Sandra.Benites.Guarani.Nhandewa Rodrigo Avelar Divulgacao out.20

 

O crítico de arte e historiador Hal Foster, um dos primeiros a apontar, nos já longínquos anos 1990, o “paradigma quase antropológico” da arte contemporânea, atentou para o fato de que, em vez se assumir uma posição crítica pós-colonial, talvez fosse urgente tomar sua própria condição de possibilidade colonialista como objeto. Isso levaria a crítica a perguntar não pela identidade dos objetos expostos e do Outro, mas sobre quem são seus narradores e suas disciplinas. Esta passagem é recuperada em entrevista do etnógrafo e poeta Pedro Cesarino a Daniel Jablonski e Isabella Rjeille no programa educativo Máquina de Escrever, da Capacete Empreendimentos. Numa inversão operada mais recentemente, a curadoria decolonial atua numa espécie de contestação dos modos como esse Outro é representado nos museus. Em alguns casos, o curador é, ele mesmo, o Outro de que falava Hal Foster há mais de 20 anos.

Em seu primeiro ano como curadora adjunta do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), a professora e doutoranda em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ) Sandra Benites, indígena da etnia Guarani Nhandewa (MS), põe em revisão seus planos de ação a respeito da curadoria de arte indígena diante da pandemia que tem dizimado várias etnias no Brasil. Em entrevista ao Pernambuco, a primeira indígena a ocupar a função de curadora de arte no país e uma das únicas na América Latina, fala sobre os desafios de representar a diversidade dos povos indígenas e de amplificar ensinamentos ancestrais sobre os cuidados com humanos e não humanos.


Você atuou como agente de saúde, professora e agora está curadora adjunta do Masp. É curioso notar que a etimologia da palavra “curador” incorpora a ideia de “cura”. Como você relaciona seus conhecimentos indígenas com a sua trajetória profissional?

Comecei a trabalhar como agente de saúde comunitária, fazendo a ponte entre a saúde e a comunidade. Comecei a estudar da estaca zero, fiz o Ensino Fundamental já com quatro filhos e quando estava finalizando, apareceu um curso para magistério, para formação de professores Guarani. Uma coisa que eu sempre pensei foi refletir sobre as minhas inquietações. Como agente de saúde, muitas vezes, fazia as visitas à comunidade, entregava remédios, mas não tinha minha própria voz. Algumas mulheres da comunidade não queriam ir às consultas específicas por causa da nossa cultura, do nosso modo de ser, porque nós temos outro modo de cuidar do corpo, de lidar com ele, diferente dos médicos. Então, quando eu tive oportunidade de ir para o magistério, fui também com meu conhecimento em relação às mulheres, algo que carrego até hoje.

Qual é o desafio ao contar as narrativas dos povos indígenas como curadora de um museu referenciado como o MASP?

O maior desafio, enquanto mulher e indígena, é mostrar essa diferença, essa diversidade [de povos], sem esquecer que dentro da própria comunidade existem outras formas de ser. Existe o teko [o modo de ser, de estar no mundo, na língua guarani] das mulheres, o teko das crianças, dos mais velhos, então como é que a gente abraça essa diversidade? Cada um tem uma forma de contar as suas narrativas. Às vezes, por ignorância mesmo, comete-se o equívoco de generalizar. Ao mesmo tempo, a partir desse desafio, comecei a pensar que não posso cometer os mesmos equívocos. Não posso deixar de mostrar as especificidades de cada um, mas também reconheço que é impossível mostrar tudo. É possível mostrar, a partir da sua experiência e da sua visão de mundo, que está todo [o conhecimento e visão de mundo] relacionado com conhecimento ancestral. Então, uma coisa comum a todos os indígenas é que todos falam desse conhecimento ancestral. Outro ponto comum é o que fala sobre a terra, como um lugar de descanso. Quando a gente fala no ywy rupa [território Guarani, visão que abarca, grosso modo, o mundo onde estão as aldeias atuais, os caminhos percorridos e os lugares ocupados pelos antepassados] é como se a gente falasse no berço da vida, o berço dos seres vivos. Então todos os indígenas falam sobre o espírito da natureza, sobre como lidar com o entorno. Por exemplo, o Davi Kopenawa, quando fala sobre xapiri [espírito da natureza para os Yanomami], a gente, enquanto Guarani, fala em mba’emo djara [espírito da natureza], como se fosse guardião da floresta, guardião do rio. Os animais, as pedras, têm o seu espírito. Então, esse sentido, todos os indígenas, mesmo falando em línguas diferentes, estão falando a mesma coisa. São essas visões que eu tenho que garantir, narrativas em qualquer lugar, porque isso é um conhecimento que precisa ser reconhecido. Porque quando a gente trata do espírito da natureza, a gente está tratando para todo mundo, não só para nós indígenas. Quando a gente fala do espaço da demarcação de terra, da garantia dos territórios, a gente não está falando apenas sobre morar, mas sobre a garantia dos seres humanos e não humanos. Estamos falando para todos. Eu estou falando como humana, como mulher Guarani.

