Professor do curso de Direito da Universidade Federal de São Paulo, Renan Quinalha é advogado e sociólogo. Conhecido por sua militância no campo dos direitos humanos, em especial pelos textos de intervenção crítica sobre a questão LGBT, foi assessor jurídico da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo e consultor da Comissão Nacional da Verdade (CNV) para assuntos de gênero e sexualidade.
Além de integrar diversas obras e coletâneas como autor, co-organizou livros notáveis, como Ditadura e homossexualidades: Repressão, resistência e a busca da verdade (EdUFSCar, 2014) e História do Movimento LGBT no Brasil (Alameda, 2018). Neste mês, publica Espectros da ditadura: Da Comissão da Verdade ao bolsonarismo. Organizado com Edson Teles e editado pela Autonomia Literária, o livro conta com artigos que analisam a trajetória recente da desdemocratização e do recrudescimento da violência política no país. Em 2021, publicará pela Companhia das Letras sua tese de doutorado, Contra a moral e os bons costumes: As políticas sexuais da ditadura brasileira.
Presença constante nas redes sociais, tem ministrado cursos on-line sobre a história do Movimento LGBT no Brasil e no mundo. Além disso, divide com a economista Laura Carvalho o podcast Entretanto, em que discutem assuntos importantes da semana e traduzem o economês e o juridiquês do noticiário.
Em diferentes momentos desta entrevista, Renan articula posições conflitantes sem acomodá-las em falsos consensos. Ao estabelecer um intrincado jogo de perspectivas, busca abrir caminhos afirmando uma zona de tensão produtiva, pautada pela ética e pelo compromisso com as lutas por memória, verdade e justiça.
Sua dissertação de mestrado, Justiça de transição: Contornos do conceito (Expressão Popular, 2013), propõe uma análise crítica do conceito de “justiça de transição”. Como a pesquisa se articula com sua atuação como assessor jurídico da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo e como consultor da Comissão Nacional da Verdade?
Minha dissertação, defendida em 2012, foi um dos primeiros trabalhos acadêmicos em universidades brasileiras sobre o conceito de justiça de transição, e acabou tendo uma grande repercussão. Ali, eu buscava colocar em perspectiva crítica a visão formal, minimalista e liberal de democracia que vinha embutida na ideia hegemônica de justiça de transição, importada diretamente do Norte Global sem as devidas mediações para o contexto brasileiro.
Por conta dessa pesquisa e de minha atuação no campo dos direitos humanos, fui convidado a trabalhar na primeira Comissão da Verdade instituída no país, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva. Foi uma oportunidade incrível, pois além de ter sido responsável por apurar as violações de direitos humanos ocorridas no estado mais populoso do país, que naturalmente concentrou o maior número de casos, nossa Comissão foi marcada por uma postura de compromisso inegociável no trabalho de justiça com os familiares de mortos e desaparecidos. Além disso, sempre trabalhamos do modo mais transparente e participativo possível, com audiências públicas e em diálogo permanente com a sociedade civil.
Quando a Comissão Nacional da Verdade foi efetivamente instituída, passamos também a disputar os rumos dela, exigindo que o processo da busca da verdade já se tornasse, em si mesmo, uma política de reparação às vítimas e à sociedade de modo mais amplo. Passamos também a pautar temas pouco lembrados na historiografia e nas políticas públicas sobre o período da ditadura, como as questões de gênero, sexualidade e raça. Junto com o brasilianista James N. Green, fizemos o capítulo específico sobre diversidade sexual para o relatório final da CNV.
Foram avanços significativos no trabalho de memória em relação à ditadura, a despeito dos diversos limites, obstáculos judiciais e negociações políticas que impediram a concretização da justiça. A experiência das comissões da verdade e sua relação com o autoritarismo crescente no Brasil é um tema bastante complexo e merece ainda maiores aprofundamentos.
Em sua tese de doutorado, você afirma que, sob o lema da defesa da “moral e dos bons costumes”, a ditadura civil-militar estruturou um complexo aparato repressivo contra corpos tidos como dissidentes. De que forma as ações foram implementadas e como foi o processo de historicizar essas memórias, em geral negligenciadas nas reflexões sobre o período?
