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A imagem de Roberto Arlt (1900-1942) morto. Seu caixão sendo retirado por uma janela, sustentado por cabos, já que as escadarias não suportariam a passagem. Ao se deparar com as imagens do velório de Arlt, Ricardo Piglia (1941-2017) fixou-se no retrato do caixão que guardava o artista gótico modernista. Piglia foi o escritor a dar uma espécie de continuidade ao trabalho de Arlt, como um leitor e divulgador. Tornou-se um dos mais celebrados latino-americanos do século XX, do ensaio à ficção – em especial com sua obra maior, Respiração artificial (1980), um dos grandes romances a desvendar e construir o imaginário latino-americano dos tempos das ditaduras.

No livro Três histórias com Piglia (Compouco Edições), a professora e escritora Ieda Magri (UERJ) lança três textos que compõem um diálogo com o escritor. Em forma de ensaio e de uma escrita instigante, é possível localizar um prisma de Piglia: a corporificação em seu texto, o lugar do autobiográfico e sua relação com outros artistas latino-americanos, como Roberto Bolaño (1953-2003) ou até mesmo Arlt e Jorge Luis Borges (1899-1986). O livro está disponível gratuitamente para download.

Em entrevista ao Pernambuco, Ieda Magri fala sobre sua relação pessoal com a leitura do argentino e da efígie construída em sua publicação.

 

Você começa o livro comentando que não lembra ao certo do primeiro encontro com uma leitura de Piglia, mas lembra os efeitos da leitura em seu corpo. Do incômodo e outras formas de incorporar a leitura. Em que contexto foi o seu primeiro contato com o nome de Piglia e que lugar ele ocupava em suas leituras de autores latino-americanos?

Li Piglia pela primeira vez ainda quando fazia Letras na UFSC, lá em 2000. Não era uma leitura obrigatória: alguém tinha lido Respiração artificial e dizia que era um grande livro. Eu li como curiosa e não como uma leitora especializada, queria descobrir por que, afinal, o livro era bom. E, claro, sempre aparece o outro lado das leituras, aqueles amigos que não gostavam do livro porque era muito cerebral. Acho que é comum a gente ter fixado no corpo e na mente as leituras que fizemos há quase 20 anos: mais que o conteúdo ou o procedimento, fica a sensação, o efeito e, claro, a relação entre efeito e cenário. Os livros que marcam uma pessoa às vezes são mesmo lembrados com uma pequena introdução: “lembro perfeitamente daquele dia...” como quando lembramos grandes acontecimentos. Respiração Artificial foi um grande acontecimento pra mim. E depois vieram os outros. No Brasil tem O laboratório do escritor, onde aparecem as Teses sobre o conto, que funciona como uma oficina de escrita. O fim da viagem, que abre o livro, está entre os grande contos lidos na vida. E depois apareceu o Formas breves, com as novas teses e assim Piglia foi se tornando indispensável na minha formação. Me desviei muito dele até Bolaño e então, com o próprio Bolaño, em seus textos, eu ganhei uma espécie de curso sobre a literatura argentina e estou muito embrenhada nessa teia de força incrível que ela é, ainda mais quando se desvia para nomes menos grandiosos ou menos globais, no nosso imaginário. Piglia, Bolaño e César Aira acabaram sendo a tríade dos meus interesses, logo enriquecida com Josefina Ludmer, Tamara Kamenszain e Graciela Speranza. Leio todos como críticos, teóricos, além de romancistas e poetas. Mas há muitos além deles, inclusive traduzidos para o português em duas excelentes coleções da Rocco: Otra Lingua, organizada pelo Joca Terron, e Entrecriticas, pela Paloma Vidal.

Quando narra sua experiência com Respiração artificial, no primeiro ensaio, você pontua que para o livro “um problema da literatura é um problema do corpo”. Uma espécie de corporificação através da linguagem. Como você enxerga a construção desse efeito?