Você fala da cosmovisão indígena e eu penso no vencedor do último Prêmio Pipa, Isael Maxakali, nos textos do Daniel Munduruku, nos artigos recentes publicados por Ailton Krenak. Você se preocupa em mostrar também essas narrativas a partir de uma diversidade de suportes artísticos, dando a ver que os indígenas fazem cinema, performance, arte visual, literatura etc?

Tenho pensado, do meu ponto de vista guarani, que um artista é um indivíduo, mas esse indivíduo carrega o próprio coletivo. Os exemplos que você citou, mais o Denilson Baniwa, artista que faz performance, a Zahy Guajajara, e várias outras mulheres que não são conhecidas, mas que têm feito trabalhos de diferentes formas de apresentação, todos falam da ancestralidade e dessa bagagem do coletivo. Isso acontece a partir de uma responsabilidade desse indivíduo de levar esse conhecimento. Eu acho bonito, porque venho observando isso. Até me emociono, porque a gente não pode esquecer o contexto histórico, o passado histórico. Falei sobre isso quando eu assumi a curadoria adjunta do Masp, de que hoje tem dois aspectos da história indígena que precisam ser discutidos: a cosmologia que todos esses indígenas carregam, nas 305 etnias indígenas consideradas aldeadas; e uma outra parte, o aspecto de que as cidades foram construídas em cima de aldeias e tem indígenas que não se identificam nem como branco, indígena ou negro. Esses parentes estão reivindicando a sua identidade. Veja que, mesmo na cidade onde eles estão, não são identificados como tal. Costumo dizer que esse indivíduo que está na cidade e que não consegue se identificar com nada, tem de começar a sua busca a partir dela, para entender porque não se identifica com a cidade. Precisamos falar sobre isso, porque é o resultado de muita violência. O processo de construção do Brasil se deu através da violência que nós sofremos e até porque muitos de nós negam que isso tem de aparecer. A gente não pode mais negar isso. O Brasil foi se construindo a partir de uma violência e da forma dessa violência. É por isso que a gente tem que falar como sujeito enquanto brasileiro. Um exemplo: eu estou perdido numa cidade, mas eu sei que a minha origem é negra, que a minha origem é indígena. É assim que a gente pode se tornar verdadeiramente brasileiro. O brasileiro tem essa confusão, tanto é que quando é branco, às vezes, reconhece sua origem italiana ou alemã. Essas pessoas confundem suas identidades e é como se elas não tivessem no chão do Brasil. É como se a gente tivesse mais referências lá atrás, lá de fora da Europa do que daqui. Aí você disse que a sua família é de origem portuguesa mas quando você chega em Portugal, você não cabe lá. Isso é algo que eu venho tentando entender. Eu não sou uma pesquisadora como djurua [não indígena, branco] pesquisa, mas a partir da fala de muitos parentes que eu encontro na cidade, falo que devemos buscar, nos fortalecer e mexer nessas feridas.

Esse é o momento de muita fragilidade para os povos indígenas, citando apenas os exemplos mais recentes, os incêndios no Pantanal, os casos de covid-19 entre os Yanomami. Tem também a disputa do STF com o Governo Federal em relação ao enfrentamento da pandemia em terras indígenas. Ao mesmo tempo, escutamos vozes indígenas amplificadas. Como você tem percebido isso?

É muito triste pensar que os indígenas estão no foco da atenção por conta dessas tragédias A gente sempre viveu em conflito. Eu lembro os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, que sempre tiveram invasões, sempre viveram a violência. Acredito que as mídias sociais ajudaram a todos se manifestarem. Na época da visibilização dos Guarani Kaiowá [2015-2017], foi através da mídia das redes sociais, do Facebook por exemplo, tanto no Brasil quanto fora, que começaram a se sensibilizar com essa causa indígena. Foi uma das coisas que me marcou um pouco. Essa nossa conversa agora, as lives que a Sônia Guajajara, tudo isso visibiliza essas questões. Eu sei que, muitas vezes, a gente tem que ter cuidado com as palavras, com o uso de alguns termos que visibilizam os indígenas, mas [os textos que tornaram visível a causa indígena nas redes sociais] já são plantinhas que a gente vai plantando. Eu desejo que todo mundo consiga falar, porque a questão é de que todas as pessoas não podem estar em todos os lugares, mas precisam estar de alguma forma presentes.