Vivemos um momento particularmente delicado sobre as memórias do autoritarismo recente no Brasil. Voltaram a circular no debate público, em grande medida graças ao atual governo, discursos que reabilitam a ditadura, que dignificam torturadores, que ameaçam com um “novo AI-5”. Esse contexto só reforça a importância de termos uma compreensão mais ampla e profunda dos efeitos da ditadura na nossa sociedade.
Durante muito tempo, prevaleceu a leitura reducionista de que a ditadura seria apenas um regime político autoritário que se reproduzia exclusivamente nas instituições do Estado e de que o “entulho” autoritário desapareceria naturalmente com a redemocratização. Essa compreensão perdia de vista o enraizamento social do autoritarismo, sustentado por um setor expressivo da sociedade e com persistência em nossa cultura política.
A ditadura não foi apenas a sucessão de alguns generais na presidência. Nela, estruturou-se um complexo aparato com pretensão de controle absoluto da vida social. A dimensão privada da sexualidade e dos laços familiares foi considerada central para o projeto autoritário. Concebeu-se um verdadeiro laboratório de subjetividades, perpassando diversas agências de inteligência, segurança e censura para formatar corpos, desejos e identidades à imagem e semelhança dos valores morais conservadores que embalaram a ditadura. O período não inaugurou a LGBTfobia em nosso país, mas certamente contribuiu para institucionalizar e normalizar essa violência.
As políticas sexuais autoritárias se materializaram em repressão policial contra os guetos LGBT, intensificação da censura de diversas expressões artísticas por motivação moral, produção de dossiês e relatórios sobre a vida sexual dos cidadãos, expulsão de servidores civis e militares acusados de “homossexualismo”, dentre diversas outras formas de violação direta e indireta dos direitos humanos dessa população.
Nos últimos anos, sobretudo após o relatório da CNV, temos visto um crescimento significativo no número de pesquisas e publicações envolvendo a dimensão da repressão à diversidade sexual e de gênero. Mesmo o movimento LGBT, que, salvo exceções, contava com poucos esforços para cultivar sua história e memória, está abrindo cada vez mais espaço para iniciativas de constituição e preservação de acervos e registro de memórias, assim como para disponibilização dessas fontes para pesquisas e produção de conteúdos. Creio que vem aumentando a consciência da importância do passado para enfrentarmos desafios do presente e pensarmos um novo futuro.
Ainda que o levante de Stonewall (1969) seja um marco inquestionável, você tem chamado a atenção para os protoativismos do final do século XIX e início do XX. Na sua leitura, que mudanças políticas e culturais impulsionaram ativismos e revoltas que possibilitaram a passagem da vergonha ao orgulho?
A história LGBT tem se produzido a partir de fragmentos e cacos. Há um processo sistemático de silenciamento e apagamento que afeta a produção e circulação das memórias e narrativas capazes de dar materialidade a uma identidade e/ou comunidade. Somos privados de partilhar de uma história própria, uma linhagem, algo que só conseguimos acessar e encontrar se tomarmos consciência e buscarmos um inventário dessa herança preciosa que nos foi escondida.
Como toda constituição identitária, há relações de poder implicadas na forma como corpos e desejos são transformados em sujeitos. Discursos religiosos, legais, criminológicos, médicos conjugam-se para atravessar e nomear, desde fora, as existências. Assim, ninguém “nasce” LGBT, somos inventados e descobertos a partir do olhar e da fala do outro. “Maricas”, “viadinho”, “menininha” são os primeiros xingamentos — da escola à presidência da República — que nos fazem perceber que estamos fora da norma.
Por isso que é encantador esse processo de converter, mesmo nas condições mais adversas de violência, o estigma e a vergonha em motivo de orgulho. Essa me parece ser a mais potente realização — sempre inconclusa e em disputa na sociedade — do movimento LGBT: escancarar e alastrar a consciência entre as pessoas de que seus desejos e identidades não devem ser escondidos em armários e não podem ser alvo de violências; ao contrário, são dignos de respeito, reconhecimento e motivo de orgulho por sustentarem uma posição de lealdade ao que somos e ao que sentimos.
Historicamente, há várias formulações que o movimento LGBT concebeu para dar conta dessa tarefa. Gosto sempre de lembrar que houve uma luta por diversidade sexual antes de Stonewall, pois o imperialismo cultural norte-americano muitas vezes apagou referências de mobilização anteriores, dentro e fora dos EUA. Não nego a importância da revolta no bar Stonewall Inn, em 28 de junho de 1969, para os deslocamentos operados nas lutas LGBT e sua influência em diversas partes do mundo, mas é preciso lembrar e conhecer as condições objetivas e subjetivas que culminaram com a eclosão desse episódio.
