O assunto parecia adormecido há pelo menos 70 anos, até que o aparente descanso teve fim quando os textos da reforma do sistema tributário, um do Senado, outro da Câmara e por último o do Governo Federal, chegaram ao Congresso em 2019 e 2020. Com a unificação das PECs que já tramitavam e a perspectiva de endosso do terceiro texto a tratar do assunto, o setor livreiro teme que a isenção dos livros chegue ao fim. Contra essa previsão, entidades ligadas ao mercado editorial têm debatido o assunto, amplificado o debate nas redes sociais, e ganhado o reforço de editoras, escritores e estudiosos da situação do livro no Brasil. Voltando algumas casas na História, foi na Constituinte de 1946 que o escritor Jorge Amado, então deputado, apresentou uma emenda livrando os livros de taxação. Se a reforma tributária for aprovada, unificando PIS e Cofins em alíquota única de 12% sobre o valor do produto, a distância entre os livros e seus leitores será ainda maior do que a que temos hoje. Além do urgente debate sobre a taxação dos livros, Marisa Midori Deaecto, professora da Universidade de São Paulo, levanta uma segunda bandeira, a aprovação da lei do preço fixo dos livros. A proposta já existe, mas segue parada desde 2019 no Senado.
Em entrevista ao Pernambuco, a autora de O império dos livros (EdUSP, 2011), livro vencedor do Prêmio Jabuti 2012 (categoria Comunicação), fala sobre a importância dos dois projetos e seus impactos para o mercado editorial brasileiro.
A taxação dos livros será mais um dos problemas da crise do mercado editorial, caso o texto da reforma tributária seja aprovado como está. Como você entende o processo que culmina nessa crise?
Como sou historiadora, posso te dizer que a crise realmente é um corte seco. É verdade que ela está numa estrutura. O mercado editorial brasileiro e o processo de formação do leitor no Brasil se conformam ou se inserem em estruturas muito frágeis, a educacional e a cultural. Essa fragilidade é secular ou multissecular. Então, nós estamos sempre correndo atrás de um atraso (para compensá-lo). Eu iniciaria essa nova história do livro brasileiro a partir da abertura política. É claro que, antes, depois da Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950 e começo dos 1960, houve um movimento muito forte, principalmente de edição e de formação de um pensamento brasileiro, de um pensamento universitário, porque nessa época as universidades ganham corpo no Brasil e o movimento editorial acompanha tudo isso. Então tivemos um golpe (o civil-militar de 1964) e houve um corte. Percebemos esse corte quando vimos que os editores que estavam em intenso trabalho, às vésperas do golpe, não são os mesmos que vamos encontrar depois, na abertura. Houve uma desarticulação desse mercado. Logo depois, surgem novos editores, um movimento interessante, alguns sobrevivem como é o caso da Zahar, mas não é o caso da Civilização Brasileira, que foi muito prejudicada e chegou a ter sua livraria bombardeada. Temos muitos exemplos de editores que não sobreviveram. Mas, a partir da abertura, há um debate, inclusive, sobre o papel do Estado na promoção do livro e da leitura.
Tendo em vista esse debate, que ações na história recente justificam a melhora no setor?
Temos algumas iniciativas, a partir do governo Sarney, sobretudo, voltadas para a edição universitária. Programas universais, destinados à formação da leitura são implementados a partir do governo FHC, e na era Lula, principalmente, porque aí já temos uma conjuntura econômica favorável, pois houve um ciclo de crescimento no Brasil. Percebemos que, entre 2013 e 2015, temos uma forte crise que atinge todos os setores, mas o discurso muda depois de 2016 com golpe (contra a presidenta Dilma Rousseff). Muitos programas (relacionados à promoção do livro e da leitura), aliás, faziam muito mais do que formar leitores – e não são mais prioridade. Eles estimulavam a cadeia produtiva do livro, do autor até a indústria gráfica, passando pela indústria editorial, além do fomento às bibliotecas, à construção de bibliotecas nas escolas. Era o incentivo aos mediadores de leitura, então há uma série de profissões que são valorizadas ou que surgem no incentivo ao livro didático, ao livro de literatura nas bibliotecas e assim por diante. Este elo se quebrou também do ponto de vista ideológico, porque ele não surge mais como prioridade. Quando o atual ministro da Economia diz que livro é coisa de rico ou o Ministério da Educação é inativo nessa área, e não se pronuncia, ou ainda quando vemos um governo que estimula mais a aquisição de armas do que a cultura, é porque houve uma quebra total desse elo. Ou seja, existe uma história que é frágil, mas existe uma crise também, esse corte seco de uma série de esforços que vinham se afirmando desde a abertura política.
