De toda forma, existe uma pergunta implícita e que precede o mote do livro Como ler os russos* (Editora Todavia), do jornalista e tradutor Irineu Franco Perpetuo. Antes de pensar em “como”, poderíamos imaginar algo como: “Por que ler os russos?”. Contudo, essa questão parece já ter resposta alicerçada, um pressuposto baseado por anos da literatura russa ocupando espaço central dentro do debate literário nacional. Dessa forma, o tradutor ancora sua pesquisa em uma espécie de manual em narrativa cronológica dessa literatura, tomando como referência a recepção dos escritores russos no Brasil, abordando desde disputas internas e externas, passando por movimentos geopolíticos e a identidade nacional russa, até questões mercadológicas.
Em entrevista pro Pernambuco, Irineu Franco Perpetuo fala sobre a construção do livro, as nuances das disputas e as narrativas canônicas da literatura russa.
A chegada do romance russo ao Brasil foi parte de um processo iniciado na França. Boa parte dessa história da literatura russa está interessantemente ligada aos movimentos geopolíticos, às disputas culturais entre a identidade russa e o lugar dela no continente europeu. Para alguns essa chegada da literatura russa ao Brasil se deu “de repente”. Outros dizem que ganhou força por trabalhar “um realismo e tragédia que se relaciona com a literatura brasileira”. Como podemos entender a forma como essa literatura penetrou não só no sentido do mercado, mas como influência para a literatura nacional?
A grande pergunta (que não tento responder no livro) é por que a literatura russa tem tamanho impacto aqui entre nós. Não tenho dados, mas olhando os catálogos das editoras e as prateleiras das livrarias (quando era possível sair de casa e fazer isso), a presença da literatura russa no mercado brasileiro não deixa de impressionar. Desde seu desembarque por aqui, na virada do século XIX para o XX, a literatura russa impactou e vem impactando leitores, escritores e as mais diversas esferas do pensamento nacional. E isso sem a presença de uma comunidade significativa de russos ou descendentes na população; apenas pela força e valor intrínseco das obras literárias. Constato o fenômeno, mas não tenho condição nem intenção de explicá-lo.
Uma das principais lacunas da recepção da literatura russa no Brasil é a poesia, e você trata isso em partes do livro a partir de um prisma de situações, que vão desde a tradução até o próprio lugar dessa poesia fora da Rússia. Inclusive de nomes como Púchkin, que no Brasil teve trechos traduzidos por Haroldo de Campos, que também traduziu Maiakóvski. O que você acha que motiva essa possível ausência da poesia em comparação à penetração da prosa russa? O quão parecida é essa situação em outros países?
O maior descompasso de recepção de escritor russo em seu país e no exterior é Púchkin, que na Rússia tem uma estatura de “pai fundador” (tipo Dante, Shakespeare, Goethe, Camões, Cervantes) e, fora de lá, é bem menos difundido do que Dostoiévski. Creio que esse descompasso deve-se justamente ao fato de Púchkin ser, essencialmente, um poeta, e a poesia padecer mais em tradução. Quanto mais distantes as línguas e as culturas, mais difícil a tradução fica. E poesia, em geral, no campo da literatura, parece-me ter menos difusão e popularidade do que prosa. Por outro lado, em uma frase que cito no livro, Brodsky afirma que “há dois milagres russos, a frota russa e a poesia russa”. Acho que vale a pena conhecer este segundo milagre.
Acho que também tem uma tessitura de constante disputa muito interessante no livro, tanto disputas internas, quanto disputas externas da literatura russa. Uma das grandes foi entre Tolstói e Dostoiévski, com o primeiro reclamando sobre disparidade de pagamentos até Tolstói tratando como duvidosa a qualidade do texto de Dostoiévski. Como você enxerga essa relação de oposição muitas vezes criada entre os dois?