Não se pode ignorar o protoativismo que teve por epicentro a Alemanha em fins do século XIX e início do século XX, com o objetivo principal de descriminalizar e despatologizar a homossexualidade. Figuras como o jurista Karl Heinrich Ulrichs (1825–-1895) e o médico Magnus Hirschfeld (1868–-1935) foram fundamentais para o destaque que o tema receberá no final do XIX e, sobretudo, durante o período da República de Weimar. A ascensão do nazismo, que combinava autoritarismo político e conservadorismo moral de modo bastante semelhante ao que certa extrema direita faz ainda hoje, vai tentar destruir esse legado e apagá-lo da história.
Nos EUA, é preciso considerar, por exemplo, a emergência de uma subcultura gay décadas antes de Stonewall, inclusive com grupos homófilos organizados e atuantes, como o Mattachine Society e o Daughters of Bilitis. O contexto da luta pelos direitos civis das mulheres e das pessoas negras foi fundamental para abrir os caminhos para o ativismo gay. Além disso, as mobilizações de 1968 e a resistência à Guerra do Vietnã alteraram o modo como a juventude, embalada pela contracultura, olhava para o prazer e a sexualidade. Isso tudo, a meu ver, é importante para relativizar certos mitos difundidos e ainda pouco refletidos.
Sob a sua curadoria, está em cartaz no Memorial da Resistência de São Paulo a mostra Orgulho e resistências: LGBT na ditadura, realizada em parceria com o Museu da Diversidade Sexual. Indo além das narrativas da repressão, a exposição se constrói, como o título evidencia, a partir das experiências de resistência. De que forma o processo coletivo de saída do armário se desenvolveu no Brasil até se transformar em Movimento organizado? E como foi a experiência de apresentar sua pesquisa nesse novo formato?
O “armário” é um dispositivo central na regulação da vida das pessoas LGBT, como bem desenvolveu a teórica Eve Sedgwick: uma revelação sempre à espreita, algo que permanentemente nos ameaça como um “segredo aberto”, pronto a ser descoberto. Assim, ser LGBT é negociar, não sem conflitos, o grau de visibilidade do desejo e da própria identidade. As saídas do armário são um processo em aberto e permanente. A cada contexto e ambiente, somos interpelados a fazer novos juízos sobre como devemos agir.
Na história brasileira, há diversos registros de pessoas que, desde a época colonial, desafiaram normas de comportamento no campo do gênero e da sexualidade. Homens e mulheres que não se conformavam com o binarismo e com a heteronormatividade, transitando entre as fronteiras e, portanto, ostentando atos de resistência e transgressão. A despeito das constantes violências, essas pessoas lograram realizar seus desejos, construir territórios de sociabilidade, circular pequenas publicações, criar modos de vida mais autênticos e até mesmo estruturar redes de proteção e afeto entre iguais.
No entanto, foi apenas no final da década de 1970, com o processo de distensão e abertura em curso, que esses agenciamentos pulverizados e associativismos mais precários deram lugar a um movimento social organizado. Foi sob uma ditadura em agonia, mas na qual ainda imperava a repressão contra as dissidências de diversas ordens, que a organização política de pessoas LGBT foi tomando essa forma tal qual a conhecemos hoje: agrupamentos com existência pública, reuniões periódicas, protestos de rua, diálogo com autoridades e disputa de visibilidade na imprensa.
Participar de uma exposição foi uma experiência bastante interessante e nova para mim. Geralmente, nós, pesquisadores, estamos mais habituados ao formato escrito ou oral de nossos trabalhos. Ainda que eu seja um frequentador de museus, e que minha pesquisa envolva fontes documentais de diversos tipos, fato é que meus projetos profissionais nunca passaram por pensar esse conteúdo visualmente. Mas a ideia de traduzir para uma nova linguagem e dialogar com um público mais amplo foi um desafio que me motivou a aceitar o convite para essa curadoria.
A exposição foi fruto de um trabalho de pesquisa, expografia e montagem envolvendo muita gente, e o resultado final ficou muito bonito. Aproveito para convidar quem passar por São Paulo até abril de 2021. Basta agendar previamente e respeitar todos os protocolos de segurança praticados pelo Memorial da Resistência neste momento de pandemia.