Portanto a crise não tem origem apenas econômica, é importante reforçar.
No meu entender, a crise é provocada, porque está dentro de um projeto político muito claro que faz tábula rasa de tudo que construímos desde a abertura, em termos de cultura e produção científica e, é claro, a produção e a promoção de livros. Tanto que o mercado está sentindo. Há alguns setores que se mantêm, mas no geral há uma crise generalizada, dentro de um projeto que é sistemático de desqualificação de tudo isso a que chamamos de ‘cultura’, como se cultura significasse desvio ideológico. Tudo que consideramos cultura agora aparece como subproduto ou subversão. Existe uma tentativa de construção da opinião pública que vai na contramão dessa construção que era democrática e que pensava a diversidade, que valorizava o brasileiro em questões de gênero, etnia etc. Esses programas (como o Programa Nacional do Livro Didático) poderiam ter falhas, ser bastante criticados, mas havia inclusão. A gente vê isso nas livrarias. Nunca se viu tantos livros sobre história africana voltados para crianças e adolescentes, tantos autores e autoras africanos no mercado editorial. Podemos dizer o mesmo sobre as culturas indígenas. Isso não é um movimento aleatório, ele foi incentivado por políticas públicas que, em dado momento, compreenderam que era importante ter livros sobre essas culturas e a diversidade brasileira. Isso poderia ser comprado nas livrarias, mas também era distribuído em escolas e bibliotecas públicas.
Podemos encontrar similaridades entre esse momento histórico que antecede a redemocratização com o que vivemos agora?
Existe uma ditadura econômica, porque caso se faça uma reforma tributária que taxe os livros, poucos editores conseguirão superar essa mudança. Porque o preço do livro, de alguma forma, é definido pelos custos de produção industrial e editorial e esse custo é altíssimo. Agora que o dólar está muito alto, o papel tem como matéria-prima a celulose, que é uma commodity, e ele ficou mais caro para o Brasil. O preço pode ser diluído no número de tiragens e quanto maior a tiragem, menor o preço de capa. No entanto, se você desqualifica a leitura, esvazia os programas, você diminui as tiragens. Com o fim da tarifa zero, da isenção tributária, onera-se o editor, dificulta-se a venda nas livrarias – que já não vai bem por conta da pandemia. Ou seja, de alguma forma enfraquece-se o setor, não do ponto de vista político, como aconteceu na época da ditadura, que era a prisão, a destruição física daqueles editores e autores que se posicionavam contra o regime, mas de alguma forma pelas políticas econômicas. Ao esvaziá-las, o governo mostra aqueles que podem ficar ou não. Mas o mercado editorial sadio é o mercado múltiplo, que publica livros espíritas, evangélicos, católicos, universitários, livros de direita, de centro e de esquerda. Se você vai esvaziando setores, a começar pela universidade, as bibliotecas, cria-se um efeito bastante perverso. Os pequenos e médios tendem a fechar as portas, o desemprego do setor aumenta, e isso a longo prazo é um desastre, porque é o enfraquecimento de um setor estratégico, o editorial, que possui relação direta com educação, com a cultura e com a ciência. Vejo que a questão agora é muito mais desqualificar o discurso do outro e, nessa desqualificação, abafá-lo o máximo possível. A desqualificação existe, então acho que esse paralelo é importante.
Você cita o papel do Estado para fomentar políticas do livro e da leitura. Lembro a notícia recente de que recursos do MEC foram devolvidos por falta de uso...