Não podemos nos esquecer também de Turguêniev, que esteve em constante atrito tanto com um quanto com outro. As querelas na literatura russa, na realidade, são uma constante e adquirem especial importância pelo próprio status especial que a literatura desfrutou por tanto tempo na vida daquele país. Como, na Rússia, a literatura nunca foi “apenas” literatura, as disputas literárias nunca foram apenas “disputas” literárias. Podemos comparar à situação da ópera na França no século XVIII, com inúmeras querelas (como a Querelle des Bouffons, ou os embates entre apoiadores de Gluck e Piccinni) funcionando como válvulas de escape para debates políticos e sociais interditados em uma sociedade absolutista. A oposição entre Tolstói e Dostoiévski tem apelo particular porque talvez se trate dos dois escritores russos mais conhecidos fora das fronteiras do país. É uma briga de cachorro grande.
Existe também uma história de apagamento das escritoras, que você aborda mais no capítulo 7, intitulado "Vivendo sob o fogo: Utopias e distopias". Como você enxerga essa vida dupla de utopia e distopia política russa e da sua literatura? E também como a história quase secreta dessas escritoras vive no meio disso?
Na verdade, as escritoras russas foram conquistando espaço cada vez maior ao longo do século XX, e não podemos nos esquecer de que o último Nobel de Literatura da língua russa foi obtido por uma mulher – Svetlana Aleksiévitch. Talvez hoje a poesia na Rússia seja uma arte essencialmente feminina, e prosadores como as duas Ludmilas – Ulítskaia e Petruchévskaia – vem sendo traduzidas e divulgadas inclusive no Brasil. No livro, falo não apenas das poetas absolutamente inescapáveis do século XX – Tsvetáieva e Akhmátova –, como tento mapear alguns nomes contemporâneos, e busco trazer para o leitor brasileiro escritoras menos conhecidas de épocas anteriores – como Nadiejda Dúrova, essa Diadorim russa, que enfrentou as tropas napoleônicas fantasiada de cossaco. De qualquer forma, a luta pela visibilidade feminina é global, e ainda há muito a ser feito em todos os campos e países.
Quanto a utopias/distopias: a Rússia foi o palco da tentativa de implantação de uma das mais visionárias utopias políticas já imaginadas e, ao mesmo tempo, foi também o teatro das mais tétricas distopias. Não por acaso, tudo isso está refletido de forma dramática em sua literatura.
Acho que o grande paradigma representante da literatura nos anos mais rígidos da antiga União Soviética é o tamizdat (publicado lá) e o samizdat (autopublicação). O primeiro tratava da literatura soviética censurada, que conseguia edição estrangeira e voltava a circular secretamente no país. O samizdat, uma espécie de autopublicação de autores que circulavam internamente no país, “de mão em mão”. Como a literatura russa se transmutou e sobreviveu a contextos como esse?
Praticamente toda literatura russa que conhecemos no Brasil (inclusive os grandes clássicos do século XIX) foi criada sob censura, e, ao longo dos tempos, leitores e escritores tiveram que bolar artimanhas para driblar as proibições das autoridades. No tempo da URSS, samizdat e tamizdat garantiram a pujança e a sobrevivência da literatura russa mesmo nos períodos mais sombrios de censura e controle. Foram estratégias fundamentais para tentar mitigar os terríveis efeitos do implacável isolamento cultural que se tentava impor ao país, de manter ideias em circulação, de inserir um pouco de ar fresco em um ambiente intelectual claustrofóbico e sufocante.
Ao tratar da literatura russa pós-soviética, você traz uma passagem de Ievguêni Dobrenko, que diz: “A literatura na Rússia hoje é livre porque ninguém precisa dela. As funções de propaganda e luta política saíram da literatura para outras mídias: tv, internet, etc”. Qual é o lugar contemporâneo dessa literatura, sempre tida como muito mais que literatura, num momento em que “ninguém precisa dela”?
Devo confessar que, ao ver os russos falando da decadência da literatura em seu país, sinto-me um pouco um torcedor de uma nação que nunca foi à Copa do Mundo assistindo a debates sobre a decadência do futebol brasileiro... Obviamente, é inegável que a literatura na Rússia não desfruta mais do protagonismo inconteste na vida intelectual nacional que exerceu durante tanto tempo. Por outro lado, a presença da literatura por lá ainda impressiona muito – ainda mais quando pensamos no contexto brasileiro.
*O livro está em pré-venda no site da Editora Todavia e tem lançamento marcado para o dia 19/04.