“Amar é combater, é abrir portas, deixar de ser fantasma com um número”, escreve Octavio Paz, em Pedra de Sol. A partir do escritor mexicano, que edificava seus poemas no entre-lugar do imaginário, experiência, memória e história, o poeta e cartunista André Dahmer se imaginou pela primeira vez como escritor. “Foi o primeiro momento em que pensei se a poesia era possível para mim”, relembra Dahmer.
Quando começou a ser frequentador do laboratório poético CEP 20.000, ainda quando jovem, Dahmer teve formação em conjunto com o desenho e a literatura, mesmo que cada um tenha seguido seu caminho e suas experimentações. Hoje, Dahmer ocupa um papel muito singular como cronista e narrador contemporâneo da crise brasileira a partir dos quadrinhos. Como poeta, lança seu terceiro livro, Impressão sua (Companhia das Letras), articulando suas memórias aos pormenores do cotidiano no que ele chama de uma “poesia caseira”.
Em entrevista ao Pernambuco, André Dahmer fala sobre sua poesia memorialista, como narrar a si mesmo enquanto artista e o lugar dos seus quadrinhos em meio ao ódio e a crise política e social brasileira. Confira os melhores momentos da conversa.
O seu mais recente livro de poemas, Impressão sua, abre com uma seção chamada "O livro dos cães", que conta uma narrativa com tons bem autobiográficos e em ordem cronológica. De que forma a poesia entra na sua obra como forma de narrar sua história pessoal?
Eu tive contato com a poesia junto com o desenho. Foi através da poesia declamada, principalmente no CEP 20.000 (Centro de Experimentação Poética), um projeto dos escritores Guilherme Zarvos e Chacal. Tinha uns 18 anos e fui de gaiato conhecer o espaço. Mas a partir daquela noite eu pensei: “nossa, quanta potencia”. Aquele ambiente me impactou muito, não só com poesia, mas dentro das artes. Eu conheci Cacaso e Leminski. Depois fui ler Hilda Hilst e muitas brasileiras contemporâneas, como Ana Martins Marques. Eu sou fã da obra dela.
Na época do CEP 20.000, por timidez, eu não recitava seus poemas. Só era um espectador. Demorei 20 anos para publicar meu primeiro livro de poesia. Eu só declamei no CEP 20.000 com 45 anos, quando encontrei Chacal e ele disse pr’eu declamar. Nesse dia eu subi no palco me tremendo como um garoto de 20 anos. Eu falei: “Olha tem poeta de quarto e poeta de palco. De palco é Chacal, que nasceu pra poesia falada. O de quarto é quem não consegue recitar assim. E eu sou de quarto”. Nesse dia recitei um poema meu chamado Outono retorna.
Impressão sua é dividido em 5 seções: parte 1 — "O livro dos cães", parte 2 — "Monumento ao jovem monolito", parte 3 — "Tirocínio para jovens homicidas", parte 4 — "Língua braço armado do coração", parte 5 — "Estrada para o ouvido (cartas do paraíso)". A primeira é mais narrativa e confessional, enquanto as demais são compostas em cenas. Como foi esse processo de construção do livro?
Essa primeira parte do Impressão sua, "Livro dos cães", é uma prosa. Apesar da construção ser em formato de poesia. Esse livro [Impressão sua] foi feito durante três anos. O primeiro formato dele foi fechado e na época eu estava lançando Malvados, em quadrinhos. A Companhia das Letras achou melhor não lançar dois livros em um mesmo ano. Então lançamos os quadrinhos e deixamos o livro de poesia para 2020. Mas em 2020 você sabe o que aconteceu, né?
"O livro dos cães", apesar de aparecer primeiro, foi escrito depois, só em 2020. E de fato é um livro de memórias. Tá muito relacionado ao medo de morrer que estava na época. Falo muito da infância, sobre minha relação com minhas filhas. Na verdade, como foi um livro construído num hiato de três anos, eu mudei muito. Inclusive, me separei em 2019. Então, existem três de mim dentro do livro.
É interessante pensar que dos anos 2000 pra cá, quando você começou a explorar a internet com as tirinhas, seu nome se tornou um dos mais importantes pros quadrinhos nacionais, dentro dessa perspectiva do humor político. Como você enxerga esse deslocamento de ser um narrador da situação política nos quadrinhos, para uma narrativa mais confessional na poesia?
Eu pensei muito sobre Manoel de Barros (1916-2014), por exemplo, que construiu a poesia dele toda a partir das coisas mais simples e cotidianas. Eu acho que havia uma necessidade de um livro de memórias. Passei sete meses confinado em um sítio com as minhas filhas. E você deve saber o que o confinamento faz com a gente.