A devolução de verba, ou seja, a não aplicação de recursos em um setor público, reflete, via de regra, uma administração incompetente. Porque os recursos podem e devem ser aplicados, mesmo em uma situação de pandemia. Os setores públicos, sobretudo quando falamos em educação e cultura, possuem sempre uma demanda muito alta e constante por investimentos. E esses investimentos, como tenho insistido, geram um ciclo virtuoso da economia. Por outro lado, há aqui uma outra questão: não dá para ignorar as políticas governamentais no Brasil, do ponto de vista do mercado editorial. Existe uma articulação muito forte desde a edição universitária até os programas de livros infantis, de distribuição de livros nas escolas. Implantar agora uma política totalmente neoliberal é simplesmente abandonar o setor à sua sorte, porque o livro não é uma mercadoria como uma garrafa de água ou um quilo de arroz. Falando dos pequenos livreiros e editores, é preciso levantar outros caminhos que estão escondidos, mas que estão em debate – por exemplo, o Projeto de Lei do Preço Fixo no Senado Federal. A mídia não dá abertura para esse debate, então, se por um lado foi muito positiva a leitura que se fez sobre o impacto perverso da reforma tributária proposta pelo ministro da Economia sobre o mercado editorial, e isso acendeu o setor e a sociedade se mobilizou, talvez também pudesse se mobilizar em favor de outras mudanças na legislação. Nossa política de preço do livro é uma política totalmente liberal. Aquele que pode mais, dá mais desconto e isso cria um mercado predatório, sufoca o pequeno livreiro e favorece as grandes redes e agora as grandes redes que trabalham com e-commerce. No entanto, existe um projeto de lei muito sério, muito bem-costurado, hoje tendo como relator o senador Jean-Paul Prates (PT-RN).
Esse PL, que cria a Política Nacional do Livro e a regulação de preços (PLS 49/2015), seria uma versão brasileira de uma experiência que já acontece em países onde a leitura já é incentivada. Você acha que esse projeto decolaria no Brasil diante de toda a fragilidade que você expôs?
A questão das livrarias ganha as mídias, porque quando a Saraiva e a Cultura entram em recuperação judicial, as pessoas começam a discutir as livrarias. É um momento de crise, então acho que agora é a hora de apontarmos alternativas. A lei do preço fixo nasceu na França em 1981 como uma resposta à (rede de lojas) Fnac, que propunha descontos ofensivos desde os anos 1970, e os livreiros constataram que isso iria quebrar as livrarias. Este um momento parecido, porque é de desgaste de um modelo de venda, de aparecimento de livrarias de nicho, que devem concorrer com um modelo novíssimo e em ascensão, que é o e-commerce. Aliás, penso que, se houver a privatização dos Correios e o domínio do comércio eletrônico, acabou o sonho de termos pelo menos uma livraria em todas as cidades do Brasil. Então, uma legislação que promova uma regulação do preço do livro talvez seja um primeiro passo para começarmos a pensar, junto com imunidade fiscal, em um mercado mais justo, para os produtores do livro e para os leitores. O mercado editorial brasileiro é organizado como o modelo norte-americano. Cada livreiro recebe seus livros e cada livreiro negocia da forma que pode com o editor, ou com o distribuidor. A gente sabe que as melhores negociações são para quem têm as melhores condições. O número de livrarias encolhe constantemente, o modelo das grandes redes chegou à exaustão, isso não é mais concebível. Esse modelo também chegou à exaustão nos Estados Unidos, nos países da Europa. A mídia expõe um problema que é real: a distribuição de livros, a falta de livrarias no Brasil, o fato de que muitas cidades não conhecem nenhuma livraria. Imagine uma criança crescer numa cidade sem nunca ter entrado numa livraria. Isso é uma realidade no nosso país. Por que não criar um projeto que incentive a criação de livrarias? O preço fixo é um primeiro incentivo porque ele delimita a porcentagem de desconto e iguala as condições de venda. Há estudos indicativos, por exemplo, na Inglaterra, que a médio prazo o preço de capa diminui. O pequeno livreiro vai vender pelo mesmo valor que o livreiro grande. Podem dizer que isso é interferência do Estado na economia. É, sim, mas nós sabemos que a economia do livro precisa de leis fortes. Na França, o preço fixo existe há 40 anos. Na Espanha e na Argentina têm algo muito parecido. São experiências em que as livrarias chamam muito a atenção. Temos que defender o livro isento de taxas, mas também temos que criar mecanismos para que essa isenção tenha o mesmo peso para todos os livreiros e editores.
Na sua opinião, o que falta para que o projeto volte a caminhar no Congresso, além da vontade política, é claro?