Voltando à questão da presença das mulheres na sua trajetória: em que medida o fato de ser mulher influencia o seu trabalho como curadora?

Eu sempre vou começar a partir do corpo feminino. O nosso corpo é a nossa própria experiência. Eu não tô falando do corpo em que a gente nasce, mas da forma que a gente é. É muito fundamental marcar isso. A demanda das mulheres requer outro olhar e a partir delas que a gente vai enfrentar os desafios. Até mesmo o conhecimento masculino está relacionado às mulheres. Não dá para separar, mas, às vezes, é necessário, inclusive quando se fala da “voz das mulheres”. Na universidade, percebi que você não vê o corpo de uma mãe por exemplo. Você não vê um corpo que sangra. Você não vê o corpo com seus conflitos, com as suas demandas e parece que a gente não tem voz de fato em todos os lugares. Parece que tudo é arquitetado para um corpo masculino. Não quero dizer que o corpo masculino está errado, mas parece que só o masculino fala, só o masculino consegue. Falo isso a partir do meu olhar guarani e também como mãe. Para mim, isso é uma grande questão, entender como eu me entendo em um lugar, porque tem momentos que eu não me encaixo, que eu não me encontro naquele lugar. No meu caso, por exemplo, eu tive de seguir o padrão daquele movimento para poder entrar naquele lugar, para poder questionar. Então acho que esse é o meu papel em qualquer instituição. Fazer esse espaço um espaço de diálogo, sobretudo a partir da escuta. Tudo, menos o confronto violento, porque ele só apaga o outro.

Seu trabalho é uma prática de curadoria decolonial. Gostaria que você comentasse sobre sua experiência na universidade, lugar que também tem pensado sobre as questões decoloniais, considerando que o seu olhar é informado como indígena e também como antropóloga.

É um outro desafio que eu vivo. Às vezes, eu me sinto desconfortável. Mas, ao mesmo tempo, esse desconforto me dá coragem de enfrentar não como atrito, mas como encontro, porque o encontro é um encontro de conversas. Nós vemos muitas teorias. Às vezes, me identifico com alguma informação e fico tentando traduzir para o Guarani. Hoje, uma das coisas que aprendi é que a gente sempre aprende pelo debate. Outro dia eu escrevi um texto que dizia de como nosso corpo dança. Parece que a gente tem que estar em tudo mesmo sem criar uma outra arte. Às vezes, o próprio corpo é a arte de se reinventar o tempo inteiro, o tempo todo para estar nesse lugar. Eu leio algo que acho que não está muito legal, então começo a observar de dentro [da experiência indígena] para fora. Quando eu estava na aldeia, não conseguia perceber algumas questões que eram impostas. Talvez se eu tivesse só na aldeia, não conseguiria entender esses pequenos gestos das palavras como importante. Então hoje consigo entender melhor estando fora. Claro que tem muitas coisas que eu aceito e outras que eu não aceito. Hoje me entendo como curadora adjunta, como antropóloga e como mulher indígena e é como se eu tivesse no mundo do meio. A cidade está ali, a aldeia está acolá e eu estou no meio. Eu me identifico com esse meio, mas isso também me traz muitos conflitos. O tempo inteiro tenho estar entre esses mundos. Então já é uma outra experiência, a da mulher Guarani que mora lá na cidade. Não é melhor, não é nada disso, mas é um olhar diferente. Por isso eu falo que você vai perceber as demandas a partir da sua trajetória, da sua origem. Isso é bonito porque é isso que faz a gente refletir, perceber as coisas de diversas maneiras. E a gente percebe que pode construir, que pode ultrapassar as nossas fronteiras e se equilibrar dentro de outro lugar. O fundamental é não se perder. O equilíbrio é saber o que é importante, [saber o que] usar da cidade, [saber] o que é importante utilizar na aldeia. Então, no fim são dois instrumentos de luta que fazem você conviver com o mundo de um modo diferente.

A sua chegada no Masp tem relação com a preparação de uma exposição sobre narrativas indígenas de vários países. Como a pandemia alterou a forma dessa exposição? Afinal, os povos indígenas estão sendo sacrificados pela ingerência do Governo.

