceituais e políticas sobre aspectos da cultura no início deste século XXI e seus reflexos no próprio conceito de literário. São ensaios em que refaço um pouco da minha trajetória formativa. Têm a ver com o ensino da literatura e o valor da literatura no contexto da sociedade da comunicação digital de massas e capilarizada. Por isso, “pedagogia”. A segunda parte reúne textos de crítica literária no sentido mais estrito da palavra, é o corpo a corpo do leitor com o texto. Mas o uso da palavra “orgia” tem também o sentido de que aborda questões de orgia e homossexualidade em figuras como Caio Fernando Abreu e Michel Foucault. No livro, as duas partes se integram e, de certa forma, dialogam. Já na minha vida, tenho mais dificuldade de juntar o lado professor e o lado, digamos assim, pornógrafo. Acabaram se tornando dois mundos, um à parte do outro.
No prefácio do livro, escrito por Paloma Vidal e Ieda Magri, lemos: “Isto é o Italo: um amante e um militante da literatura”. Você se vê assim?
Sim, acho que sou militante em tudo, no sentido de ser empenhado de forma passional e retórica. No bom sentido. No sentido de querer fazer uma revisão das palavras mais usadas no âmbito dos assuntos que abordo. E também no sentido de que eu sei que sei despertar a paixão pelo literário — a retórica como forma de despertar paixão.
No texto Fabrico meu (nosso) Torquato Neto, você fala que voltou a ler o poeta Torquato Neto à procura mais da poesia que do mito. Você também é autor de um perfil de Ana Cristina Cesar (Ana C.: O sangue de uma poeta, livro de 2016). Como entende essa questão da hagiografia nos autores que estuda? A santificação é redutora? A aproximação de vida e obra é produtiva?
Eu acho produtiva a aproximação entre vida e obra. No entanto, acho que as duas definem atos de leitura que podem ser inteiramente separados, como foi regra na crítica universitária durante algumas décadas. A leitura somente da obra é uma leitura estética. A biografia é da família da história literária. Mas uma obra completa desfere uma trajetória, então eu sou muito atraído pela biografia da obra e como a obra de certa forma moldou a trajetória de uma vida. Minhas abordagens do Torquato e da Ana Cristina foram amorosas. Claro, uma hagiografia pressupõe-se que seja uma abordagem amorosa da biografia de alguém. Se alguém me acusar de ser um hagiógrafo acho que terei que aceitar. Tenho certo problema com projetos biográficos que se apliquem em revelar os podres de um biografado, em fazer sensacionalismo com o lado sombrio e secreto das pessoas. Tanto no texto sobre o Torquato quanto no livro sobre Ana C. eu tento mostrar que a obra e a morte de ambos estão indissoluvelmente ligadas. No caso do Torquato, quando falo de seu estado de morto vivo na vida e nas últimas produções. No caso da Ana C., trabalho com a hipótese que o nó existencial dela tinha a ver com os conflitos íntimos que lhe trazia a atividade literária, o ato de assumir uma persona pública. Poderia ter resumido o caso do Torquato ao excesso de drogas e álcool e o caso da Ana a seu mal-estar quanto à própria sexualidade — “cabra cega do desejo” como ela mesmo diz num poema. Em suma: sexo, drogas e rock n’roll. Me projetei muito ao escrever os perfis dos dois. Sempre é possível escrever uma nova biografia sobre uma pessoa e quem quiser escrever as biografias reveladoras sobre esses dois, que o faça.
Sobre a vidaobra de Caio Fernando Abreu, você comenta que ter a própria literatura “transformada em ícone gay” foi visto por CFA “bastante a contragosto no início, mais apaziguado depois”. Por que ele tinha essa visão sobre tal recepção? Hoje em dia — com o debate mais amplo e a temática LGBTQIA+ mais explorada na literatura —, você acha que ele teria o mesmo pensamento?
Acho que o Caio, se estivesse vivo, estaria mais que nunca engajado em arte gay, literatura gay, política LGBTQIA+, pois ele fez essa transição em vida, ele se politizou no processo. O problema do Caio era que no início ele queria ser valorizado por ser um bom escritor e não por ser um escritor gay. Depois ele aceitou ser visto como um bom escritor gay —inclusive, era o modo como se recebia sua obra traduzida no exterior. Como pessoa, ele nunca teve problema em querer disfarçar sua homossexualidade; mesmo se quisesse, não conseguiria. Suas relações de vida eram totalmente gays, tanto em São Paulo quanto no breve período carioca dos anos 1980, quando circulou num ambiente muito bissexual. Apesar dessa visibilidade, quando o assunto era literatura, ele só aceitava tratar disso no texto, e, ao responder pelo texto, não ser obrigado a responder por si mesmo. No volume que reúne as cartas dele (lançado em 2002 pela Aeroplano), faço uma nota de rodapé sobre o conflito que ele teve com O Pasquim, por homofobia. Caio viveu os inícios do clima de maior tolerância para com a homossexualidade nos anos 1990, mas ele nasceu e cresceu num mundo em que a homofobia era o normal, mesmo em formas brandas e insidiosas, e a homossexualidade era fonte de muito sofrimento e conflitos internos e externos.
Analisando a produção de autores publicados nos anos 1990, mas principalmente nos anos 2000, você aborda a questão do “literário como efeito de circuito”. Como os novos suportes de escrita e veiculação, a partir da difusão da internet, tensionaram e continuam tensionando a crítica literária?
Os novos suportes afetaram muito a relação entre crítica e literatura. A crítica se tornou menos profissional, menos ligada à grande imprensa e aos circuitos impressos e se colocou de maneira amadorística e proliferante nos sites e até mesmo nos booktubers. A crítica profissional no estilo antigo ficou mais encerrada nas universidades. A crítica hoje em dia é menos crítica rigorosa, apontadora de erros, e mais comprometida com a divulgação de determinadas obras, determinados autores. A crítica acadêmica ainda busca uma saída ensaística e em muitos casos o melhor da consciência literária contemporânea está nos textos híbridos, que conjugam ficção e ensaio. Hoje em dia o crítico e a crítica estão menos ocupados em distinguir o bom do ruim e mais preocupados em mostrar o que é bom nos parâmetros do circuito em se insere.
Como os seus atuais objetos de estudo dialogam com os ensaios de Literatura, meu fetiche?
Estou enveredando pelo universo das biografias e uma das dimensões dessa pesquisa é reflexiva e interventiva: construir uma forma de compreensão mais ampla da escrita biográfica na teoria da literatura hoje. Estamos vivendo uma nova era na crítica literária e cultural, uma nova crítica biográfica que multiplica exponencialmente a linguagem e a pesquisa documental, por um lado, e por outro, prolifera em biografias romanceadas e romances biográficos, sem falar na paixão contemporânea por cartas, diários, memórias.
Agora, como bom professor de Letras aposentado, pretendo eu mesmo escrever um texto puxando mais para o literário, a partir de uma leitura livre das biografias de Pasolini, evocando meus fantasmas políticos e pessoais, a começar pelas raízes italianas — muito inspirado pelo livro Espectros de Marx do Derrida e tendo como estrela-guia o Hamlet, aquele que recebe uma missão do fantasma do pai.
Tenho também vontade de juntar meus poemas orgiásticos num livrinho alternativo assinado por meu pseudônimo Italomori. Quando comecei jovem, achei que seria poeta. Agora, como diz meu amigo Paulo Henriques Britto, virei poeta bissexto e, diria mesmo, clandestino. Daí o pseudônimo.
Na vida a persona do professor ativista se impôs e chegou até o topo da carreira (ou quase). Busco agora uma terceira margem, uma terceira vereda.