Entrevista Vivian Abenshushan Secretaria de Cultura Ciudad de Mexico CC BY SA 2.0 Wikimedia Commons 2 

 

A escritora e editora Vivian Abenshushan responde aos próprios e-mails, senta na calçada para tomar chelas (cervejas) com os alunos no fim dos laboratórios de experimentos de escrita e concede bolsas para quem puder chegar mais cedo e ajudar na organização do material para a experiência do dia. A recorrência de metáforas usando "tremores" lembra que é mexicana, já que esse assunto aparece sempre no imaginário das pessoas naquele país. Ela combina literatura com novas tecnologias, depois de uma trajetória de questionamento dos espaços e discursos convencionais do mundo literário. Forma coletivos efêmeros para performances no espaço público, que se dissolvem logo após a ação. Seus laboratórios são cada vez mais procurados por escritores e artistas da Cidade do México, para desautomatizar a expressão escrita.


Você tem uma trajetória particular. Mais do que pouco convencional, trata-se de uma trajetória rebelde na literatura/escritura. Como você resumiria esse caminho?

Comecei a escrever em uma época difícil: os anos 1990, que foi a década da instauração do neoliberalismo, um sistema global que operou transformações radicais, não só na economia e na política, mas também nas formas de desejo, nas aspirações e nas subjetividades. Isso também afetou a literatura, que foi se tornando um espaço hostil, de competição, agentes literários, novidades incessantes, um aparato em que o coletivo era visto com receio. Nessa década do “fim da História” e do “fim das ideologias”, não era fácil sair dos estereótipos por intermédio dos quais falava a literatura. O autor-como-marca e a pressão constante para assumir formas de autoexploração no mercado das oportunidades são algumas de suas formas mais visíveis. Além disso, a narrativa do “não existe alternativa” apagou todo um território de narrativas dissidentes, transformando-se em um novo senso comum, fora do qual não era possível pensar o mundo. Sempre me senti forasteira no tipo de conversas e interesses que imperavam na literatura daquele momento (acho que, por sorte, as coisas mudaram). Em certo momento, decidi correr o risco de escrever do lado de fora dessas convenções. Assim surgiu Escritos para desocupados (2013), um livro de ensaios contra o trabalho e a triagem de algumas dissidências, como Luther Blisset (um pseudônimo multiusuário que produziu escritos a muitas mãos e diversas intervenções de guerrilha da comunicação na internet), ou o movimento dos trabalhadores precarizados. É um livro publicado sob licença copyleft, para baixar grátis, que, além de tudo, tem uma página (escritosdesocupados.com) onde eu compartilho o processo de pesquisa, os hiperlinks e outros recursos, que acompanharam a escrita desse livro lento, lentíssimo, que incita ao ócio e à renúncia a uma vida domesticada pelo imperativo da produtividade. A partir daí, tudo para mim tem sido um deslocamento da escritura a outros territórios. Mesmo que escrever “de fora”, como diz a escritora Sylvia Molloy, “não é uma posição fácil, porque você fica exposta às intempéries”, também é verdade que abre possibilidades imensas. Porque as escrituras da intempérie são escrituras abertas à mutação, à experimentação, que é, em última instância, o que mantém viva a linguagem da literatura.

O que é o BLA: Espaço de Experimentação Escrita? Quais são suas inspirações?

A busca por outras formas de escrituras foi me aproximando de uma série de práticas artísticas que, nas últimas décadas, encaminharam seus modos de fazer na direção da configuração de comunidades experimentais, modos de associação inusitados, invenção de outras formas de existência, assim como processos de aprendizagem e organização política. Refiro-me ao teatro participativo, à dança expandida, aos processos colaborativos na arte. Nesses processos coletivos se desincorporam os modos de produção da arte moderna, desmontando os muros entre o espectador e o artista, entre o leitor e o autor, entre a coreógrafa e o bailarino, estremecendo as hierarquias. Bom, então em certo momento senti que era hora de a literatura se deixar afetar por esse terremoto. Comecei então a organizar laboratórios de escritura coletiva, microssimpósios, escolas imaginárias, grupos de estudos e ações no espaço público, onde fui ensaiando a criação de dispositivos onde a escritura se desdobrava como experiência cooperativa, extrapolando a autoria individual. Eu me interessei por proporcionar encontros em que a linguagem, que é nosso espaço comum, fosse sobretudo um espaço micropolítico. Nesses laboratórios surgiram algumas práticas que agora estou aprofundando e que, talvez, já não são literatura, mas outra coisa: escrituras da escuta, escrituras da presença, escrituras da situação, escrituras da hospitalidade e do encontro. Quando falo de outras formas de escritura, também quero dizer: outras formas de fazer mundo. Esses laboratórios enfim encontraram um lugar físico a que eu nomeei BLA: Espaço de Experimentação Escrita, que se hospedou, até antes da pandemia, na Pandeo, uma casa gerida por artistas muito jovens, onde aprendi um montão de coisas, graças à proximidade com outros saberes.

