“Recife voltou a falar comigo durante a pandemia”, conta a poeta pernambucana Cida Pedrosa sobre o processo de feitura do seu décimo livro de poemas. Elaborado e lançado em plena pandemia (e também por conta dela), Estesia – termo que significa “capacidade de perceber sensações; sensibilidade” – é produto de um “estado de contemplação” que Cida reestabeleceu com a cidade do Recife por conta do marasmo a que a pandemia nos lançou. Escrito e lançado em 2020, Estesia acaba de ter nova edição publicada pela Cepe Editora.
A relação com a cidade é forte característica desde os primeiros poemas de Cida, mas agora surge transmutada pelo silêncio das ruas. A leitura de Estesia nos leva a contemplar pequenas belezas urbanas e, com isso, nos remete a uma forma não ansiosa da experiência do tempo. Nessa entrevista ao Pernambuco, originalmente concedida em 2020, a poeta fala sobre a retomada desse estado de contemplação que foi força generativa de Estesia.
Estesia foi escrito em plena pandemia como tentativa de respiro em meio à estagnação na qual fomos lançados nesse período. Como se deu esse deslocamento, que foi do marasmo do isolamento para um estado de contemplação e espanto do novo?
Eu estive na Secretaria da Mulher do Recife até o dia 3 de abril de 2020, que foi quando me afastei. Eu vinha de uma agenda de 12 horas por dia com muitas reuniões – só no mês de março eu tinha marcadas mais de 20 reuniões que tiveram de ser desmarcadas por conta da pandemia. Terminei me afastando da Secretaria sem fazer os rituais de despedida e cheguei em casa no dia 3 de abril, pré-candidata à vereadora [pelo PCdoB] sem saber como fazer a campanha, com todo aquele caos e todas aquelas mortes. Então, eu fiquei pelo menos uns 15 dias, basicamente, num estado de paralisia. Nas andanças que fazia com meu cachorro Bob Marley, eu comecei (ou voltei) a me permitir a alguns olhares que havia perdido. Recife me engoliu, em algum momento, e eu me perdi de mim e da minha capacidade de contemplação. E aí eu comecei a contemplar o feio e o bonito; e, dessas contemplações, começaram a sair versos, que quis registrar em fotografia. Não era só escrever, era registrar o contemplado o máximo possível. Não foi simples sair do marasmo e deslocar o meu olhar à contemplação e ao estado de espanto. Estesia é isso, a retomada da minha capacidade de espanto.
Haicaístas, na época de Bashô, costumavam elaborar justificativas para os seus poemas. Pode falar sobre a opção pela linguagem fotográfica para conceber este diálogo?
É essa coisa da justificativa de Bashô, não é? Esse processo foi muito interessante pois primeiro vinha a contemplação, mas não houve qualquer rigidez com a ordem na criação dos poemas e fotografias. Por exemplo, eu vi uma florzinha que parecia um clitóris (“Clitóris lilás/ A alegrar o passeio./ Reage a beleza.”), comecei a escrever o poema e só depois fotografei a flor. Mas houve casos também como o poema sobre um cadeado enferrujado (“Há morte corrente/ Na ferrugem que assombra/ Pranto a cadeado.”), que eu fotografei primeiro e só quando cheguei em casa eu escrevi o poema.
Mas, de fato, as fotografias são as justificativas. De certa forma, eu acredito que assim estou dialogando com a modernidade, com novas formas de justificar – ao invés de escrever sobre qual era a situação da contemplação. Deixo o leitor vislumbrar a fotografia e elaborar a sua própria contemplação. Dessa forma, o leitor pode, ao ler o meu poema e ao ver a fotografia, realizar contemplações diferentes da minha. Eu acho que termino criando uma relação direta com o leitor para novas possibilidades de diálogo.
Como foi a experiência de contemplação da cidade do Recife, marca tão forte em sua obra, com a cidade quase vazia e o olhar delimitado por uma máscara?
Bom, os nove primeiros poemas eu fiz de dentro do meu apartamento. O resto, foi elaborado na rua. E o que eu encontrei foi essa cidade silenciosa do ponto de vista dos carros e das pessoas, mas é ainda a cidade que grita do ponto de vista de sua dor e de sua beleza. Contemplei esses gritos de beleza e dor. Uma quantidade enorme de moradores de rua, uma fome batendo na canela. Mas também as dores ocultas; você passa por casas completamente rachadas e destruídas, casarões lindos; é uma cidade oculta que se esvai. Você passa por uma rua e se pergunta que dor existe por trás de cada grade, de cada abandono. Pude contemplar essas dores que gritam e também essas dores silenciosas. O que significa você se deparar com uma cadeira amarrada em um pé de árvore em frente a um supermercado numa avenida principal, antes movimentada, sobretudo se você sabe que aquela cadeira é onde sentava o vendedor de frutas (“A árvore é parte /Do escritório suspenso. / Labor ambulante.”). Mas onde ele está agora? Com que dinheiro ele está sobrevivendo se, com as ruas vazias, não está vendendo mais as frutas? Então eu passei a observar essa cidade que ninguém vê. Por exemplo, tive a experiencia de passar em plena Rua Amélia [na zona norte do Recife] e ver dois formigueiros na calçada. Isso jamais aconteceria em “tempos normais”, com a quantidade de pessoas que passam o tempo inteiro por aquelas calçadas. Isso teve um impacto enorme para mim. Recife tem uma marca indelével na minha obra desde os primeiros poemas, e esse é o grande impacto que eu senti ao sair de uma cidadela minúscula do Sertão pernambucano [Bodocó] para uma cidade grande. E que bom que a cidade voltou agora a falar comigo. Recife voltou a falar comigo durante a pandemia.
O primeiro lançamento de Estesia, em setembro de 2020, foi alvo de ataques empreendidos por militantes bolsonaristas. Como você relaciona esse ocorrido com seu trabalho como poeta e com sua militância política pelo PCdoB?
Primeiro, a cultura brasileira está sob ataque desde pelo menos o governo Temer, quando decidiu acabar com o Ministério da Cultura. Todas as vezes que os fascismos sobem ao poder, uma das primeiras classes atacadas é sempre a dos artistas, da cultura. E por que? Porque é de onde nascem muitos gritos potentes de liberdade, múltiplas interpretações do mundo, múltiplas críticas e olhares diversos sobre o mundo. E, como sabemos, o fascismo só convive com uma ideia, porque é autoritário em sua essência. Ele trabalha em uma ideologia de transformação das mentes, para que sejam todos alienados e pensemos todos de uma mesma forma.
O governo Bolsonaro não está distante disso. Existe um Projeto de Lei do deputado federal Eduardo Bolsonaro que quer proibir e criminalizar a foice e o martelo, símbolos comunistas [o projeto foi protocolado em 2020 e está parado na Câmara dos Deputados desde então]. São de coisas desse nível que estamos falando. O ataque foi porque sou mulher, porque sou comunista e porque sou artista. E a minha resposta foi a resposta do afeto, porque eles odeiam o afeto. Mas não falo aqui de uma coisa boba como “amor vence o ódio”. Nós vivemos em um momento de tanto obscurantismo, de ódios em suspenso e de ódios postos na mesa, acho que precisamos fazer mais gritos de liberdade e amor. E a arte é um excelente canal para isso.
O que eu espero é que todos nós possamos reagir. Em Estesia, tem um poema em que falo sobre uma “beleza que reage”. E é isso o que tenho a dizer para eles, porque eles não suportam quando isso acontece.