Marina Lima porCandeSalles 05 400kb

 

 

Anos 1980, depois de duas décadas de ditadura, as FMs são tomadas por outros exércitos. O das bandas do Rock Brasil: Paralamas, Barão Vermelho, Titãs, Kid Abelha, Legião Urbana, RPM e as batatas fritas do besteirol massivo da Blitz. Os tempos já eram outros, e ninguém ainda parecia querer sair sozinho... “Mas eu não era uma banda. Eu era uma mulher que compunha com o irmão”, sintetiza Marina Lima, como quem diz que tudo passa por isso. “Era uma pessoa muito realista e que tinha uma visão de mulher sobre o mundo”, completa a artista que ao lado desse irmão (o poeta Antonio Cicero) talvez tenha melhor definido a sensação de retomar a narrativa de um estado democrático: “Você me abre seus braços/ E a gente faz um País”, nos versos do hit Fullgás.

No fim da tarde da última segunda (12), Marina Lima conversou por Zoom com o Pernambuco sobre o songbook Marina Lima: Música e letra, que reúne músicas que trabalhou em seus 21 álbuns, e sobre seu novo EP, com o provocante título de Motim. Também fala sobre os 30 anos do álbum Marina Lima e revelou ainda quais acontecimentos espera desse Brasil pandêmico.

O seu songbook Marina Lima: Música e letra celebra um ciclo de 21 discos e reúne as letras de 175 canções compostas, interpretadas ou que têm ao mínimo seu arranjo. Uma produção que vai de 1978 até 2021, sempre afetada por contextos políticos e pessoais. Como nesses anos a sua relação com a composição mudou e como o “leitor” pode enxergar isso?

O leitor vai conseguir enxergar essa mudança. Em primeiro lugar, porque não é um songbook autoral, ou seja, não vão ser só canções que eu escrevi. Eu decidi fazer um songbook dos 21 discos, porque cada disco é um depoimento muito importante na minha vida. Como existe uma ordem cronológica, você consegue entender muito bem a obra daquele artista, o crescimento dele e a época. É importante ser um songbook cronológico. É importante para as pessoas entenderem a cabeça do artista.

Voltando para 1978, suas primeiras composições foram versões musicadas de poemas do seu irmão mais velho, Antonio Cicero, que inclusive se tornou colaborador constante. Sem hierarquizar letra musical e literatura, qual relação entre a poesia e as suas canções?

Ótima pergunta! Esclarecendo uma coisa que pouca gente sabe, é que a primeira parceria entre eu e Cicero foi em cima de um soneto que eu encontrei no chão do quarto. Eu acordei e tinha um soneto no chão escrito “ALMA CAIADA”. O soneto tinha uma forma fácil de entender a métrica e eu musiquei o soneto. Mas dentre, sei lá, 200 músicas, essa é uma das sete que fiz a letra primeiro. Sempre é uma música primeiro e uma letra dele. É onde há a brincadeira: qual é a importância de uma musicista como eu e um professor de lógica como ele? Qual seria a graça ali? Seria o que há em comum. Quem é você? Quem sou eu? Então vamos se misturar. Daí surgiu a parceria.

Quais escritores mais influenciam no seu processo como escritora?

Eu tive um professor, que foi Cicero. Não à toa ele é da Academia Brasileira de Letras. Ele tem um domínio tão bom escrevendo, quanto lendo. Ele tem muito ritmo. Ele foi meu primeiro professor, porque compusemos muito juntos. Logo, eu comecei a descobrir os poetas a partir do Cicero. O primeiro poeta pra mim, que era um moderno, mas não um contemporâneo, foi Carlos Drummond. Talvez até porque Cicero escrevesse muito parecido com Drummond. Quanto eu o li pela primeira vez, eu entendi perfeitamente e aquilo soava como música aos meus ouvidos!

Por exemplo, João Cabral, pra mim, é muito duro. Eu entendo a profundidade. Mas o que eu mais gosto é música e ele não precisa disso porque é tudo duro como aço. E eu sinto falta de música. Assim, eu fui tendo os meus preferidos.

Depois disso eu fui conhecendo pessoalmente poetas: conheci Leminski, Capinam e Jorge Salomão. E aos poucos fui descobrindo a beleza dessa gente perto de mim.

Esse ano também temos a efeméride do disco Marina Lima, que completa 30 anos. Ele surge em um contexto de assentamento do fim da ditadura e uma espécie de primeira ressaca da democracia brasileira com a crise do Governo Collor. Você enxerga certa melancolia no disco? O que você acha que era urgente para você ali?

Eu não vejo como um disco melancólico. Vejo como um disco solar, em que as músicas são muito afirmativas pelo fato de tá vivo e vivo para as coisas. Naquele momento, onde eu fiz (as músicas) Criança e Grávida, era um momento de abertura do Brasil, quando iam surgindo diversas bandas no país: Titãs, Cazuza, Paralamas, Barão Vermelho, Kid Abelha, o funk de São Paulo e as bandas do Rio Grande do Sul. Era um momento muito afirmativo. Mas eu não era uma banda. Eu era uma mulher que compunha com o irmão. Era uma pessoa muito realista e que tinha uma visão de mulher sobre o mundo. Talvez nisso exista alguma melancolia, mas não quer dizer que é uma visão de mundo triste. É uma visão mais cheia de curvas.