Seu último livro, Permanente obra negra (ainda inédito no Brasil), lançado em 2019, é feito com plágios, cópias, recortes e intervenções em textos já existentes. Qual o sentido dessa composição nos tempos atuais? E por que a evocação do negro?

Acredito que sempre escrevemos com palavras emprestadas, ou seja, que a escritura, como qualquer ato de transmissão cultural, não é feita de maneira solitária e que faz parte de uma rede complexa de relações históricas, sociais, estéticas, políticas e éticas. Muitas vozes falam por intermédio de nós, quando escrevemos, somos uma multidão. Acontece, além disso, que as novas tecnologias digitais, já há tempos, fizeram tremer os vários mitos românticos, como o da inspiração, o da originalidade, a autoria, o gênio ou, inclusive, a obra. Em questão de segundos, podemos transferir toneladas de linguagem de um arquivo a outro e isso tornou impossível o paradigma da obra original. Muitas práticas contemporâneas de escritura têm a ver com re-escrever, re-contextualizar, re-ordenar, re-enviar, re-ciclar, mas também a ver com copiar, colar, arquivar, transferir, recortar, plagiar, transcrever materiais não necessariamente literários (mesmo que muitas vezes sejam) para criar novas leituras desses materiais. (Todos esses verbos suplantarão aqui o verbo escrever e questionarão seus status). Esses procedimentos já tinham sido utilizados pelas vanguardas e pós-vanguardas do século passado: extrair um objeto de seu contexto original para colocá-lo em um novo contexto estético (que pode também ser um contexto subversivo): desde o collage até o détournement ou a antropofagia dos concretistas, que foi a forma, como escrevo em Permanente obra negra (www.permanenteobranegra.cc), em que “o plagiário devorou seu colonizador”. Em todos os casos, trata-se de assumir posições mais críticas diante das relações de poder no interior da linguagem.

Por outro lado, a evocação do “negro” em Permanente obra negra (um múltiplo publicado em formatos diferentes: um codex, um ficheiro de folhas soltas, um livro com corte personalizado e um algoritmo na internet), tem a ver, por um lado, com desvelar as formas como a indústria editorial condena o plágio, mas ao mesmo tempo, pratica arbitrariamente a pirataria literária. O negro literário é o escritor invisível de livros que serão assinados por outros. Em Permanente obra negra proponho uma insurreição dos negros literários, que decidem usar o anonimato como forma de escritura coletiva, através de fragmentos extraídos de outros textos, manipulados, reescritos, plagiados. O negro é aí uma denúncia das formas de extrativismo simbólico, mas também uma potência, uma forma de rebelião.

Um dos pontos centrais dos seus laboratórios de escrita na Cidade do México é a importância da reunião presencial, de recobrar o contato menos virtual e mais real com o outro. Recentemente, em uma pandemia mundial, temos vivido momentos de isolamento e de trabalho às vezes muito mais intenso. Toda nossa vida doméstica está contaminada de trabalho. O que você tem enxergado dessa experiência?

Num primeiro momento, como aconteceu com tanta gente cujas práticas se fundam na presença, fiquei paralisada, porque o traslado ao dispositivo digital do que acontece quando os corpos se encontram para escrever juntos me pareceu impossível… No entanto, também me parecia urgente encontrar modos para que pudéssemos habitar juntos a incerteza, menos isolados. Então, comecei a explorar laboratórios que implicassem a escuta e o movimento dos corpos, mesmo que estivéssemos à distância. Um desses laboratórios, que dei junto com Andrea Cabrera, se chama Escribir, tocar el cuerpo (Escrever, tocar o corpo). Nele, escrevemos com os pés, como Lenora de Barros, uma extraordinária artista brasileira que descobri durante a pesquisa. Trata-se de mobilizar a pélvis da linguagem, de escutar a terra com os calcanhares, de escrever nas paredes, de procurar um ritmo e uma respiração na escritura. A escritura somática foi, então, a resposta experimental que encontrei para rematerializar o mundo que hoje está suspenso, confinado nas redes imateriais da internet.

Davi Kopenawa, xamã, escritor e líder político Yanomami, fala que nós, os brancos, desenhamos nossas palavras em peles de árvores para impedir que fujam de nossa mente. Não carregamos a nossa sabedoria dentro de nós. Existe uma superprodução de conteúdo editorial “em peles de árvores” e pouca troca de sabedorias?

Gosto muito da metáfora da escritura em peles de árvores, como forma fixa no tempo, com a diferença da oralidade que transmite a memória de forma coletiva, mutante, viva. De fato, a escritura como “forma civilizatória” impôs-se ante outros saberes, que no entanto, sobreviveram em resistência em muitas comunidades do mundo. Acredito que, entre outras coisas, a pandemia sacudiu nossos prejuízos, essas hegemonias, e muitos voltamos hoje a escutar esses outros saberes, mais vinculados à terra, ao não humano, aos ciclos da natureza, às árvores e ao húmus. Porque a superprodução de discursos e conhecimento que hoje satura nossa atenção não trouxe consigo um mundo em que seja possível viver uma vida digna.

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