A primeira notícia é que a exposição foi adiada para 2023. Na verdade, havia outras exposições, antes dela, que também foram desmarcadas, então ela não é a única adiada. Também havia a participação de indígenas de fora do Brasil. Esse seria um ano de pesquisa, de viajar para alguns países, de visitar os meus parentes Guarani em outros países. Tenho pensado que em 2021 a gente tem que falar sobre essa questão indígena e a pandemia, porque na cosmovisão indígena já prevíamos isso. Hoje escutam-se muitos especialistas falando que é por uma questão de desmatamento, do meio ambiente, mas já falávamos disso de uma outra maneira, em outra língua e ninguém acreditou. A questão agora é que se um cientista falar, tudo bem, mas a gente não é visibilizado ou, quando a gente fala, as pessoas acham que estamos falando de coisas imaginárias. Davi Kopenawa já falava da queda do céu. Ali [no livro A queda do céu] ele já explica, só que de uma forma diferente. Ailton Krenak fala disso há muito tempo. Timóteo Tupã Verá Popygua [liderança Guarani, autor de A terra uma só] escreve sobre a terra. Eu não escrevo, mas eu sei, porque minha avó me contava muitas histórias. É importante a gente deixar isso aflorar para o mundo. Estou dizendo que esse conhecimento vai ajudar a segurar essas pandemias e também vai explicar de uma forma científica.

Além dos escritores citados, que já falavam de uma resposta do planeta à ação humana, como as artes visuais têm contado essa história?

Quando eu fui fazer o trabalho do Museu de Arte do Rio [a exposição Dja Guatã Porã: Rio de Janeiro Indígena, em 2017, da qual foi co-curadora] muita gente esperou uma arte que o mundo dos brancos já deu sobre nós, indígenas. Então eu acho que a equipe tem que ter muita sensibilidade na escuta. A gente criou uma estratégia de conversa com os parentes, com as aldeias. Viajei para as aldeias guarani no Rio, que são sete, e perguntei como eles gostariam de ser representados, como eles gostariam de estar no museu. Eles disseram que queriam mostrar a história do nascimento do mundo. Foi um processo de construção naquele momento. Então não teve aquela história de ir na aldeia, buscar peças e levar para o museu. Eles fizeram tudo, fizeram os bichinhos, as onças, eles fizeram tudo isso na hora para a gente levar. Já os Pataxó disseram que queriam falar sobre discriminação. A gente fez uma conversa só com a equipe e todo mundo ajudou como pode. O Denilson Baniwa fez aquela cobra grande [cobra canoa que compôs a exposição Dja Guata Porã] na parede da própria exposição. A cobra grande é o mito da origem do mundo e o rio da Amazônia é a própria cobra grande, então cada um tem uma narrativa, mas todos os indígenas vão contar sobre a cobra grande de alguma forma, como ela surgiu e habitou a terra. A Zahy Guajajara também fez performance e tem um vídeo em que mostra o surgimento do mundo. Ela fez outras coisas, minissérie para Rede Globo, mas para mim o trabalho mais importante [dela] é essa performance.

Você falou que teve de se adequar a uma estrutura para poder estar nela e tentar mudar por dentro. No caminho inverso, o que os curadores não indígenas têm a aprender com a experiência de curadores indígenas?

Quando cheguei no Masp, eles disseram que a equipe queria muito me escutar, ao que eu respondi: nós vamos nos escutar muito. A partir disso, vamos colaborar entre nós com mobilidade. Acredito que hoje a gente pode quebrar a herança dos dominadores reconhecendo o sujeito a partir da própria sua experiência e das suas habilidades, observando onde podemos contribuir uns com os outros. Não gosto de falar de troca, mas de encontro. É importante falar de troca quando trocamos objetos, por exemplo. Mas aqui é um diálogo, é conversa, é encontro entre pessoas diferentes. Isso não é uma coisa ruim, mas quando a gente trata de conhecimento, diálogo, conversas, é um encontro mesmo entre pessoas diferentes. É a partir disso que a gente vai ter a habilidade de transitar em um outro mundo e aí a gente pode pensar junto sobre o que é coletivo e individual. Isso é muito importante para nós, curadores. Importante porque os curadores precisam ter vários olhares. É isso que vai fazer a gente entender o lugar do outro, receber e sentir, e não só ver como é o lugar do outro. Não é só entender, é estar um pouquinho no lugar do outro, interagir com esse outro lugar.

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