Voltando à questão das letras, é engraçado comparar os anos 1980 com o começo dos anos 1990. Nos anos 1980, um dos seus grandes hits canta: “você me abre seus braços e a gente faz um país" (na canção Fullgás). Já no Marina Lima, no começo dos anos 1990, você canta uma "solidão com vista para o mar”, na letra de Alvin L (em Não sei dançar). Acho que tem algo de encontro e num segundo momento surge uma impossibilidade. Como tu pensa esse dois momentos dos seus hits como compositora e intérprete?

Cada momento requer uma liberdade. Cada momento requer um passo adiante e um sentido. Então, “você me abre seus braços e a gente faz um país” estava no final da ditadura e isso era importante. A música Não sei dançar era sobre ser uma pessoa que vive as coisas muito rapidamente e tem um fogo louco. Você acaba descobrindo que o mundo gira mais devagar e numa valsa precisa dizer: “Me desculpe, eu não sei dançar tão devagar”. É uma impossibilidade de lidar com o mundo nessa rotação. Acho que as duas coisas são sobre liberdade, mas a cada momento existe uma coisa incomodando.

Tem uma música que fiz chamada Três (N.E.: do álbum Lá nos primórdios, de 2006, e que depois foi gravada por Adriana Calcanhotto no álbum Maré, de 2010). Nessa época eu tinha chegado da Argentina e ela (a música) misturava um tango com funk. Uma coisa muito matemática. Eu mostrei pro Cicero e ele fez algo super calculado, sabe? Antítese, tese e síntese. Isso era uma forma da gente dizer que queria ser um pouco de tudo! Eu quero o que há! O mundo e seu amor, o sexo perto do mar. O mundo são muitas coisas e, a depender do momento, existe urgência em certas coisas.

Três
Eu quero tudo que há
O mundo e seu amor
Não quero ter que optar
Quero poder partir
Quero poder ficar
Poder fantasiar
Sem nexo e em qualquer lugar
Com seu sexo junto ao mar

(Trecho da letra de Três)


E essas urgências vão modificando seu norte como artista.

Por exemplo, quando eu fui gravar Uma noite e 1/2, eu fiquei brincando que foi a primeira música que falou “bunda” no Brasil. Eu estava no interior de São Paulo, com dois músicos e fazendo o show do disco Fullgás e um cara me mostrou a música no violão. E eu achei essa música um tubarão. Fiquei pensando: “que loucura essa música...”. Eu fiquei chocada que ela não tinha nenhum freio. E fiquei louca pra gravar. Por que? O que é o freio? O que é de bom tom? Por que falar “bundinha de fora” é tão feio?

Seus dois trabalhos mais recentes parecem trazer palavras de ordem para se pensar o contemporâneo. Um disco chamado Novas famílias e, agora, o EP chamado Motim. Qual a sua ideia de Motim?

Esse EP foi inteiramente na quarentena. Quando eu me vi louca em São Paulo, onde não há nada, não há praia e ficou tudo deserto e eu sem poder sair de casa, só indo pra farmácia e sem ver ninguém. Foi aí que eu pensei: eu vou ficar louca. Então me dediquei à música. Eu tenho direito a me dedicar a minha musicalidade e me dedicar ao que tenho aptidão. Eu me senti livre. Fiz músicas instrumentais, escrevi uma música sobre a Madonna, fiz algumas baladas e músicas mais rápidas.

Eu decidi não fazer um disco, mas produzir quatro músicas que façam uma síntese do que eu sou agora. Acho que faço motim em tudo que eu fiz. Porque eu tomo conta do meu jeito, da minha musicalidade e de como eu quero que meu trabalho seja contemplado. Eu dou um pouco do mais importante de mim.

Na turnê do disco Novas famílias, você abriu com Acontecimentos. Por fim, quais acontecimentos você tem esperado ultimamente?

Eu espero que em 2022 tenhamos outro quadro. Eu não sabia que no Brasil, ou por alienação ou pelo fato de na internet cada um ficar com a sua turma, mas eu não sabia que havia tantos evangélicos no Brasil. A ponto do Estado quase deixar de ser laico. A coisa mais importante que eu queria ver no Brasil, e nunca vi, é realmente uma guinada de preocupação com a questão da desigualdade social. Seria uma mudança que eu adoraria ver.

Eu espero poder aumentar meus ganhos na vida digital. Eu acho que o mundo digital na música é recente e as negociações que a gente faz e as plataformas deveriam receber menos. Nós que criamos as músicas deveríamos ganhar mais. Eu tô pensando num mundo ideal (risos). Isso me lembra uma história, de quando eu morava no Rio de Janeiro ainda, e presa no trânsito fiquei atrás de um carro com um plástico adesivo que dizia bem forte: “SEJA REALISTA, SONHE!”. Ele ficou um tempão na minha frente e eu no meio do trânsito. Mas a vida é isso! É o que nos restou.

 

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