Mas eu tive a sorte de entrar em contato com amigos que revisam sempre meu livros, Marieta Dantas e Rodrigo Lenares. Foi fundamental a ajuda deles pra me organizar. Ainda pensando em Manoel de Barros, eu considero a minha poesia uma poesia caseira. Ela não é de restaurante, vamos dizer assim. Eu tenho 20 anos com quadrinhos diários, e é um lugar de conforto muito grande, mas com a poesia nunca foi assim e isso causa insegurança. Acho que fiz um livro bonito, sabe? Um dos significados de amador é o que faz por amor e não por profissão. Quando falo que é um livro caseiro ou amador é no melhor sentido.
No seu ponto de vista, o absurdo do Brasil pós-2016 torna a ficção mais opaca ou potencializa o lugar da arte como agente possível para habitar a crise?
Um tempo atrás fui dar uma palestra com Jaguar, que é muito velhinho, de 92 anos, e passou pela ditadura militar. Ele apertou minha mão e falou brincando: “parabéns, Dahmer! É sempre bom trabalhar com o que você trabalha passando por uma ditadurazinha”. Ele falou isso brincando. É claro que não gosto do que a gente tá vivendo, mesmo que favoreça meu trabalho. Em tempos outros já trabalhei com quadrinhos de costume e nem sempre trabalhei com humor. A vida é sempre interessante e sempre é desafiadora.
Eu tomo muito cuidado no momento atual pra não me perder no ódio e trabalhar na raiva. Porque eu sei que as pessoas precisam também de humor ainda. Eu vejo que meus colegas de profissão se perdem nisso, e isso resulta num trabalho raivoso. Acredito que as pessoas possam receber o recado através da leveza e eu não quero perder isso. Esse modelo de país não vai durar pra sempre. Eu me considero um otimista, acho que esses tempos constroem novas gerações mais conscientes do valor da democracia. O quanto é preciso entender o passado. A luz sempre retorna na mão dos mais jovens. Disso eu tenho certeza.
Desde o início, os seus quadrinhos tinham essa força ácida, cínica e crítica. Mas soa, pra mim, como se de uns anos pra cá o tom variasse entre um vazio existencial, ou mesmo entre o humor e a melancolia. Você enxerga essa mudança de tom?
Eu fiz coisas muito tristes nos últimos dois ou três anos. Já estamos há bastante tempo vivendo nesse caos, se pensarmos que tudo começou em 2013. Eu fico abismado de o país não ter esfarelado socialmente e politicamente por completo, porque é muito tempo de desordem.
Oscilo muito o tom. Acredito que o próprio humor carrega melancolia e raiva. E talvez não seja uma mudança de tom, entendo que não tenho muito domínio. A gente vai vivendo as coisas: os filhos nascem, você perde um amigo e é assim o ciclo. O trabalho vem de dentro da gente. Eu não conheço ninguém que tenha um trabalho “de verdade”, que não sofra o tempo inteiro com as tempestades de dentro e de fora.
Você fez uma tirinha recentemente em que dizia “Em matéria de quadrinhos, tudo já foi feito? Responda!”. Ainda que soe um pouco absurdo pedir a um autor que explique sua obra (seja uma tirinha, seja um poema), fiquei pensando no eco que essa tirinha trouxe. Você poderia comentar um pouco sobre ela?
Essa série Em matéria de quadrinhos tudo já foi feito é uma brincadeira e um deboche pra quem acredita que tudo já foi feito na ciência, na arte ou na tecnologia. A caixa de som foi inventada no início do século passado, mas só em 1981 alguém teve a ideia de colocar caixas de som na orelha e inventaram o walkman. Então existe um hiato de décadas. O homem inventou o barco e passou anos navegando sem rumo. Botavam o remo no fim do barco pra dar direção a ele. Só depois de anos, alguém teve a ideia de inventar o leme. Parece algo simples, mas entre o remo e o leme, passaram-se milhares de anos.
Eu acredito que tem muita coisa pra ser feita em todas as áreas. Inclusive, coisas a serem desfeitas. Por outro lado, a gente como humanidade é meio cíclica. Agora tem um monte de gente falando “falam do capitalismo, mas é o melhor sistema que tem até agora”. Eu não acredito em nada disso. Nesse momento de uberização de tudo, esse modelo logo vai se esgotar, porque as pessoas não conseguem viver de forma decente.