Você se pronunciou algumas vezes defendendo a necessidade de criminalizar a LGBTfobia no Brasil, buscando, ao mesmo tempo, estabelecer um diálogo com aqueles que criticavam a luta pela criminalização sob o argumento de que ela reforçaria o Estado Penal e a racionalidade punitiva. Resumindo bastante o seu argumento, você declarou que não se tratava de uma defesa em abstrato do direito penal, mas de assumir as contradições que tal posicionamento implicava, mantendo a crítica ao sistema penal sem prescindir integralmente de seu uso, por conta da legitimidade que ele ainda ocupa na sociedade. Você poderia comentar sobre as divergências históricas em torno das negociações do Movimento LGBT com o Estado, não só no que diz respeito aos processos de criminalização, mas em relação à judicialização dos direitos de maneira geral?
Gosto sempre de dizer que, assim como temos comunidades LGBT, temos também movimentos LGBT, ambos sempre no plural. Isso porque tendemos a supor uma homogeneidade que não existe. Não é porque se trata do campo dos sujeitos que estão fora da norma que todos são iguais. Em verdade, há uma pluralidade na composição e diversidades ideológicas que se refletem, inclusive, em perspectivas distintas sobre quais devem ser as estratégias e táticas do movimento organizado.
A relação com o Estado tem sido uma questão delicada e central para os movimentos sociais. Relacionar-se com as instituições, formatar as reivindicações na linguagem compreendida pela burocracia e disputar os espaços sem se deixar cooptar são preocupações inescapáveis. De início, havia pouca margem para o movimento dialogar com o Estado sobre suas demandas, até mesmo pelo fato de surgir sob uma ditadura. Com o processo de redemocratização, que coincide em grande medida com a epidemia do HIV/aids, o movimento passa a estabelecer parcerias e trocas mais próximas com os poderes públicos.
As conexões e os trânsitos de ativistas pelas organizações da sociedade civil e pelas instituições estatais renderam avanços significativos, especialmente na forma de políticas públicas. Mas há uma precariedade aí; afinal, depende-se essencialmente dos Poderes Executivos, marcados por alternâncias constantes e descontinuidade nas ações.
Em relação aos direitos, com o Legislativo bloqueado por uma bancada fundamentalista religiosa, o caminho mais viável, como em diversas outras democracias constitucionais, é o do Poder Judiciário. A despeito de ser um poder conservador e corporativista, sua vocação contramajoritária o coloca como um importante aliado das lutas por diversidade sexual e de gênero. Foi perante a nossa Suprema Corte que a maior parte dos direitos LGBT foi reconhecida no Brasil.
Mas isso não se passa sem contradições. A criminalização é talvez o exemplo mais flagrante de como bandeiras emancipatórias podem reforçar estruturas que reproduzem racismo e classismo, como nosso sistema penal. O Direito, para incluir um grupo, tem de excluir outros, já que o reconhecimento opera relativamente. Reconhecemos a união homoafetiva, mas só se ela se formatar conforme o padrão tradicional das famílias. Garantimos a identidade de gênero para pessoas trans, mas apenas — e tão somente — se elas se encaixarem e reproduzirem o padrão binário de gênero. Excluímos para incluir.
Desse modo, é preciso ter um olhar mais crítico em relação a esse processo, pois reconhecimento de direitos não significa libertação e tampouco efetividade. Nos últimos dez anos, conquistamos diversos direitos, mas assistimos ao crescimento da violência contra pessoas LGBT. Ademais, com a postura de judicialização permanente das demandas, o efeito colateral é o movimento fortalecer um Poder que já vem concentrando cada vez mais competências e prerrogativas sem qualquer controle social e democrático. O Judiciário brasileiro precisa ser democratizado, sob pena de sermos governados por uma tecnocracia togada. Essa deve ser uma agenda fundamental para todos os movimentos sociais no Brasil atual.
Quem acompanha os desdobramentos do Movimento LGBT (sigla constantemente atualizada no debate público) sabe que ele é permeado por inúmeras divergências políticas. Nos últimos anos, por exemplo, muitas dessas disputas se deram em torno da noção de “identidade” — ora pensada como forma de emancipação, ora como forma de normalização. Soma-se a isso o impacto provocado pela teoria queer , impulsionando críticas às perspectivas essencialistas para compreensão do gênero e da sexualidade e resgatando uma postura contracultural que parecia deixada de lado. Como você articula essas divergências no seu trabalho?