Talvez esta seja a grande questão do livro e que aponta para mil interpretações: Piglia coloca sob tudo o que está ali escrito um corpo em respiração artificial; e corpos que se deslocam pela Argentina enunciando frases e reconstruindo a história oficial, ou a história política, numa implicação corporal, personalizada numa história familiar. E tem o desaparecimento nunca explicado, os corpos paralisados e um risco sempre rondando do apagamento do corpo em razão ou em decorrência do uso das palavras. Esse jogo fica muito explícito com a personagem de Arocena, que busca mensagens codificadas em cartas muito íntimas e pessoais. Se a mensagem cifrada for descoberta, coloca em risco o corpo das pessoas envolvidas. No entanto, as discussões das personagens são altamente teóricas, debatem a tradição literária argentina, os formalismos, os procedimentos, as poéticas dos escritores e cabe ao leitor buscar as outras implicações históricas ligadas à ditadura, por exemplo, como numa segunda trama.

Você fala que na teoria anunciada pelo ensaio O enigma de sua (primeiro texto do seu livro) a literatura só pode ser autobiográfica. "Ao querer apagar o meu corpo no que escrevo jamais poderei escrever outra coisa que não palavras vazias, sem sangue, palavras ocas, como feitas no ar". Como você encara esse paradigma entre experiência e escrita?

Essa teoria de que a literatura só pode ser autobiográfica que a personagem defende é, ao mesmo tempo, contestada pelo poeta que a lê e vê nela uma grande escritora justamente porque escreve a partir de parábolas, longe do autobiográfico. Claro que pra nós leitores é impossível esquecer a afirmação do próprio Piglia de que toda a escrita, inclusive a teórica, é autobiográfica. Então temos por um lado uma escritora inteligentíssima, com uma escrita mais fina, mais elaborada, mais perfeita, que se diferencia por ter uma linguagem talvez mais clássica, mas que acredita não ser escritora porque não pode escrever a partir do seu corpo, da sua experiência, porque não o suporta. E temos, por outro lado, um leitor totalmente fisgado por essa escrita e que, ao nos mostrar o engano da escritora, defende obliquamente uma escrita que independe da experiência. Me parece que Piglia quer colocar o corpo em outro lugar ou, dizendo de outro modo, problematizar o biográfico, colocando o formal, a linguagem, não no lugar da representação da experiência, mas justo no contrário: a linguagem, a escrita, o estilo buscando dar sentido à experiência, tornando-a experiência comunicável ainda que não explícita. Quando a mulher que escreve belamente acredita não escrever com o corpo não percebe que só escreve como escreve por causa do seu corpo. Experiência e linguagem como uma coisa só, sem que uma preceda a outra.

Ainda em O enigma de sua, você retoma uma relação entre Kafka e Piglia, que me parece como uma busca por rastros – sobre o modo pelo qual Piglia reconstruiu encontros e perseguiu roteiros de Kafka. Como você enxerga essa ponte do argentino com o autor de O processo?

Piglia foi um grande leitor de Kafka. Estudou seus diários profundamente, escreveu sobre sua escrita e sua vida em vários textos e também em O último leitor. Escreveu sobre seu mito do escritor — aquele para quem escrever era difícil, senão impossível, aquele que exauria o corpo em noites inteiras de escrita, buscando a forma ideal de produção sem interrupção, aquele que acreditava não ser escritor, aquele que desejou eliminar a obra para que não sobrevivesse a ele. Em Respiração artificial Kafka não aparece como paradigma, como marco que abre uma nova forma de escrita porque ele reserva essa discussão para pensar o campo nacional da literatura. Kafka entra numa discussão paralela, não mais pra dar conta do âmbito argentino, mas “universal”: a régua de Piglia mede Borges-Arlt e depois Kafka-Joyce como dois modelos, sem misturá-los. Só vai fazer isso muito depois, nas suas aulas sobre Borges, quando mede Borges e Kafka com a mesma régua. E então esses são os dois maiores escritores de um mesmo século, independentemente de suas nacionalidades. Em Respiração artificial ele busca o rastro de Kafka para elaborar uma teoria da leitura: para ler é preciso saber associar e toda a matéria vale. Lê-se um texto, uma biografia, cartas, encontros secretos, o mundo e os passos do autor nele, e tudo está inscrito no texto para ser decifrado por associação.