A questão tributária tem muitos porta-vozes, porque isso interessa a todo o mercado. Por outro lado, é possível aproveitar o debate para mostrar outros caminhos. Taxa zero é fundamental, mas vamos além, vamos também fomentar as pequenas livrarias, nas cidades, nos rincões do Brasil. Esse é o desafio. Acho que alguém precisa dizer que esse projeto existe e que ele pensa na outra ponta. Ou seja, há vários projetos, como os editais que eram um estímulo à produção, mas é preciso criar projetos que sejam um estímulo ao consumo. A isenção já é [um estímulo], porque senão os livros seriam muito mais caros. Nós pagamos os impostos. Se você taxa o livro, quem vai pagar é o consumidor final, porque ele vai ficar mais caro, porque as tiragens são pequenas e elas não permitem uma margem menor de preço. Mas, se além da isenção, criam-se mecanismos para incentivar a abertura de livrarias, isso já é algo que se combina com aquela outra ponta, que é a mais frágil. Quem se preocupa em comprar feijão e arroz, vai comprar um livro? Claro que não vai pagar caro por um livro, mas se há uma livraria no seu bairro e você é amigo do livreiro, você vai comprar o arroz, o feijão e vai guardar para o livro, nem que seja um pouco no final do mês. O ser humano tem sensibilidade, mas ela é sempre ignorada.
Ao mesmo tempo em que temos números negativos como aqueles apontados na última pesquisa Retratos da Leitura do Brasil, também vemos movimentos interessantes como as festas literárias, agora online, e uma profusão de lives com autores de todas as idades. Que Brasil é esse que tem dados de baixa de leitura e um boom de interesse por livros e autores?
Todo livro encontra o seu leitor. O editor publica porque acredita nisso. Você pode fazer mil, ou 500 exemplares. Pouco importa. Todo livro tem um leitor. É que o nosso país é muito grande. Existe um movimento intenso de resistência. Recebi nesses dias um livro saído de um slam feito por jovens na periferia de SP. Eles mesmo fizeram, compuseram, aprenderam a editorar, mandaram para uma gráfica rápida e o livro saiu. Então, há muitos grupos jovens fazendo isso, o que é muito bom. São movimentos em que as pessoas gastam uma energia enorme e têm dificuldade de romper a barreira do nicho. Os livros têm seus leitores, mas o grande desafio, por isso eu insisto no preço fixo, na taxação zero, em fazer com que esses movimentos realmente se tornem uma realidade plena. Que você saia à rua e encontre um açougue, uma padaria e uma livraria e que esses três comércios tenham um peso na vida do cidadão. Essa é a angústia do país que não tem leitor. Agora está na moda dizer que as grandes livrarias fecharam e a tendência são as livrarias de nicho. Ótimo, mas é preciso explodir essa cadeia. Não pode ser só o nicho, porque senão caímos em outro circuito, senão seremos quase uma sociedade secreta. São várias sociedades que se organizam e fazem seus livros. No entanto, há shoppings que nem livraria possuem. Não é uma contradição? Eu acredito no trabalho de longo prazo. Algumas respostas positivas que temos visto podem ser sintomas daquelas crianças que viram essas festas do livro, as bienais, seja na TV ou porque vivenciaram esta realidade, jovens e crianças que um dia se sentaram na calçada e ouviram um poeta, um romancista, em uma festa literária. O que não podemos fazer é andar para trás, quer dizer, acabar com a taxação zero, ignorar a lei do preço fixo, ignorar os editais que já existiram para bibliotecas e escolas. Agora, o momento é esse, a gente gasta energia para não perder o que conquistou e está perdendo, enquanto deveríamos gastar para progredir.
Estudos como o que você realiza na USP e com parcerias mostram que há outros modelos para a economia do livro. Em relação ao cenário latino-americano, como o Brasil se posiciona? A gente segue isolado?
Segue, mas a minha proposta é aproximar. Conheço vários pesquisadores brasileiros que já fizeram essa aproximação do Brasil com países vizinhos e que estão colaborando conosco. Minha intenção também é aproximá-los. Soube que no ano passado houve um colóquio em Bogotá para discutir o preço fixo. Na Argentina, não se trata de livre comércio, existe uma legislação e uma proteção, tanto que, quando a gente pensa em Buenos Aires, pensa também em livrarias. O mesmo fenômeno acontece em várias províncias argentinas. A presença de livrarias faz parte da cultura daquele país. O México tem uma universidade de massa, que produz muitos livros e tem muitas editoras que marcaram a história literária no séc. XX. Não tenho resposta sobre todos os países, mas tenho feito contato com todos, porque quero fazer uma mesa latino-americana no Seminário Internacional Lei Lang, 40 anos [“Lei Lang” é como é conhecida a Lei do Preço Fixo da França], que acontece em outubro no IEA-USP. Arma [de fogo, cujo comércio é estimulado pelo governo federal] não alimenta nada. Só o ódio e a destruição. Mas tudo que diz respeito à cultura constrói. Isso nós aprendemos nas duas últimas décadas, quando houve um aumento das universidades federais por todo o país.