Essas disputas entre visões mais conciliadoras e mais radicais sempre estiveram presentes na trajetória do movimento. Para alguns setores, a assimilação e a integração seriam os objetivos, o que implica na escolha de uma atuação mais moderada. Para outros, seria importante não apenas a inclusão, mas a mudança radical e profunda da ordem social e sexual que marginaliza os corpos LGBT. É evidente que entre essas duas posições, descritas aqui de modo um tanto esquemático, há uma série de nuances e matizes em que elas aparecem combinadas.
De qualquer modo, é importante notar que essas posições políticas foram sempre inspiradas e vinculadas a concepções teóricas sobre as identidades LGBT. Exemplo disso é como prevaleceu no ativismo pré-Stonewall, na Alemanha e nos EUA, uma visão de essencialismo estratégico: afirmava-se que a homossexualidade era uma predisposição inata, algo de fundo hormonal. Por outro lado, pós-Stonewall, ganha força uma perspectiva construcionista do gênero e da sexualidade, que afirma a inscrição dessas categorias na história e na cultura. A teoria queer vai radicalizar essa compreensão, afirmando a possibilidade de uma política LGBT sem necessidade de cair-se em uma cilada identitária.
Ambas as perspectivas, largamente utilizadas como esquemas conceituais para ler a história da sexualidade, me parecem não excludentes. Ainda que eu prefira uma visão construcionista, há uma tensão interessante aí que pode ser cultivada e potencializada para a construção da cidadanização dos sujeitos LGBT. A depender do problema que se queira enfrentar, teórica ou empiricamente, cada uma delas pode fornecer instrumentos específicos de compreensão. Além disso, cada uma pode embasar discursos ativistas específicos. Hoje em dia, por exemplo, em que lideranças religiosas neopentecostais condenam a homossexualidade por entenderem-na como prática que decorre de uma escolha imoral do indivíduo, o essencialismo estratégico pode ser um contradiscurso funcional.
A partir dos anos 1980, a epidemia de HIV/aids alterou drasticamente os termos do debate e os rumos do Movimento LGBT. No entanto, você tem alertado para a irrupção de um fenômeno que se poderia tratar como uma nova “onda” nos rumos do movimento. É possível afirmar que estamos diante de uma radicalização da agenda no país? Quais perspectivas você enxerga para as lutas nos próximos anos?
O movimento LGBT brasileiro nunca foi tão plural em sua composição ideológica, tão capilarizado territorialmente, tão diverso nas formas de ativismos e tão fortalecido pelo conjunto de conquistas de reconhecimento e visibilidade. Essa situação é fruto do amadurecimento de condições objetivas e de elementos subjetivos dessas últimas quatro décadas. Assim, é impossível não notar como as lutas do passado imprimiram suas marcas na realidade de hoje. Temos todos os principais direitos reivindicados pela comunidade mundial formalmente reconhecidos aqui no Brasil. Isso é muita coisa.
No entanto, isso também nos apresenta diversos desafios. A violência não desapareceu com a maior visibilidade e reconhecimento. Os direitos não saíram do papel para boa parte das pessoas, sobretudo para aquelas que vivem fora dos grandes centros, nas periferias e contextos rurais, que são negras, pobres etc. Há, ainda, a ascensão da extrema direita, aqui e em outras partes do mundo. Quando pessoas LGBT começam a ter seus direitos reconhecidos, a democracia liberal parece ter perdido sua capacidade de apelo. Fomos incluídos em um modelo de cidadania que está em evidente crise.
Essa situação impõe um paradoxo a ser enfrentado nesse próximo período. Para além de uma reinvenção da agenda, uma vez que os principais direitos estão consagrados, parece-me que o movimento precisará radicalizar suas reivindicações, tensionar os limites dessa ordem e provocar um curto-circuito nas instituições para ajudar a construir um novo tipo de democracia. Sem democracia não há direitos LGBT: essa é uma constatação fundamental. Mais interseccionalidade, alianças mais amplas, novas políticas do afeto e do cuidado, formatos organizativos mais horizontais e plurais, um programa radical de disputa das mentes e corações são urgências para um movimento que esteja à altura desse ainda estranho século XXI.