Você trata da construção da igreja de Arlt,  que é a forma como Bolaño se referiu à devoção e divulgação de Arlt feita por Piglia.  Nesse trecho, vemos como Piglia utiliza das palavras e na imagem e na voz de Emilio Renzi para construir a igreja, e como Renzi precisa se fazer entender sobre o fim da literatura Argentina. Segundo o texto, o fim começa com Borges, que tinha “por um lado a literatura de cuteleiros, de gauchos; por outro a das cadeias de citações forjadas, falsas, desviadas, inaugurada por Sarmiento. Borges teria integrado as duas linhas, conscientemente, para fechar essas duas tradições”. Como esse fim da literatura, especificamente a argentina, reverbera em Piglia?

Esse fim teria dado lugar a um novo começo, com Arlt. Sua grande questão é: Borges fecha um século, um modelo de escrita, e Arlt abre outro, o modelo moderno, cada um com seu século. Mas Arlt morreu em 1942, o que veio depois? Ele faz mesmo essa pergunta explicitamente: quem seria o grande escritor argentino em 1980? Quem juntasse os dois, Arlt e Borges, esse seria o próximo grande escritor argentino. Ele, Piglia, em Nome falso, realiza esse feito anunciado em Respiração artificial citando uma passagem de Borges como se fosse de Arlt. Em Nome falso Piglia aproxima os dois sempre que pode, mostrando que o que um escreve num texto o outro escreve em outro, como no exemplo de Pierre Menard, autor do Quixote, de Borges, e O escritor fracassado, de Arlt. Piglia, ególatra de primeira linha, se inscreve como o grande escritor argentino depois de Borges. Isso irrita um outro ególatra de primeira linha, Roberto Bolaño.

Roberto Bolaño, no ensaio Derivas de la pesada, associa Arlt a Jesus Cristo e Piglia a São Paulo. Em dado momento, no segundo texto do livro,você elabora como Bolaño e Piglia partiam das mesmas referências, e cria uma trama de dissensos entre esses escritores. Me parece, que antes de tudo, existe o fato de serem autores que escrevem sobre outros autores e sobre o jogo literário. E isso cria uma rede de disputas bastante profícua, e que soa como um um tipo de performance, sobretudo no caso de Bolaño. Você também enxerga essas disputas, acima de tudo, como performances literárias e uma continuação das obras?

Certamente. São escritores que sabem seus lugares, que fazem seus lugares, se inscrevem na história da literatura: Piglia estava mais interessado no cânone nacional, me parece, e Bolaño buscou uma performance mais apátrida, menos nacional, se inscrevendo no território da língua, problematizando sempre que pôde, inclusive, uma distinção entre latino-americanos e espanhóis. Pensou essa imensa comunidade de escritores da língua espanhola e se declarava latino-americano para performar uma identidade política que interessava a ele. Tinham compromissos sobretudo com a literatura, foram grandes escritores que forjaram seus romances na discussão crítica, na reescrita da história literária, embaralhando ficção e ensaio, escrita e corpo, autobiográfico e representações de alteridades, sobretudo de escritores e escritoras fracassados. E são escritores que fazem constelações imensas, que elevaram mesmo ao nível do visível nomes latino-americanos que no momento de suas escritas não eram tão reconhecidos assim. Arlt era o mesmo Arlt antes de Piglia “construir sua igreja”? O que dizer de Pedro Lemebel, Lina Meruane e tantos outros para quem Bolaño também construiu igrejas em diversos de seus textos, ainda mais pra nós, brasileiros, que vimos desabrochar tantas novas coleções de latino-americanos pós-Bolaño? Dentre elas, a argentina é das mais ricas, com autores saindo agora do forno brasileiro em traduções exemplares como Tamara Kamenzsain, pela 7Letras e pela Papéis Selvagens, Gabriela Cabezón Cámara, pela Moinhos, Sylvia Molloy, pela Relicário.

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